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Sementes da literatura: homenagem à escritora Lygia Fagundes Telles

Laura Sandoval

Sementes da literatura: homenagem à escritora Lygia Fagundes Telles

Laura Sandoval

No começo do mês recebemos a notícia do falecimento da escritora de 103 anos, prestes a completar 104, que seria nesta semana. Durante esse século de vida e produção literária, Lygia marcou o país com sua escrita. Publicou várias obras dos gêneros conto e romance, muitas das quais conferiram a ela os maiores reconhecimentos e prêmios literários do país, além de uma indicação ao Nobel de Literatura em 2016. Homenageamos sua vida, a qual foi dedicada de modo integral para, através da literatura, levantar e refletir questões da sociedade e da vida de cada ser humano.

Em 1918 nasce Lygia Fagundes Telles, filha de uma pianista e um procurador e promotor público, e apenas vinte anos depois ela publica seu livro inaugural “Porão e Sobrado”. Esta publicação foi financiada por seu pai, e contou com as influências de um repertório de lendas, que ela adquiriu por contato com mulheres que trabalharam como suas babás durante a infância. A obra é composta por duas seções: “porões” se referia aos moradores dos porões da cidade, enquanto a seção “sobrado” se referia aos moradores dos sobradões. Assim, apesar de ser uma obra ligada às origens econômicas de sua família e também ainda considerada “crua” na carreira da escritora, sua divisão em duas seções demonstrava de fundo uma noção de divisão da sociedade em classes para a autora desde jovem. O que se aprofunda ao longo da produção artística, incorporando muitas vezes um sentido político.

Quase 84 anos dedicados à literatura e mais de uma dezena de publicações depois, a questão a se refletir se torna, então: qual o diferencial da obra de Lygia Fagundes Telles, que faz com que a autora seja tão lembrada e homenageada na memória e nos corações de tantos leitores? Quais são os aspectos que tornam sua obra e estilo tão singulares, interessantes e reconhecidos?

Podemos ter a visceralidade do seu estilo como um fator fundamental. Ou seja, existe em sua obra a intenção de impactar o leitor até o âmago, tocá-lo no seu cerne. E não seria possível fazer isso sem discutir em suas linhas as grandes questões dos seres humanos individualmente, e também em sociedade. Porém, o que Lygia faz brilhantemente é reconhecer que essas questões não existem separadas: as grandes questões que perpassam e afetam a vida de cada indivíduo, também são as grandes questões da sociedade, da realidade do mundo em que vivemos. Telles, então, tece um fio condutor entre esse “macro”, que seriam os temas de discussão da sociedade, e o “micro”, que são as expressões singulares dessa discussão, o recorte das crises pessoais com hora e lugar como uma fatia do bolo da humanidade vivendo o sistema capitalista.

Desse modo, é comum que em suas obras perpassem temáticas como a da sexualidade, da velhice e da infância, do modelo de família patriarcal burguesa, da solidão e do medo, da opressão de gênero e da morte. Esses temas muitas vezes são abordados pelo viés do terror e tensão psicológica e toques de humor inesperados, os quais enfeitiçam o leitor. O que aparece como um fato muito curioso, é que tais elementos do fantástico contraditoriamente não afastam o texto da realidade, muito pelo contrário, forçam o leitor a refletir para fora da narrativa em si, em direção ao mundo real.

E para isso Lygia Fagundes Telles muito se utilizou de uma escolha de foco narrativo ou narração que se debruça sobre as mulheres - de diferentes idades, desde jovens estudantes até senhoras idosas -, imergindo na condição feminina no século XX e trazendo, assim, para a superfície a discussão da opressão de gênero. Fazer esses recortes de situações que retratam a condição da vida das mulheres e ligar esta com uma crítica ao patriarcado é uma questão fundamental na obra de Telles. A exemplo disso pode-se considerar o conto “Venha ver o pôr do sol” que retrata um caso aterrorizante de feminicído da personagem Raquel pelas mãos de seu ex-namorado, o que é completamente atual para a realidade das mulheres que seguem sendo perseguidas, assediadas e assassinadas. Ou também, como no romance “As Meninas”, obra que driblou a censura da ditadura militar e que trata das transformações na vida de três estudantes universitárias em meio ao violento regime da ditadura no Brasil, revelando um pano de fundo geral sobre as contradições entre os objetivos de vida das mulheres e uma forte pressão da ideologia burguesa para uma vida restrita aos limites do casamento, com dependência econômica e social aos seus companheiros. As vidas das três moças são preenchidas por contradições que provêm do sistema capitalista, portanto o leitor não se sente impelido a almejar ou idealizar a condição dessas protagonistas. É justamente dessas contradições que a escritora parte para colocar uma visão crítica do autoritarismo e dos papéis tradicionais impostos às mulheres. A título de curiosidade, pode-se ressaltar que esse romance também contém uma cena de tortura política, a qual foi baseada num relato verídico lido pela autora na época, e mesmo assim conseguiu ser publicado. A esse mérito, Lygia Fagundes Telles atribui como hipótese seu estilo engajado mas não-panfletário e seus artifícios estéticos de fluxo de consciência e abordagem intimista da vida das personagens que, para ela, “podem ter desinteressado os agentes da ditadura em seguir lendo” ao ponto de não perceberem que o conteúdo da obra não só denuncia o regime político brasileiro e a opressão, mas também planta na mente dos leitores a semente questionadora e crítica que podem ser armas para subverter a realidade.

Além disso, assim como sua estimada amiga Clarice Lispector, não era incomum que Lygia trouxesse para foco perspectivas de crianças e animais, como seres do mundo colocados à margem da sociedade, o que no capitalismo se explica pela sua falta de contribuição econômica. Ela usa do ponto de vista da criança para potencializar os questionamentos sobre aspectos estruturais da sociedade capitalista, pois as crianças ainda estão descobrindo o mundo e fazem perguntas fundamentais sobre este. Por exemplo em “Biruta”, em que é tirado do protagonista Alonso seu único amigo, fonte de sua alegria, por seus patrões. O menino é uma criança orfã retirada do orfanato para trabalhar arduamente como criado na casa de um casal com alta condição econômica. Na narrativa, ele questiona o modo como o cachorro é tratado, e demonstra muita solidariedade por ele ao se dedicar ativamente para protegê-lo, o que na verdade são aspectos de reconhecimento e transferência para o cachorro o que ele sente sobre sua própria condição de abuso e exploração infantil.

Vale pensar que, por ter tido uma longa vida, Lygia Fagundes Telles viveu mais de um século de transformações no mundo a nível internacional e nacional: guerra mundial, ditadura militar, crises econômicas, para citar alguns exemplos do que perpassou a vida da escritora. Assim, nos seus textos se enlaçam os elementos mais atrasados e os mais avançados da realidade, explicitando a contradição da realidade. O mundo das bulas papais, das criadas negras, e das amarras (não laços, mas sim verdadeiros nós) familiares tradicionais era o mesmo da psicanálise, das ondas do feminismo e das greves operárias. E o caminho que a autora faz para refletir sobre essas questões nunca é o mais óbvio. Ela planta as sementes sugestivas, que instigam a dúvida em seus leitores, colocando-os contra a parede para rejeitar os modos simplistas de encarar a realidade.

Sendo a literatura um registro privilegiado do seu tempo, a vasta produção de Lygia Fagundes Telles apresenta seus vestígios do Brasil no século XX de modo único, de composição estilística pensada para mergulhar no individual e submergir desse mergulho com questionamentos e conclusões que vão além, em direção à sociedade. Como homenagem à vida desta ilustre escritora, saudamos suas contribuições literárias e sociais, suas reflexões e seu modo de ver o mundo. Lygia, em vida, declarou que o papel do escritor é “ser testemunha do seu tempo e da sua sociedade, testemunha e participante”, e podemos afirmar que ela o desempenhou brilhantemente, emocionando e marcando a vida de gerações com sua sensibilidade questionadora.


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Laura Sandoval

Estudante da Letras - USP
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