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SEMANÁRIO

Rosa Luxemburgo, uma filosofia da ação revolucionária para a atualidade

Guillermo Iturbide

Ilustração: @marcoprile
Tradução: Iaci Maria

Rosa Luxemburgo, uma filosofia da ação revolucionária para a atualidade

Guillermo Iturbide

“O sujeito do conhecimento histórico é a própria classe oprimida em luta. Em Marx, ele aparece como a última classe subjugada, como a classe vingadora, que completa a obra de libertação em nome de gerações de oprimidos. Esta consciência, que reapareceu por um breve período em ‘Espartaco’, sempre foi chocante para a social-democracia.” Walter Benjamin, Tese XII sobre o conceito de história (1940).

Uma homenagem a Rosa Luxemburgo no 150º aniversário de seu nascimento (5 de março de 1871), retomando dois aspectos fundamentais de sua trajetória política: o debate sobre o revisionismo e a greve de massas, faltando pouco para o lançamento de uma edição [em espanhol] de suas obras escolhidas, sob o nome de Socialismo ou barbárie, pelas Ediciones IPS [de Buenos Aires, Argentina].

Enquanto escrevemos estas linhas, o mundo acaba de completar um ano desde o início da pandemia de covid-19. E, coincidentemente, é o 150º aniversário do nascimento de Rosa Luxemburgo (5 de março de 1871). A pandemia de covid-19 tirou a vida de 2,5 milhões de pessoas dos párias da terra e produziu grandes crises sociais, políticas e econômicas. E, no entanto, como muitos cientistas críticos mostraram, esta não é uma calamidade natural, mas estaria fortemente relacionada à grande indústria capitalista de alimentos e ao desmatamento e desastre ecológico associados à ela. Luxemburgo, há mais de um século, soube explicar como o capitalismo, com sua organização anárquica e irracional, não pode deixar de produzir, por sua própria natureza, fenômenos aberrantes e crimes sociais que contêm elementos de barbárie e que colocam em jogo a própria “civilização” capitalista ou, para citar Walter Benjamin, “todo documento de cultura é ao mesmo tempo um documento de barbárie”. Luxemburgo estudou este tipo de problema especialmente em relação ao desenvolvimento do militarismo e as tendências para uma grande guerra mundial, como uma expressão condensada e extrema do desenvolvimento do imperialismo e suas contradições. Nesse contexto, no início da Primeira Guerra Mundial, ele afirmou que a alternativa era “o socialismo ou o afundamento na barbárie”.

Luxemburgo pertenceu à geração de marxistas que fez suas primeiras armas no período de 1871 a 1914, marcado pelo final das revoluções do século XIX, o último grande salto do capitalismo e o surgimento do imperialismo. Foi um período preparatório para o “grande Kladderadatsch”, ou a grande hecatombe a qual Friedrich Engels previra que levaria esse desenvolvimento.

Seu legado sempre foi controverso. Ela fazia parte de uma corrente revolucionária informal de alas de esquerda dentro do movimento socialista internacional, coincidindo com frações semelhantes, como os bolcheviques da Rússia, centralmente. No entanto, teve diante deles uma trajetória independente, que ora convergia, inclsuive organizativamente (no caso da Polônia, entre 1906 e 1912, em particular), ora não, mantendo certa distância. Luxemburgo, que se considerava uma “simpatizante crítica” dos bolcheviques, saudou e apoiou a Revolução de Outubro de 1917, embora mais tarde tenha sido transformada em um palavrão pelo stalinismo por muito tempo.

Atualmente pode-se dizer que predomina uma leitura de Rosa Luxemburgo que desnaturaliza completamente sua teoria revolucionária, a distorce e usa sua figura em função de projetos políticos “neo-reformistas”, ou seja, com um discurso à esquerda dos velhos partidos social-democratas, mas não muito... Temos uma visão diferente, e esperamos contribuir para uma apropriação em chave revolucionária, embora também não esteja isenta de uma visão crítica em alguns pontos. Esperamos que a antologia de sua obra que estamos prestes a publicar contribua para isso.

Após esta introdução geral, avançamos aqui dois elementos que serão desenvolvidos, junto com todas as suas ideias, na apresentação da antologia a ser lançada em breve, por nossa autora: o “debate Bernstein” e o debate sobre a greve de massas.

Reforma social ou revolução. O debate Bernstein

Rosa Luxemburgo foi originalmente a fundadora e militante da Social-Democracia do Reino da Polônia e Lituânia (SDKPiL, em sua sigla em polonês), estabelecida no exílio em Zurique, na Suíça, onde estudava, em 1893. Ao longo de toda sua vida, manteve o vínculo e seu papel de direção teórica e política deste partido. No entanto, ele queria se mudar para a Alemanha, cujo Partido Social-Democrata (SPD, em sua sigla em alemão) era a força dirigente da Internacional Socialista, ou Segunda Internacional, fundada por Engels em 1889. A Alemanha tinha o movimento socialista mais vibrante, com seus melhores expoentes teóricos, e o movimento operário mais desenvolvido e organizado.

Assim que conseguiu se estabelecer na Alemanha, participou do congresso do SPD realizado em Stuttgart em 1898, onde pela primeira vez se coloca o debate da maioria marxista do partido com uma minoria denominada “revisionista” representada por Eduard Bernstein, quem, durante seu exílio na Grã-Bretanha na época da perseguição de Bismarck contra o SPD, havia se familiarizado e abordado o ponto de vista da Sociedade Fabiana, uma organização que promoveu a reforma gradual do sistema capitalista que foi o think-tank ideológico tanto dos sindicatos como do Partido Trabalhista, posteriormente criado por eles em 1900.

Este último publicou, desde 1896, uma série de artigos intitulada “Problemas do socialismo” na revista teórica Die Neue Zeit, onde uma série de pontos fundamentais da teoria marxista começava a ser repensada. Fundamentalmente, Bernstein considerou que uma série de tópicos que avaliou como centrais para a teoria de Marx não estavam se verificando na realidade, como a tendência ao desaparecimento das classes médias, a pauperização generalizada da classe trabalhadora e, de conjunto, que o capitalismo não caminhava para um cenário catastrófico onde, pelas suas próprias contradições, era impossível continuar funcionando normalmente e isso levaria à intervenção revolucionária da classe trabalhadora para superar aquele sistema e implantar o socialismo. Ao contrário, Bernstein também considerou que o capitalismo havia encontrado seus próprios “meios de adaptação” às crises na forma de crédito e da concentração da produção em grandes corporações empresariais (na época chamadas de “cartéis”).

Como conclusão desses fenômenos, Bernstein considerou que era necessário abandonar o pensamento dialético, de matriz hegeliana, que para ele era a expressão desse tipo de pensamento “catastrofista” no marxismo. Por outro lado, Bernstein considerava que a teoria marxista que fundamentava a necessidade da revolução, baseada nessas tendências, não correspondia com a própria prática real, cotidiana da social-democracia alemã que oficialmente aderia a ela, que se limitava à luta pela reformas que melhorassem a situação dos trabalhadores dentro do quadro do capitalismo. Como solução para essa lacuna entre teoria e prática, Bernstein propôs revisar a primeira à luz da segunda: transformar o Partido Social-Democrata alemão de um partido socialista revolucionário em um que é abertamente reconhecido como um partido da reforma social e da democratização das instituições do Estado como forma de realizar o socialismo por meio de reformas graduais, sem o “salto” da revolução, que muitas vezes é chamada de “a conquista do poder político pelo proletariado” no debate.

A princípio, Karl Kautsky, o principal teórico do partido e de toda a Segunda Internacional, dá pouca importância ao desafio que esses artigos apresentam justamente em seu próprio terreno e até agradece calorosamente seu amigo pessoal pela contribuição que os artigos representam, algo que irrita outro grande teórico da social-democracia internacional, o russo Georgy Plekhanov, quem chegou a escrever uma longa “Carta aberta ao camarada Kautsky” chamada “O que temos de agradecê-lo?” [1], além de muitos outros artigos voltados para o aspecto filosófico e sobre o questionamento da concepção materialista da história. Então, a partir dessa intervenção e da de Rosa Luxemburgo, Kautsky também se junta à luta teórica contra o revisionismo, principalmente com sua obra Bernstein e o programa social-democrata. Uma anti-crítica (A doutrina socialista).

O grande alvoroço que esse debate causou teve a ver com o fato de que o marxismo só se consolidou como a teoria da social-democracia alemã e do movimento operário há relativamente pouco tempo, depois que a figura e o pensamento do não marxista Ferdinand Lassalle foram dominantes por décadas (com alguns pontos de contato com a “revisão” de Bernstein), em vez dos de Marx e Engels [2]. No entanto, a revisão de Bernstein veio agora de dentro do próprio marxismo para sair dele. O movimento operário ainda estava em um momento em que as lutas teóricas e as correntes de pensamento em torno delas ainda não eram totalmente vistas como uma expressão cristalizada de certas forças sociais, no sentido de como começaram a ser vistas, acima de tudo, a partir da Primeira Guerra Mundial. Voltaremos a isso em detalhes mais tarde. No entanto, Luxemburgo situa a concepção do revisionismo como expressão da afluência ao SPD de inúmeros elementos da pequena burguesia, principalmente após o fim das leis de perseguição aos socialistas e a queda de Bismarck (1890), e graças aos avanços do partido tanto no campo eleitoral quanto nas conquistas sindicais.

Reforma ou revolução?, o grande texto polêmico de Luxemburgo contra o revisionismo bernsteiniano, busca desde o início situar a polêmica contra este como uma controvérsia com alguém que, dentro do SPD, na verdade pertence a outro partido: o movimento da “Reforma Social” na Alemanha existiu por décadas como uma proposta, especialmente pelas igrejas, para afastar o movimento operário dos socialistas e enquadrá-los dentro do Estado. Esse movimento, confessional e reacionário, já em declínio, agora buscava renascer dentro do partido dos próprios socialistas.

Para contrariar os argumentos do revisionismo, Luxemburgo começa por situar-se a partir do ponto de partida da análise do capitalismo como um todo, contra a visão fragmentária de Bernstein. A totalidade é também o ponto de partida da dialética, que busca compreender os fenômenos sociais primeiro na forma como aparecem, para analisar sua essência e chegar a um conceito mais rico e complexo, produto de múltiplas determinações.

Em princípio, supostamente, tanto os marxistas quanto os revisionistas concordavam no que (o objetivo final do socialismo), mas simplesmente divergiam em como (o método reformista ou o revolucionário). Mas não, não se tratava de escolher entre reforma ou revolução como se escolhe o cardápio de um restaurante, como duas formas diferentes de saciar o apetite; tratava-se de dois propósitos distintos: ou remendar o capitalismo buscando mitigar as conseqüências da exploração, “regular” a miséria para tentar torná-la mais tolerável, ou eliminá-lo para dar origem a uma sociedade socialista sem exploradores nem explorados. Ao longo da polêmica, Bernstein vai acabar reconhecendo que sua ênfase nos métodos, no como fazer a reforma social, também leva logicamente a questionar se o objetivo final socialista ainda é válido. Isso se resumirá em sua famosa frase: “O objetivo final, seja ele qual for, não é nada para mim; o movimento é tudo.” Seu “socialismo”, então, perde toda base científica e se transforma em um objetivo puramente moral. Bernstein parte de dividir a esfera da produção da distribuição, para concentrar o objetivo das lutas por uma distribuição mais justa da riqueza. Para ele, os dois métodos privilegiados da reforma social são a luta sindical, que por meio da disputa salarial pode permitir a distribuição de uma fatia maior da renda nacional em benefício dos trabalhadores, e a formação de cooperativas de produção.

Para Luxemburgo, embora a luta sindical seja necessária, já que a classe operária se ajusta e vai forjando sua experiência, sendo uma escola para se preparar para batalhas decisivas pelo poder, na concepção de Bernstein, ao se tornar um objetivo em si mesmo, acabavam limitadas a uma luta no âmbito do capitalismo sem questioná-lo, porque é:

[O] meio que os trabalhadores possuem para cumprir a lei capitalista do salário, ou seja, a venda da força de trabalho de acordo com seu preço de mercado em determinado momento. Nisto, os sindicatos servem ao proletariado, explorando para si próprios as conjunturas do mercado em cada momento. No entanto, o que fica fora da esfera de ação dos sindicatos são justamente essas conjunturas, a saber: (1) a demanda por força de trabalho condicionada pelo nível de produção, (2) a oferta de trabalho criada pela proletarização das camadas médias da sociedade e pela reprodução natural da classe operária e (3) o grau momentâneo de produtividade do trabalho. Os sindicatos não podem eliminar a lei salarial. No máximo, eles podem fazer com que a exploração capitalista encaixe dentro dos limites “normais” do momento, mas de forma alguma podem abolir gradualmente a própria exploração.

Por isso, para Luxemburgo, a luta sindical era uma luta interminável, um “trabalho de Sísifo”.

Quanto às cooperativas de produção, considerou que era uma opção que só podia ser aplicada em pequena escala, para um tipo de produção com baixo investimento, como é o caso de alguma parte da indústria alimentícia, mas que, ao mesmo tempo, o eliminava totalmente a regra da lei do valor e do intercâmbio capitalista, pela qual as cooperativas eram obrigadas a competir em condições extremamente desfavoráveis ​​com os grandes capitalistas, que possuíam melhor técnica e, portanto, maior produtividade do trabalho, o que obrigaria aos trabalhadores cooperativistas a compensar explorando a si mesmos cada vez mais duramente. “As cooperativas, principalmente as de produção, representam em sua essência uma forma híbrida no seio do capitalismo. Elas podem ser descritas como uma produção socializada em pequena escala dentro do intercâmbio capitalista”.

Por outro lado, sua sobrevivência dependia, em grande medida, da formação paralela de cooperativas de consumidores, ou seja, da garantia prévia de um mercado fechado. Isso impossibilitaria a cooperativização da grande indústria e dos grandes serviços, que também requerem um investimento de capital muito maior.

Por outro lado, Luxemburgo faz uma crítica sucinta, mas devastadora, da teoria marginalista, que ela considera ser a base da concepção econômica de Bernstein. Hoje, muito longe das intenções reformistas de um Bernstein, essa escola econômica liberal é considerada pela corrente atual dos chamados “libertários de direita” como sua antecessora. É muito comum ouvir atuais economistas “libertários” falando na mídia dando “aulas de economia à esquerda” criticando a teoria do valor-trabalho de Marx em defesa de uma suposta teoria subjetiva do valor:

Bernstein declara que a lei do valor-trabalho de Marx é uma mera abstração, o que, para ele, é um palavrão na economia política. Mas se o valor-trabalho é uma mera abstração, “uma imagem do pensamento”, então qualquer cidadão normal que completou o serviço militar e paga seus impostos em dia tem o mesmo direito que Karl Marx de criar sua própria “imagem do pensamento”, sua própria lei do valor. “Marx tem o direito de dispensar as qualidades das mercadorias para convertê-las em simples encarnações de quantidades de trabalho humano, assim como os economistas da escola de Böhm-Jevons a prescindir de todas as qualidades das mercadorias, exceto sua utilidade.” Em outras palavras, para Bernstein, o trabalho social de Marx e a utilidade abstrata de Menger são bastante semelhantes: abstrações puras. Bernstein esquece que a abstração de Marx não é uma invenção, é uma descoberta, que não existe na cabeça de Marx, mas na economia de mercado. Não leva uma existência imaginária, mas uma verdadeira existência social, tão real que pode ser cortada, moldada, pesada e cunhada. O trabalho humano abstrato que Marx descobriu não é, em sua forma mais desenvolvida, senão o dinheiro. Esta é precisamente uma das descobertas mais geniais de Marx, ao passo que para todos os economistas políticos burgueses, do primeiro dos mercantilistas ao último dos clássicos, a essência do dinheiro permanece um livro fechado a sete chaves. A teoria da utilidade abstrata de Böhm-Jevons é, na verdade, uma imagem do pensamento, ou melhor, uma imagem da falta de pensamento, um absurdo pelo qual nem o capitalismo nem qualquer sociedade podem ser responsabilizados, mas sim a própria economia burguesa vulgar. Com esta “imagem do pensamento” na cabeça, Bernstein, Böhm e Jevons, e toda a fraternidade subjetiva podem passar vinte anos contemplando o mistério do dinheiro, sem chegar a nenhuma conclusão diferente daquela que qualquer sapateiro já conhece sem sua ajuda: fundamentalmente, que o dinheiro é “útil”.

As relações de produção da sociedade capitalista, com a crescente socialização da produção, a extensão do poder dos sindicatos e suas conquistas, a formação de cooperativas e a extensão da democracia são vistas por Bernstein como o limiar das relações sociais de uma sociedade socialista . No entanto, suas relações jurídicas e políticas ergueram um muro cada vez mais alto entre as sociedades capitalista e socialista. O desenvolvimento das reformas sociais e da democracia não derrubam o muro, mas o fortalecem e consolidam. “Só o golpe do martelo da revolução, isto é, a conquista do poder político pelo proletariado, pode derrubar este muro.”

Rosa Luxemburgo, como um todo, argumenta que, apesar do fato de que sob o capitalismo germinam os elementos que mais tarde se desenvolverão plenamente na sociedade socialista, estes elementos:

assumem, por ora, uma forma que não se aproxima do socialismo, mas, ao contrário, se afasta dele. Na produção, o caráter social é cada vez mais expresso. Mas de que maneira? Expressa-se na forma da grande empresa, da sociedade por ações e do cartel, onde os antagonismos e a exploração capitalistas e a subjugação da força de trabalho se exacerbam ao extremo.

Por fim, Luxemburgo é uma das primeiras a colocar o problema da dialética das conquistas parciais. O que isto significa? Que essas reformas conquistadas pela classe trabalhadora, se não forem utilizadas como um ponto de apoio ou uma alavanca para transcender a ordem capitalista e se tornarem, de meios, em fins em si mesmos, contribuem para alargar aquele muro que separa o capitalismo do socialismo.

Que forma, então, deve assumir a dialética entre a luta pelas reformas e a revolução? Essa era uma questão que na época do debate de Reforma ou revolução? não foi inteiramente fácil responder, na ausência de elementos históricos, especialmente da experiência de novas revoluções proletárias. Mas é evidente que o sentido da resposta de Rosa Luxemburgo estava no caminho de um programa de transição, que servisse como uma ponte entre a luta cotidiana e a consciência das lutas presentes, com as necessidades objetivas das tarefas a realizar de acordo com o avanço da decadência capitalista. O debate sobre os programas transicionais só se concretizou após o triunfo da Revolução de Outubro, nos primeiros anos da Internacional Comunista, e foi sistematizado entre 1934 e 1938 no programa da Quarta Internacional. Nesse sentido, já debatemos em outra ocasião com aqueles que “traduzem” a dialética entre reforma e revolução em uma chave de luta por espaços autônomos de reformas a partir de baixo combinadas com um certo apoio a governos “populares” de conciliação de classes [3].

O debate sobre a greve de massas

O ponto da dialética das conquistas parciais e seu peso conservador também estiveram presentes ao longo de todas as intervenções de Rosa Luxemburgo no debate sobre a greve de massas. Na Segunda Internacional, até 1905, as hipóteses estratégicas sobre um eventual processo revolucionário foram bastante relegadas, centrando-se na “tática comprovada” do Programa de Erfurt da socialdemocracia alemã de 1891, que consistia centralmente no desenvolvimento da luta sindical e parlamentar pelas reformas baseadas na acumulação política para um horizonte socialista que mal se via. Apenas setores da social-democracia situados mais à margem, à esquerda, consideravam essas hipóteses, como Parvus e Rosa Luxemburgo na Alemanha ou os social-democratas russos. Essas hipóteses estratégicas consistiam em visualizar o processo revolucionário a partir do desenvolvimento de uma greve geral revolucionária que paralisaria a economia, colocaria o Estado capitalista em xeque e levantaria quem é o “dono do país”, facilitando o acesso da classe trabalhadora ao poder. No entanto, essa hipótese era insuficientemente concreta devido à falta de experiências revolucionárias por mais de três décadas, a partir da derrota da Comuna de Paris em 1871. Já nos debates sobre a greve geral belga de 1903 entre Luxemburgo e Vandervelde, começa a esboçar a relação entre greve de massas e revolução, mas é em Greve de massas, partido e sindicatos, uma obra muito elogiada por Lenin, que Luxemburgo afirma esta hipótese estratégica:

Através do desenvolvimento interno lógico de acontecimentos sucessivos, a greve de massas desta vez se transforma em uma insurreição aberta, uma barricada armada e combates de rua em Moscou. As jornadas de dezembro em Moscou concluem o primeiro ano da revolução como o ponto máximo da linha política de ação e do crescente movimento de greve de massas. Ao mesmo tempo, os acontecimentos em Moscou mostram em um pequeno ensaio o desenvolvimento lógico e o futuro do movimento revolucionário como um todo: sua conclusão inevitável em uma insurreição geral aberta, que por sua vez só pode ocorrer passando pela escola de uma série de revoltas parciais preparatórias, que por enquanto podem terminar com “derrotas” externas parciais e, consideradas individualmente, parecem “prematuras”.

Luxemburgo escreveu esta obra em 1906, a pedido dos social-democratas de Hamburgo, como uma síntese da Revolução Russa de 1905, a qual sua autora ainda não via como concluída. Escreveu-a depois de sair da prisão em que esteve confinada durante alguns meses em Varsóvia, devido à sua participação na revolução no território polaco. O local onde o fez foi numa aldeia finlandesa, muito perto de São Petersburgo, onde Lênin e outros bolcheviques estavam clandestinos, de forma com que Luxemburgo pôde discutir o seu conteúdo com eles. Para ela, este trabalho não se limitou a ser uma descrição do que aconteceu na Rússia, mas propôs, de fato e embora não tenha sido assim explicitado por sua autora, uma mudança de estratégia para a social-democracia ocidental. Não se trata de escrever sobre a greve de massas ou como uma simples “greve de demonstração”, ou seja, um evento em que os trabalhadores deixam seus locais de trabalho e protestam pacificamente, nem, no outro extremo, na greve geral no sentido anarquista, como o evento do “grande dia final” em que ocorre uma greve geral por tempo indeterminado que desmorona o capitalismo com um único golpe. O objetivo é apresentar uma nova estratégia que englobe um processo de longo alcance em que o centro de gravidade da luta política é colocado na luta de classes e na educação do movimento operário em uma escola de luta onde, através de diferentes combates parciais sindicais e políticos, vai tomando consciência das suas próprias forças para chegar suficientemente preparado para “a tomada do poder político pelo proletariado”, onde as suas forças serão tensas ao máximo e se proporá a expulsão das classes dominantes do poder. Isso implica, na social-democracia ocidental, precisamente uma mudança radical na “velha tática comprovada” de localizar esse centro de gravidade na ação parlamentar apoiada em lutas sindicais por objetivos limitados. A greve de massas como estratégia é a que melhor se adapta à nova era de desenvolvimento do imperialismo e de conflitos de classe mais duros. Se na Rússia, onde a classe trabalhadora é minoria, ela pôde desempenhar um papel social e político tão grande, com muito mais razão nos países desenvolvidos do Ocidente esse papel pode ser ainda mais decisivo.

A greve de massas, em seu panfleto de 1906, desempenha ali um papel de “organizadora” do movimento operário como um todo, embora Luxemburgo não desenvolva a novidade das instâncias de auto-organização que canalizam a vontade da classe trabalhadora, a conselhos operários ou sovietes, algo que, de forma um tanto enigmática, Gramsci parece criticar muitos anos depois em seus Cadernos da cárcere [4], e também se combina com os conceitos de “consciência de classe teórica e latente” vs. “consciência de classe prática e ativa”:

No trabalhador alemão esclarecido, a consciência de classe semeada pela social-democracia é teórica e latente: no período da esfera do parlamentarismo burguês, ela não pode, via de regra, manifestar-se ativamente como uma ação direta de massa [...]. Na revolução, onde as próprias massas aparecem na cena política, a consciência de classe torna-se prática e ativa.

Esta observação é muito interessante, pois contribui para uma visão não linear, não evolutiva, não gradual da consciência operária no sentido – seja ela “ilustrada” pela propaganda socialista pacífica em agitação eleitoral, ou em lutas sindicais limitadas –, onde a revolução poupa as etapas desse esclarecimento, mas para os propósitos do que estou tratando aqui, pode-se dizer que Luxemburgo usa essa imagem para argumentar contra os dirigentes sindicais alemães relutantes em agir e que apostavam apenas na educação política pacífica da classe operária, através de eleições e no máximo ações sindicais muito limitadas e estritamente respeitando a legalidade, e é combatida pela rápida escola de amadurecimento político do proletariado russo no fogo da revolução). É um antídoto teórico para a ideia de “partido educador” no sentido escolar.

Esse debate recomeçaria em 1910 em torno da confluência de uma série de lutas econômicas com os protestos contra a reforma da lei do voto qualificado na Prússia, no que ficou conhecido como o “debate das duas estratégias”, onde as contribuições mais destaques de Luxemburgo são “Desgaste ou Luta?” (que publicamos em uma nova tradução direta do alemão nesta edição do IdE) e “A teoria e a prática”. Rosa Luxemburgo levanta uma discussão muito interessante sobre o tempo na política revolucionária. Apesar de fazer parte do mesmo partido, nesse sentido, na social-democracia alemã, coexistiram constantemente duas ideias muito diferentes no que diz respeito aos ritmos da política. Até o início da década de 1910, a visão oficial predominante é cada vez mais o que alguns historiadores chamam de “atenção revolucionária” [5]. O SPD, em traços gerais, estava cada vez mais endividado, como boa parte da Segunda Internacional desde então, por uma visão “finalista” do processo histórico, onde se desenvolvia de forma necessária e inevitável em direção ao objetivo socialista, pela qual a atitude da social-democracia deveria ser fundamentalmente expectante que essas condições amadureçam e se desenvolvam por si mesmas, relativizando o papel ativo de intervenção dos socialistas. Essa “atenção revolucionária”, ou também “radicalismo passivo” ou “teoria da espera passiva”, esses dois últimos termos cunhados pelo marxista holandês radicado na Alemanha e também parte da esquerda do SPD, Anton Pannekoek [6], foi se aprofundando conforme a Primeira Guerra Mundial se aproximava. Por exemplo, o SPD não respondeu bem a crises como a do Marrocos, que em 1911 estava prestes a desencadear uma guerra generalizada com três anos de antecedência [7]. No entanto, isso ainda implicava uma localização centrista de todo o SPD, que combinava uma política prática cada vez mais parlamentarizada e limitada às estreitas margens de manobra da legalidade prussiana, junto com um discurso e uma perspectiva ainda formalmente revolucionários e de adesão ao marxismo. Esta evolução cada vez mais para a direita do SPD a partir do crescimento das enormes conquistas eleitorais e sindicais da Social-Democracia, e do empoderamento da burocracia sindical, a força mais conservadora do partido, que, desde 1906, exercia um direito permanente de veto em relação a todas as políticas partidárias que envolviam os sindicatos. A direção do SPD se adaptou cada vez mais a essa situação. O próprio Kautsky, que a princípio tinha péssima relação com a burocracia sindical, passou a se insinuar com ela a partir desses anos, e até mesmo, de alguma forma, a ser cada vez mais sua “expressão teórica”.

Havia uma apreensão generalizada no SPD contra a possibilidade de uma revolução feita no estilo conspiratório, “provocada”, no estilo dos conspiradores blanquistas do século XIX, e descolada das massas operárias, porque na Alemanha, também não faltaram tradições de tipo anarquista ou “sindicalista”, como eram conhecidas por lá. O Partido Social-democrata, em seu desenvolvimento especialmente nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial, está trilhando um caminho em que essas hesitações se tornam cada vez mais objeções contra a esquerda em torno de Luxemburgo.

Na polêmica com Kautsky sobre a greve de massas de 1910 em torno da luta pelos direitos eleitorais na Prússia, a veia “ativista” de Luxemburgo é claramente visível, contra a filosofia de “radicalismo passivo” que Kautsky defende, que este sintetiza em sua fórmula de “estratégia de desgaste”.

Na discussão de 1910, tratava-se de duas coisas. Por um lado, de conduzir uma luta pelos direitos democráticos (a conquista do sufrágio universal igualitário) com todos os meios disponíveis e de forma consistente, sem se deixar intimidar diante dos limites da legalidade ou da “opinião pública” (ou como ele havia dito contra Bernstein no polêmica contra o revisionismo, sem recuar de medo frente a lenda do “ogro social-democrata que come crianças cruas”), e assim ir forjando a experiência da classe trabalhadora até a conquista do poder político. Por outro lado, é Kautsky, não Luxemburgo, quem levanta claramente o problema da mudança de estratégia.

Embora a linguagem desta última ainda seja mantida cuidadosamente no nível tático, é evidente que ela continua suas reflexões estratégicas de 1905-06, as quais, como alguns historiadores disseram, constituem uma espécie de pré-história do ponto de partida do comunismo alemão.

Para Kautsky, a greve de massas como estratégia foi descartada na Alemanha e em todo o Ocidente porque, segundo ele, havia surgido na Rússia por suas deficiências, seu atraso e seu movimento operário pouco desenvolvido. Dessa forma, o que Kautsky chamou de “estratégia de derrubada”, que incluía o uso da greve de massas, estaria inscrito nessa dinâmica por ter todos os canais de organização e expressão política fechados e enfrentando um Estado semifeudal. No Ocidente, segundo Kautsky, essa estratégia seria supérflua devido ao desenvolvimento dos partidos socialistas e do movimento sindical, e que de qualquer forma o apelo à “estratégia de derrubada” se limitaria ao momento final da conquista do poder, quando o Estado capitalista “desgastado” fosse finalmente despejado. Quanto ao debate imediato sobre como continuar a luta pela conquista do sufrágio universal, a proposta de Kautsky era simplesmente... dedicar-se a preparar a campanha para as eleições ao Reichstag que ocorreria dois anos depois…

Rosa Luxemburgo aponta neste debate para um nó sensível e cada vez mais evidente: a burocracia sindical. A peculiaridade da Alemanha é que essa burocracia faz parte do próprio movimento socialista e, puramente formalmente, também afirma aderir ao “objetivo final”. Luxemburgo aborda seu papel como freio na luta da classe trabalhadora:

Quando o período revolucionário já está em pleno desenvolvimento, quando as ondas da luta já estão altas, nenhum freio dos dirigentes partidários poderá obter maiores resultados. Então, as massas deixam de lado os dirigentes que se opõem ao furacão do movimento. Isso também pode acontecer em algum momento na Alemanha. Mas considero que, em prol do interesse da social-democracia, não é necessário nem desejável almejar isso. Se na Alemanha, no que diz respeito à greve de massas, queremos sentar e esperar a todo custo até que as massas passem por cima de seus dirigentes com “exasperação desenfreada”, é claro que isso só pode acontecer à custa da influência e do prestígio da social-democracia. Pois então se revelaria que o complicado aparato organizativo e a rigorosa disciplina partidária da qual, com razão, muito nos orgulhamos são apenas, infelizmente, um excelente auxiliar à rotina parlamentar e sindical cotidiana, mas que, dada a constituição de nossos círculos dirigentes, são um obstáculo para uma ação de massas formidável, conforme exige a era de lutas tempestuosas que se aproxima.

Mais adiante, Luxemburgo, por este motivo, considera que o papel de Kautsky nesta polêmica é o de ser a cobertura teórica da burocracia sindical:

Se fossem apenas os dirigentes sindicais os que se manifestassem publicamente contra a consigna da greve de massas durante a recente campanha pelo direito ao sufrágio, teria servido para esclarecer a situação, para que as massas aprofundassem suas críticas. Mas não o fizeram, porque o fizeram por meio do partido e com a ajuda do aparato partidário, pesando toda a autoridade da social-democracia para frear a ação das massas; foi isso que paralisou o movimento pelo direito eleitoral, enquanto o camarada Kautsky se limitou a compor a música teórica de que necessitavam [8].

Conclusão

Essas duas lutas fundamentais na trajetória política de Rosa Luxemburgo, entre tantas outras lutas que abordaremos com mais detalhes no prólogo da antologia que estamos prestes a publicar, nos ajudam a entender melhor, entre outras coisas, quais foram os debates anteriores e como a esquerda revolucionária alemã chegou preparada teoricamente para a Revolução de 1918, o acontecimento decisivo na vida de nossa autora, que lhe custou a vida nas mãos dos bandos paramilitares a mando do governo social-democrata. Ambos os debates são extremamente atuais e podem ajudar a enriquecer o pensamento estratégico da esquerda revolucionária.

Dedicado à memória de Miguel Lago e Quique Ferreyra, militantes trotskistas, fundadores do Partido dos Trabalhadores Socialistas da Argentina [PTS, partido-irmão do MRT no Brasil], trabalhadores e referências históricas da luta do Estaleiro Río Santiago de Ensenada. Em tempos difíceis eles estavam convencidos, como Rosa Luxemburgo, de que “a classe trabalhadora, medida pela sua verdadeira estatura, é capaz de mover montanhas e derrubar os carvalhos milenares da injustiça social”, e portanto, parafraseando Walter Benjamin, foram fundamentais para forjar aquela escola que ajudaria os trabalhadores e as novas gerações a reaprender seu ódio de classe e seu vínculo íntimo com seus ancestrais escravizados, aqueles que lutaram antes de nós, entre aqueles que eles próprios estão agora.


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FOOTNOTES

[1Georgi Plechanow, “Wofür sollen wir ihm dankbar sein? Offener Brief an Karl Kautsky”, Sächsische Arbeiter-Zeitung, n. 253-255 (1898).

[2Andrew G. Bonnell, em seu livro recente Red Banners, Books and Beer Mugs: The Mental World of German Social Democrats, 1863–1914, Leiden y Boston, Historical Materialism-Brill, 2020, conta detalhadamente em seu primeiro capítulo o “culto a Lassalle”, que incluía sua visão de mundo, até pelo menos por volta da década de 1890.

[3Ver, por exemplo, o debate com Hernán Ouviña em Guillermo Iturbide, “Rosa Luxemburg y la reinvención de la política”, Ideas de Izquierda, 26 jul. 2020.

[4Antonio Gramsci, Cuadernos de la cárcel, Edición de Valentino Gerratana, Cuaderno 13, parágrafo 24.

[5Como, por exemplo, Dieter Groh, Negative Integration und revolutionärer Attentismus. Die deutsche Sozialdemokratie am Vorabend des Ersten Weltkrieges, Frankfurt, Verlag Ullstein, 1973.

[6Anton Pannekoek, “Acciones de masas y revolución” (1912).

[7Naquele ano esteve a ponto de desencadear uma guerra entre Alemanha e França e, potencialmente, devido ao sistema de alianças, contra todas as potências europeias, já que a França procurava expandir-se no Marrocos, enquanto a Alemanha, que também tinha interesses na África, afirmou que não o aceitaria e chegou a enviar pessoalmente o Kaiser àquele país como “garantia”. Na Segunda Internacional, foram discutidas ações e manifestações internacionalistas na França e na Alemanha contra a ameaça de guerra, mas neste último país a direção do SPD ordenou que permanecesse na passividade, confiando na palavra do governo. A guerra não aconteceu finalmente, mas a atitude da direção do SPD abriu um sério precedente de ceder ao clima de militarismo e nacionalismo em seu próprio Estado. Rosa Luxemburgo escreveu uma longa série de artigos e polêmicas sobre o assunto naqueles meses.

[8“La teoría y la práctica” (Tradução nossa)
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[8M 2021]   /   [Pão e Rosas]   /   [Rosa Luxemburgo]   /   [Teoria]   /   [Gênero e sexualidade]

Guillermo Iturbide

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