×

CULTURA - TEORIA | Qual seria a experiência cultural da esquerda?

terça-feira 8 de março de 2016 | 00:30

Todo marxista sabe, ou pelo menos deveria saber, que a arte pode agir sobre as formas de consciência e portanto tornar-se potencialmente uma força material que contribui com a transformação da realidade. Porém, as técnicas de manipulação presentes nos produtos artísticos dos meios de comunicação de massa são capazes de seduzir até mesmo pretensos militantes de esquerda. Seria isto hipocrisia por parte destas pessoas? Não, o problema é bem mais complexo: a chamada indústria cultural sabe muito bem abordar o desejo, coisa que a esquerda raramente leva em consideração. A manipulação de massa é um dado histórico que gera um conjunto de experiências sensíveis acumuladas através de filmes, novelas, seriados, etc. Esta produção artística está enraizada no fundo da cachola das pessoas. A lacuna cultural deixada pela esquerda faz com que as pessoas tenham parte do seu patrimônio emocional condicionado pelas fórmulas massificadas. Sendo assim “os prazeres” da alienação não podem ser subestimados por leituras economicistas da realidade.

Um sujeito pode compreender racionalmente o funcionamento da sociedade capitalista. Mas dominar conceitos como luta de classes, ideologia, mais valia e modo de produção resolve parte do problema. Não basta ter na ponta da língua os conceitos marxistas se a subjetividade está lambuzada de estéticas manipuladoras. É por estas e outras que pintam verdadeiros paradoxos: depois da assembleia ou da passeata alguns militantes vão para as suas tocas se deliciar com um seriado norte americano. A cultura dominante cala mais fundo do que o marxismo? Não podemos endossar completamente o ponto de vista de teóricos como Adorno: é fácil morar na torre de marfim, é cômodo gozar com uma análise direitista que desconsidera a classe operária como sendo a classe revolucionária. Somente um idealista poderia supor que o capitalismo é um labirinto que neutraliza todas as formas de oposição. Entretanto, a esquerda vai continuar patinando se desconsiderar os fenômenos culturais do capitalismo dos nossos dias. A atenção que a militância precisa dedicar ao problema cultural não é culturalista mas sim política; e a arte deve ser uma força independente neste processo de luta em que os trabalhadores são os protagonistas.

A experiência artística é prazerosa: diversão não envolve necessariamente alienação. Lamentavelmente o tempo livre dos trabalhadores é em grande parte preenchido pelos meios de comunicação de massa. Se no interior da indústria cultural existem exemplos históricos de crítica e rebeldia, o que infelizmente prevalece são as manifestações artísticas que empobrecem a nossa experiência (e este fato confirma que estes meios são controlados pelo capital). Não tenhamos dúvidas de que boa parte da cultura de massa procura jogar areia encima da discussão estética. Porém, na hora de fazer frente a este processo alienante muita gente da esquerda acredita que a solução artística progressista passa inevitavelmente por um conteúdo mastigado, por uma forma palatável, que muitos chamam de “popular”.

Realizar obras de arte que possam possivelmente se comunicar com setores populares não passa pela adoção de formas digestivas, que na tentativa de competir com os produtos massificados recorrem ao empobrecimento estético. O didatismo em arte pode trazer resultados muito interessantes, mas ao mesmo tempo também pode castrar a expressão em nome da comunicação. Quando a comunicação é priorizada em detrimento da expressão rola um grande risco: a arte torna-se domesticada e condizente com interesses alheios a sua constituição (o artista, mesmo querendo ser portador de uma “visão popular” torna-se refém de uma mensagem política erguida sob uma forma frágil).

Por outro lado fechar-se no campo da expressão pode levar ao problema da incomunicabilidade, o que é perigoso para a luta política/cultural. O artista revolucionário se vê às voltas com o velho dilema: a intervenção crítica sobre a consciência do público exige uma arte didática ou anti-popular? Antes de pensar este antigo problema, devemos desfazer aquele equivoco de que a arte empenhada na transformação política é chata, hermética e sem borogodó. Brecht, por exemplo, foi um autor que usou sabiamente elementos da cultura popular de sua época para criar uma estética de caráter épico: para o público que assiste a uma peça de Brecht gargalhar, relaxar, cantar e beber uma cerveja não são impedimentos para compreender uma concepção teatral em que as atitudes dos personagens são atitudes que representam a história em sua perspectiva materialista. No teatro épico o prazer e o conhecimento crítico da sociedade andam de rosto colado.

Uma pergunta recorrente: “Mas será que os trabalhadores irão compreender uma arte que fuja do esquematismo comercial?” Esta dúvida, que vira e mexe aparece nos debates, deixa transparecer não apenas o paternalismo mas a visão reacionária que considera o proletariado incapaz de estabelecer uma experiência cultural que rompa com a alienação. As mesmas pessoas que afirmam que o operário “não lê “ são aquelas que duvidam das possibilidades revolucionárias do teatro, do cinema, da pintura, da canção, etc. Este juízo conservador leva uma paulada no nariz quando observa-se que o próprio operário escreve artigos, escreve literatura(poemas, romances e contos), faz teatro, canta, pinta, filma, agita e que portanto é (apesar da alienação reinante e dos problemas da direção política no âmbito da esquerda) o sujeito histórico que Marx apontou.

É inquestionável o problema da educação: ele existe e traz prejuízos à consciência da classe trabalhadora que se vê às voltas com as formas de alienação da indústria cultural. Mas, lembrando aqui do bate boca que Maiakóvski teve com burocratas da ex-URSS, devemos seguir o conselho do poeta soviético: “que se eleve a cultura do povo!”. Este é o papel da vanguarda revolucionária , e logo, dos intelectuais e artistas de esquerda do nosso país. Tal elevação não significa ser paternal, pelo contrário: agredir os sentidos, mexer com as certezas morais, bagunçar a percepção, travar um diálogo feroz, difundir criticamente a informação estética são deveres da militância cultural(que apesar de ser pequena existe e está agindo). Se os saltos da consciência dos trabalhadores são espantosos nos momentos de acirramento da luta de classes, a própria arte deve acompanhar este processo político com soluções estéticas mais agressivas, mais diretas. Portanto, tão importante quanto uma obra de arte que discute de modo didático (e não paternalista) a realidade, são aquelas obras de arte que agridem a moral da classe dominante (e nisto as lições surrealistas ajudam e muito).

O nosso trabalho está em criar/refletir sobre manifestações artísticas que ajudam a desarrumar a casa da burguesia. Enquanto as questões culturais permanecerem no fim da lista, a manipulação de massa vai continuar comendo solta. Não se pode ser revolucionário com uma visão artística reacionária.


Temas

Cultura



Comentários

Deixar Comentário


Destacados del día

Últimas noticias