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DEBATE COM BOULOS E PSOL | Qual o significado dos compromissos de Boulos na reunião com os barões do comércio?

Em uma sabatina na Associação Comercial de São Paulo (ACSP), o candidato Guilherme Boulos (PSOL) dialogou amigavelmente com a patronal deste setor, afirmando que não se deve esperar dele “nenhum tipo de demonização do setor privado”. Queremos aqui colocar um debate sobre o beco sem saída representado por este caminho de diálogo conciliatório com os patrões.

segunda-feira 2 de novembro de 2020 | Edição do dia

O tom do debate entre Guilherme Boulos, candidato à prefeitura de São Paulo pelo PSOL, e os grandes comerciantes presentes na sabatina da ACSP foi fraterno e amigável. Nessa reunião com empresários, que pouca gente iria assistir, teve uma postura diferente do que sua campanha alimenta como expectativa nos milhares de trabalhadores e jovens que hoje apoiam sua candidatura buscando uma alternativa de esquerda que responda às suas necessidades, e aos problemas que sofrem sob a exploração justamente desses grandes empresários, como os do comércio. É de chamar atenção de todos os votantes de Boulos que este tenha aceitado de bom grado e se sentido tão confortável em uma sabatina com os barões do comércio de São Paulo. Uma candidatura de esquerda deveria se negar a reuniões desse tipo. Não se trata de uma obrigatoriedade legal de qualquer tipo, ou uma sabatina que lhe sirva para ampliar a chegada das suas ideias para amplos setores da população. Ao contrário, é uma reunião fechada, que o próprio PSOL e Boulos não dão difusão, que é meramente para mostrar aos empresários como ele está disposto a se disciplinar a tudo que o grande empresariado paulista acha que é admissível ou não.

Em uma reunião que não deveria nem acontecer para quem se reivindica de esquerda, o que houve não foi sequer uma postura dura de Boulos contra os empresários, ao contrário, quis se mostrar como um parceiro eficaz, articulado e coerente, sendo por isso tão elogiado. O que primou no discurso do candidato foi o tom de que ele tem a intenção de governar para todos, argumentando insistentemente na seguinte linha: “Acredito firmemente que o combate à desigualdade é bom pra todo mundo”, “todos ganham”, “é um ganha-ganha”. Ou seja, o que Boulos pretende é convencer, pela razoabilidade, o bom senso, a demonstração de dados, de que os interesses dos maiores patrões do comércio em São Paulo são de fato os mesmos que os dos trabalhadores, dos camelôs e “pequenos comerciantes humildes falindo nos bairros da periferia”, dos sem teto, da população em situação de rua na cracolândia, entre outros setores explorados e oprimidos. Para isto, se baseia em argumentos como o fato de que enquanto há miséria e desigualdade, os ricos têm de se armar até os dentes, vivendo dentro de condomínios de alta segurança, andando em carros blindados, etc. e que ninguém quer viver desta forma.

Decorre desta ideia, de que o projeto político da esquerda deve ser o de fazer um “bom governo para todos”, que é tanto o programa de Boulos como sua estratégia política, o objetivo de se apresentar como alguém capaz e preparado para ser um gestor da cidade eficaz e ao mesmo tempo socialmente justo. Aliás, o que ele procura defender é justamente que a eficácia consiste em ser socialmente justo, como em sua fala sobre a cracolândia: “Você vai resolver dependência química com bomba de gás lacrimogêneo? Pelo amor de deus, não é assim que se trata. E isto não é nem uma questão de direita ou esquerda, é uma questão de eficiência.”

As consequências disto são diversas. Uma delas é tratar a eleição de São Paulo como um fato isolado da realidade da política nacional e internacional. Boulos não fala sobre vivermos em um regime do golpe, em que as sucessivas manobras autoritárias articuladas entre Congresso, STF e Executivo levaram ao governo Bolsonaro, com inúmeros ataques a nossos direitos. É como se São Paulo pudesse ser governada de forma progressista independentemente deste contexto político e sem enfrentar esse regime. Portanto, mesmo que se coloque como “a única alternativa viável contra o Bolsodoria”, tentando capitalizar todos os votos de um amplo espectro progressista que repudia a direita e a extrema-direita, Boulos não vê nenhuma contradição entre fazer isto e se sentar e elogiosamente agradecer Alfredo Cotait Neto, presidente da ASCP, pelo convite para debater com os mesmos patrões que exigiram as reformas de Temer e Bolsonaro, apoiaram o golpe, apoiaram a eleição de Bolsonaro, pressionaram pela exposição dos seus funcionários à pandemia, etc.

Cotait Neto é o atual presidente do PSD, partido de Andrea Matarazzo, e em seu discurso de posse na Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo (Facesp), em 23 de maio de 2019, defendeu enfaticamente a reforma da previdência, dizendo “A reforma precisa ser profunda, com os parâmetros da proposta enviada pelo governo ao Congresso”, e exortou o Legislativo a se alinhar ao governo: “O Congresso saberá corresponder às expectativas da sociedade, consciente do grave momento que atravessa o Brasil, e aprovará as reformas perfeitamente alinhado com as propostas do Ministro Paulo Guedes, rumo à transição para o modelo liberal”. Não deixou de tecer elogios ao governo de Bolsonaro: “Passaram-se anos de espera, mas com a vitória do presidente Jair Bolsonaro temos a esperança, e quem sabe a última oportunidade, sob o seu comando, de colocar o Brasil no caminho do crescimento.”

Outras figuras que participaram desse encontro tão amistoso foram Ana Cláudia Badra Cotait, presidente do Conselho da Mulher Empreendedora e da Cultura (CMEC) da ACSP, que fez uma cínica pergunta “emocionada” a Boulos sobre o drama da população em situação de rua a partir de seu testemunho de uma mulher fazendo suas necessidades na rua. Boulos dialogou com esse comovente apelo, vindo da mesma mulher que poucos meses antes convidou Damares Alves para o Congresso da Facesp, e depois organizou ação beneficente com a ministra bolsonarista, durante a qual Damares agradeceu o apoio da entidade, dizendo “Me sinto muito parte de tudo isto aqui, pois a Facesp sempre acreditou em mim, mesmo quando muita gente me criticava por eu ser uma ministra autêntica”.

Já Antonio Carlos Pella, empresário que dirige o Conselho de Política Urbana da ACSP, fez questão de lembrar a Boulos que “Hoje você está falando na casa do empreendedorismo, na casa do liberalismo”. Em suas redes sociais, é fácil ver a que se refere o bolsonarista:

Também não faltaram representantes da outra metade do “bolsodorismo” que Boulos quer combater com sua candidatura: Eduardo Ansarah, presidente da Associação de Lojistas da Vinte e Cinco de Março (Univinco) é um entusiamado apoiador de Doria, que foi um dos que exigiu de Boulos compromisso com a repressão policial e a Operação Delegada (ver abaixo).

E, também como consequência dessa concepção, Boulos limita o escopo de seu programa àquilo que pode ser feito por um “bom gestor” na cadeira de prefeito. Daí que sequer denuncie o regime político golpista em que vivemos. Mas, além de se restringir ao que é “possível” como gestor público, abrindo mão de qualquer questionamento estrutural a essa sociedade de exploração e miséria, ao sentar para debater com os responsáveis diretos pela exploração de milhares de trabalhadores Boulos está seguindo num caminho que não tem nada de novo: a tentativa de conciliar interesses inconciliáveis, de classes antagônicas. Qualquer semelhança pelo caminho trilhado pelo PT, que em nome de um suposto “combate à desigualdade” deu a mão aos patrões e se aliou a Temer, à bancada evangélica, aos banqueiros e ao agronegócio, não é mera coincidência.

Isto significa que Boulos não apenas não está disposto a se enfrentar com esses setores e dialogar com eles – ele afirmou que seria “a maior contradição” não dialogar com os diferentes setores de São Paulo – mas que está interessado em procurar preservar seus interesses. Como lutar contra a desigualdade junto com os que vivem da exploração do trabalho alheio? Os que fazem parte da perpetuação dessa desigualdade? Esta é a pergunta que Boulos não tem como responder.

Ao responder Cotait, Boulos disse corretamente que “o setor privado pela sua própria natureza visa o lucro.”, para em seguida complementar: “Isso não é um crime, isso é a natureza do setor privado e a natureza do sistema econômico em quer a gente vive”. Sim, são esses patrões e seus representantes na política que fazem as leis, e, por isto mesmo, o crime hoje é atentar contra a propriedade privada, e não que pessoas passem fome por conta da existência dela. Trata-se, então, de pensar se queremos combater esse sistema econômico e sua natureza ou não. Boulos deixou claro à patronal do comércio. Afirmou que “O setor privado tem seu espaço e o setor público tem seu espaço.”, e ainda alertou para que “não esperem de mim qualquer tipo de demonização do setor privado”.

Mais concretamente, Boulos disse que “parcerias com o setor privado podem ser discutidas, devem ser discutidas no âmbito da cidade de São Paulo.”

Não à toa, um dos empresários que o interpelou afirmou: “Quando te ouço parece que é um candidato de direita, porque o discurso tá mais redondo”. O “redondo”, no caso, leia-se como consonante com os limites da responsabilidade fiscal, do que é possível dentro do orçamento e do respeito à propriedade desses barões do comércio. Uma “brincadeira” que Boulos disse ser “muito bem recebida” por ele, respondendo que os valores que está defendendo são de esquerda e os mesmos de sempre, mas que

"a função e o perfil que se passa como liderança no movimento social é uma, como candidato a prefeito é outra",

Mas, Boulos, ao contrário, afirma que "pra fortalecer economicamente a cidade é preciso aquecer a demanda, e é possível fazer isso combatendo a desigualdade, não há nenhuma contradição entre políticas sociais e políticas de desenvolvimento econômico, elas coincidem". Assim, por exemplo, Boulos se comprometeu a não aumentar impostos, sendo que a taxação das grandes fortunas seria uma medida elementar de atacar a desigualdade.

Diferente de Boulos, os membros da associação comercial sabem que o combate à desigualdade não só não é um “interesse de todos”, mas também que é necessário manter uma sólida política repressiva para assegurar a divisão de uma sociedade em classes, onde os privilégios dos patrões são mantidos tanto pela via da ideologia quanto pela via da lei e da força. Por isto, não faltaram perguntas sobre a Guarda Civil Metropolitana (GCM), a força policial de responsabilidade da prefeitura, cujas funções, por exemplo, são de reprimir camelôs (que, nas palavras do próprio Boulos durante o debate, apresentam uma “concorrência desleal” contra o comércio) e pessoas em situação de rua (como os “nóias” da cracolândia, como chamou de forma repulsiva um dos patrões bolsonaristas presentes no evento a quem Boulos respondeu educadamente).

Boulos não apenas respondeu com seu programa que pretende reforçar a guarda com mais 2 mil efetivos – conforme disse também em encontro com a própria GCM – mas também disse que manteria “transitoriamente” a Operação Delegada, em que policiais militares são contratados para fazer “bico” reforçando o patrulhamento do centro. O representante da Associação de Lojistas do Brás (Alobras) fez a pergunta diretamente a Boulos, porque o que querem são os policiais armados e reprimindo nas ruas para garantir a tranquilidade dos seus lucros.

O candidato do PSOL sequer se disse contra a repressão, e afirmou que o policiamento ostensivo da polícia militar, e o combate ao tráfico da polícia civil são responsabilidade do governo estadual, dizendo inclusive que “temos que cobrar” deste. Disse que “combater que o crack chegue lá, isso precisa ser feito, mas essa é a atribuição do governador, que nunca fez uma operação de inteligência da polícia civil lá". Ao contrário disso, o mínimo que se espera da esquerda é que se oponha à legitimação da repressão através da sangrenta guerra às drogas que segue matando a juventude negra.

De fundo, o que expressa a concepção de Boulos é o mesmo erro trágico que vimos em experiências internacionais como com o Syriza, na Grécia, ou o Podemos no Estado Espanhol (para não falar do exemplo mais “antigo” do PT no Brasil): a falta de confiança na possibilidade e na necessidade de uma estratégia que se baseie na independência política dos trabalhadores e tenha como perspectiva a transformação radical deste regime. Boulos, logo no início do debate, afirmou que a Lei de Responsabilidade Fiscal é “draconiana” porque é “irresponsável socialmente muitas vezes”, mas em nenhum momento questionou a existência desta lei, cujo propósito é reservar uma imensa fatia do orçamento para especuladores da dívida pública. A ilusão de um “governo para todos” leva a que Boulos se comprometa a “diminuir a desigualdade” exatamente dentro dos limites do que for permitido por esta lei, limites que ele advoga como amplos, dado o caixa de R$ 17 bilhões que está sobrando hoje no município.

Um dos empresários na sabatina cobrou Boulos por não falar da dívida pública da cidade, muitas vezes maior do que essa reserva. Não é à toa, essa é uma das preocupações centrais dos capitalistas, e que estrangula a saúde, a educação e a possibilidade de investimento em moradia e serviços sociais. Por isso mesmo é preciso romper com a LRF e impor o não pagamento da dívida pública, que é uma fraude que só serve para desviar o dinheiro dos impostos, que pesam mais sobre os mais pobres, para uma dúzia de banqueiros donos da dívida. Mas Boulos não viu aí uma oportunidade para dizer nada disso, e continuou sem dizer nada sobre a dívida pública, reiterando que definindo bem as prioridades e acabando com os esquemas, cabe no orçamento. Em outro momento disse que “o pessoal costuma brincar que esquerda não sabe fazer conta, sai prometendo um monte de coisa, e eu sou de uma esquerda que busca fazer conta, então fui conversar com auditores fiscais da prefeitura, com procuradores do município, com o tribunal de contas do município, com economistas, pra pensar um programa que não seja para eleição, um programa que pare em pé, que tem viabilidade dentro do orçamento da cidade” - ou seja, se trata de consultar diretamente os responsáveis por fiscalizar o cumprimento da LRF para que digam qual é a proposta que pode ser realizada dentro dos seus limites.

Faz falta aprender com a tentativa petista de mais de uma década tentando manobrar com algumas concessões aos trabalhadores enquanto fazia enriquecer a níveis inéditos os grandes setores capitalistas nacionais. Na primeira crise, a burguesia dispensou o trabalho conciliatório e de refrear os anseios dos trabalhadores que era feito pelo PT para colocar o governo golpista de Temer com sua linha de ataques irrestritos. A ausência de uma estratégia baseada na construção do protagonismo dos trabalhadores como sujeitos sociais independentes, lutando contra a dominação dos patrões, tornou tudo mais fácil para a direita.

Hoje, Boulos, ao sentar-se amigavelmente com a patronal do comércio para debater, dizer que "vim pra ouvir, gostei muito desse encontro, foi uma oportunidade de conhecer, de aprender, saio aqui com muitas anotações do que escutei de vocês e vou levá-las como um aprendizado e um compromisso" e que “aquilo que eu disse aqui em termos de propostas e de compromissos com o comércio de São Paulo, podem ter certeza que eu farei”, dá um perigoso passo no sentido de repetir esta tragédia. Enquanto isso, as caixas de supermercado, as faxineiras, os estoquistas, todos os trabalhadores do comércio - os quais, não à toa, Boulos não citou em nenhum momento dessa reunião - seguem sendo explorados impiedosamente por esses mesmos barões do comércio. Não se trata meramente de um suposto “truque” necessário para poder se eleger e então mostrar efetivamente que seu compromisso é com os trabalhadores. A moderação nunca é só no discurso, mas este sinaliza o primeiro passo em um longo caminho de adaptação que pode ir muito longe, como nos mostra a experiência petista.

Contra esta perspectiva, lutamos com a bancada revolucionária de trabalhadores para fazer dessas eleições um espaço de combate para organizar uma alternativa independente, lutando não apenas eleitoralmente contra o “bolsodoria” em São Paulo, mas também contra o governo de Bolsonaro e Mourão, contra o Legislativo e o STF golpistas, levantando a necessidade de lutar por uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana. Não nos sentamos com os patrões que foram a espinha dorsal que sustentou o golpe aplicado pelas instituições do regime, mas com os trabalhadores que sofrem com os efeitos da reforma, porque queremos organizar este setor social para impor nossas demandas: nosso combate é contra os patrões que arrancam nosso suor para engordar lucros milionários, e lutamos não pela contratação de novos guardas, mas pela garantia de nossos direitos. Contra as reformas de Temer e Bolsonaro que foram apoiadas ativamente por estes mesmos patrões, e em primeiro lugar para barrar a reforma administrativa que estes setores estão articulando agora mesmo; para garantir a melhoria de vida, lutamos por um SUS 100% estatal, por educação pública, gratuita e de qualidade com a defesa das cotas e do fim do vestibular, por espaços de lazer, transporte gratuito e acessível; contra a precarização do trabalho e a uberização, efetivação de todos os terceirizados e os direitos aos entregadores, bem como pela proibição das demissões, como medidas elementares que estão na contramão do aumento da repressão pela GCM exigido pelos patrões do comércio; para garantir isto, lutamos não apenas para que seja investido o dinheiro em caixa da prefeitura, mas para acabar com a Lei de Responsabilidade Fiscal como um todo, acabando com o pagamento da dívida pública e taxando as grandes fortunas tais como a dos grandes empresários da ACSP. É com esta perspectiva que construímos a bancada revolucionária e que queremos debater com cada um que hoje busca na candidatura de Boulos uma saída à esquerda contra o bolsonarismo.




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