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CINEMA | Shame ou do homem sem qualidades. Notas.

SHAME OU DO HOMEM SEM QUALIDADES. NOTAS

Romero Venâncio Aracajú (SE)

domingo 18 de setembro de 2016 | Edição do dia

“Eu procuro, portanto, a moral de hoje… Tento elucidar a escolha
que um homem pode fazer de si mesmo e do mundo”
Jean-Paul Sartre

Vai ficando cada vez mais claro nas leituras sobre cinema e nos filmes que vejo que a “sétima arte” abriga uma capacidade extraordinária de reflexão. O cinema é um instrumento filosófico importante num mundo contemporâneo predominantemente imagético. Mas tal capacidade reflexiva do cinema só tem significação profunda quando aliamos pensamento e mundo, quando os acontecimentos da tela inundam o mundo, quando a vida cotidiana é entendida dentro de uma totalidade sistêmica.

Entendido assim, as imagens cinematográficas podem proporcionar uma leitura sócio filosófica do mundo em que vivemos e podem nos capacitar para uma atividade crítica da condição humana tão massacrada diariamente pela lógica do Capital. Sendo importante lembrar: tal procedimento não pode ser mecânico ou reducionista. Não trata de fazer panfletarismo vulgar com a arte cinematográfica e, muito menos de cair em esteticismos semióticos tolos que não leva a nenhuma boa reflexão e ficam meros jogos de palavras.

O cinema é um ótimo “instrumento de reflexão” quando fazemos com ele uma leitura dialética do mundo concreto. Claro deve ficar que nem todo filme tem capacidade reflexiva. Tem filme que é feito apenas para cumprir uma função comercial e de puro entretenimento, nada contra, mas não é deste tipo de cinema que falo ou que me interessa atualmente.

Um cinema reflexivo nos coloca diante dos dramas da existência sem concessões e mesmo que saibamos sempre que estamos diante de uma ficção, tal ficção nos leva a uma reflexão sobre as situações que nos rodeiam e pode nos fazer encarar o real de um outro ponto de vista ainda não percebido. Para mim, fazer filosofia com o cinema passa por esses “cuidados metodológicos”.

Chamou-me a atenção por demais o filme Shame (Steve Mcqueen, 2012) e que encaixo nessa “tradição de filmes reflexivos”. Do ponto de vista técnico (movimento de câmara, enquadramentos, roteiro, etc.) é um filme “perfeito”. Difícil encontrar um defeito técnico numa película da qualidade de Shame. O que diz pouco no cinema americano.

Afinal, estamos no “País do cinema”, tem mais que serem bons tecnicamente na arte que comercializam como poucos no mundo. O filme tem um ator brilhante na atualidade que é Michael Fassbender contracenando com uma atriz a altura que é Carey Mulligan (que nos proporciona um momento sublime ao cantar em voz e piano a música Nova York, Nova York numa interpretação original e de tirar o fôlego).

No filme, o personagem vai às lágrimas. Ambientado numa Nova York não muito comum nos filmes norte americano. Uma cidade onde aparecem os mundos e submundos, aonde se vai da vida de um executivo pequeno burguês, à vida noturna da prostituição hetero e homossexual ou, tudo junto.

O filme gira em torno do charmoso e independente Brandon, sujeito bem-sucedido economicamente que nora só num apartamento confortável na cidade de Nova York e que teria em tese uma “vida perfeita” para os padrões capitalistas dos dias atuais e para os desejos delirantes da auto-ajuda midiática. Tem uma irmã complicada e que entra na trama para causar as reviravoltas necessárias a filmes desta natureza.

Para um leitor de Sartre, o filme de Mcqueen nos mostra situações que não podem passar em branco e que nos fazem pensar na situação do homem contemporâneo e sua fragilidade inconteste, mesmo que tenha uma vida financeira confortável ou até por causa dela. Um homem bonito, bem-sucedido financeiramente, bom emprego, sempre seduzido por mulheres tão bonitas quanto ele… E só.

Vive consumido pela “prostituição eletrônica” de toda natureza, incapaz de ter ereção e gozar com uma mulher que não seja por dinheiro, vive uma relação ambígua com a irmã (um desejo incestuoso velado e abafado). Há uma cena impagável, onde o personagem Brandon está transando com duas prostitutas e de repente a câmara foca nele e ficamos em dúvida se ele está gozando ou chorando, num misto de movimento repetitivo e aparente gozo. Nos lembra de imediato a ideia de “gozo recusado” descrito por Herbert Marcuse para definir um tipo de gozo na sociedade burguesa.

Shame é uma película perfeita para ilustrar um homem em fuga numa vida sexual frívola, banal, sem pudor, sem concessões. Bom que fique claro, em momentos de “politicamente correto” e de “ressaca” de um certo feminismo, isto também vale e muito para as mulheres da geração do personagem. Uma das coisas que mais me chama a atenção é: não há um sinal se quer de transcendência, não aparece um mínimo elemento de “sagrado”. Tudo no filme é “profano” (sentido dado por Mircea Eliade no seu livro O sagrado e o profano).

O personagem é um ser completamente secularizado, nem referência a família existe no filme. Salvo a relação tumultuada com a irmã, amor ou laços afetivos mais fortes parece coisa de moralista ou anacrônica perante o comportamento de Brandon. O filme nos revela um “tipo de ser humano” contemporâneo, americano e de vida supostamente invejável para o padrão capitalista. Numa leitura mais atenta, percebo que este não seria o ponto de vista do diretor.

Ele radicaliza a vida pequeno burguesa de um “homem sem qualidades” para nos fazer ter asco, medo ou repulsa violenta de uma vida que não vale a pena ser vivida. Uma vida angustiante e pragmática, num corpo “sarado”, “bonito”, “invejado”. Brandon é o típico idiota de classe média alta, com um verniz de cultura erudita e no fundo um “Filisteu americano” dos dias atuais.

Em termos sartreanos, um indivíduo imerso na “má-fé”, ou seja, incapaz de “ser livre” em cada situação que a vida lhe coloca. Para não cair na tentação do moralismo aos moldes de Bento XVI e sua turma de plantão: em nada crítico os desejos sexuais e sua possível “imaginação erótica violenta”, mas o fato dessa mesma eroticidade não ter nada de libertária. Ser tão refém da lógica do Capital como qualquer outra mercadoria.

Em nada no personagem percebemos um projeto de vida crítico aos padrões estabelecidos pela ordem dominante. Muito pelo contrário, personagem vive imerso numa vida com dinheiro, mas sem nenhum sentido comunitário de estar no mundo, vivendo como se o mundo girasse em torno do umbigo dele o tempo todo. Será este um “novo paradigma” para a vida contemporânea? Será este caminho apontado por Brandon de um a vida obscenamente marcada pela busca desenfreada por dinheiro e fama o nosso horizonte? Uma geração inteira tem na vida média desse tipo de Norte americano seu sentido para a vida. Lamentável. É para nos fazer pensar, que tem sentido um bom filme contemporâneo. Shame é um deles.


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