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ESTUDO | Quais heranças do lulismo explicam o bolsonarismo?

A existência de uma extrema direita com peso de massas, mesmo que gradualmente enfraquecida, é novidade histórica. O regime político brasileiro segue em ponto de mutação. Os contornos definitivos do pós-golpismo seguem em disputa. A extrema-direita se mostra resiliente. Lula está solto mas não inocentado. A Lava Jato ferida, mas não morta. O “centrão” e o STF fortes para vetarem forças polares, mas inexpressivos para construir projeto próprio. Retomamos aqui diversas investigações do Esquerda Diário, buscando decifrar as causas sociais, econômicas e políticas do que se processou nos últimos anos, e o que o PT fez nos seus anos de governo que contribuiu para erguer Bolsonaro e o bolsonarismo. O entendimento do fenômeno ajuda em seu combate.

domingo 29 de dezembro de 2019 | Edição do dia

O fortalecimento do agronegócio, de uma política de segurança encarceradora e repressora, de uma hegemonia que toma o indivíduo não como portador de direitos ou como membro de uma classe social, mas como um consumidor e eleitor, o fortalecimento do centrão, do Judiciário, das igrejas... todos esses fenômenos se processaram e fortaleceram sob o lulismo e os governos do PT. Cada um desses aliados foi decisivo no golpe em 2016 e em sua continuidade com Bolsonaro.

Parte do que o PT plantou voltou-se não somente contra o próprio partido, mas contra os direitos trabalhistas e sociais, como também para dar fortes passos na maior submissão ao imperialismo. Há continuidade e descontinuidade. A compreensão desses fatores em seu desenvolvimento histórico – passado e presente – norteia perspectivas sobre como enfrentar o bolsonarismo e suas raízes mais profundas, em comum com todo golpismo, mas muito além dele, tocando o petismo em seu passado e em seu presente como governo de diversos estados do Nordeste.

As bases capitalistas do golpismo e do bolsonarismo e o que o PT semeou para essa colheita obscura é o objeto deste artigo.

Em primeiro lugar, delimitar o problema: qual a força atual do bolsonarismo?

Para estar na “mesma página” do leitor, é bom em primeiro lugar afirmar algumas coordenadas gerais da atual situação política nacional, em debate tanto com alguns lugares-comuns da esquerda e centro-esquerda presentes em tantos debates. Lugares-comuns que bebem indireta ou diretamente de algumas das mais renomadas análises políticas nacionais. Nos situamos no combate a dois flancos opostos e simétricos.

Em uma margem do rio há aquelas análises que exageram a estabilidade do giro à direita do país, fazem o milagre de isolá-lo do contágio econômico e político do mundo, congelam as coordenadas da crise orgânica brasileira, buscam explicações um tanto psicológicas, culturais ou determinações capitalistas “automáticas” e de longuíssimo prazo e um tanto sem escapatória. Trata-se de explicações “estruturais” tão de longo prazo e quase imemoriais que os tempos de lulismo, de aspirações crescentes de maiores direitos sociais, parecem configurar um acidente ao qual a história corrigiu com golpismo, desemprego, etc.

É nessa chave interpretativa que pode se situar autores, ou também leituras políticas a partir de autores, como Maria Rita Kehl e seu “bovarismo”, Jessé Souza e “a elite do atraso” e sua hegemonia um tanto natural e histórica sobre a “classe média”, ou Marilena Chauí, que passados vários meses de governo Bolsonaro, abandonou sua tese do fascismo triunfante para agora ver uma igualmente inescapável ideia que a resposta à crise na periferia capitalista é sempre autoritária de direita e de extrema-direita.

Com essa classificação não queremos esgotar as contribuições que há em suas elaborações, mas ressaltar sua tendência a exagerar a fraqueza da classe trabalhadora e da juventude, e sua marcada tendência a explicar a realidade valendo-se de fenômenos econômicos, culturais, da psicologia social que seriam persistentes e quase imutáveis.

Na outra margem do rio, há aquelas análises simplificadoras no otimismo, que tem como centro explicativo uma interpretação unilateral da relação entre economia, política e luta de classes. Nesta chave, haveria um automático e futuro giro à esquerda diante da incomensurável desigualdade brasileira, das estatísticas e fenômenos políticos que mostram maior rejeição a Bolsonaro em parcelas da população, que isoladamente ou somadas são majoritárias - os nordestinos, as mulheres, os negros e os mais pobres. Trata-se da aposta (ou “certeza”) da reconciliação das massas com o “eu avisei”.

Sob essa perspectiva, a visão é que diante de fenômenos automáticos que nos favorecerão, há pouco o que entender e menos ainda o que fazer, além do que já se está fazendo. Sua tática política acaba caindo no mesmo trilho dos pessimistas de um determinismo estrutural. Estes oferecem uma versão social-democrata ou desenvolvimentista do que é a “teoria do voto econômico” que constitui o mainstream da ciência política yankee e ficou eternizado com o chavão “é a economia, estúpido” do estrategista de Bill Clinton, James Carville. Pode-se encontrar pontos de contato com esse tipo de análise do otimismo e automatismo oriundo da formação social e econômica do país em algumas elaborações do jornalista Nassif e do cientista político Rudá Ricci.

Esses erros simétricos levam, cada um deles a seu modo, à falta de preparação por parte da juventude e da classe trabalhadora, seja porque exageram a força dos inimigos ou porque exageram as debilidades desses setores, além de uma ideia automatista da vitória ou da recomposição do terreno a favor dos de baixo.

Diferente desses dois polos, vemos que o Brasil que entrará em 2020 ainda é um Brasil de um “regime em ponto de mutação”. Com uma possibilidade de pacto pela reversão do golpismo no plano político desde que continuado no plano econômico, com atores políticos golpistas aceitando alguma reabilitação de Lula e do PT, com continuidade de poder de arbítrio e autoritarismo nas mãos do STF, com uma Lava Jato enfraquecida mas não morta, com uma extrema direita com inédito peso de massas, com desgaste gradual de Bolsonaro ao mesmo tempo que aumentam os ataques aos trabalhadores e às massas, e em resumo com um giro à direita não consolidado, com possibilidades de abrupto questionamento, se não reversão, como parte do desenvolvimento de contradições nacionais e internacionais. Eis, de forma simplificada, os contornos gerais da atual correlação de forças no país.

Entendendo o bolsonarismo e sua relação com fenômenos sociais, econômicos e políticos das últimas décadas

Bolsonaro não brotou do nada nem é tão e somente uma expressão do imemorial atraso. Há inegáveis fatores contingentes que explicam sua vitória em uma eleição manipulada pelo Judiciário, que manteve Lula preso arbitrariamente e impediu a população de votar em quem ela quisesse - o mesmo Judiciário que deu aval a fraudes eleitorais com o uso indiscriminado de coação e recursos empresariais (como por exemplo por Luciano Hang da Havan. A vitória de Bolsonaro também contou com a contingente e tardia adesão da maior parte da Bolsa de Valores, das Finanças e do empresariado. Tudo isso se acelerou depois da facada. Todos esses fatores contingentes desempenharam um papel, mas olhar exclusivamente para eles, como as primeiras árvores à vista em uma floresta, ocultam a compreensão do que está por trás delas.

Nessa floresta, encontramos transformações econômicas, demográficas e políticas acumuladas em décadas que ajudam a explicar alguns dos comportamentos eleitorais, como sua expressão distorcida. Essas transformações econômicas, sociais e políticas do país não foram produto natural e espontâneo do capitalismo, foram incentivadas e alimentadas material e politicamente pelo PT. Abordamos agora algumas reflexões feitas ao longo do ano.

Um país exportador de commodities, o agronegócio e suas classes sociais

Não há dúvida que o agronegócio apoia Bolsonaro. Mas ele também apoiou FHC, Lula e Temer. Porém, o agronegócio não é o mesmo desde os anos do PT no poder. Seu poder econômico e político cresceu sobremaneira, sua penetração no país também, como a figura abaixo relativa à soja ilustra.

Nos anos do PT, os incentivos materiais multiplicaram o plano Safra, a formação de monopólios foi incentivada, obras cruciais do PAC se concentraram no escoamento de soja, em formação de estradas secundárias cruciais para que o latifúndio fornecesse gado, porcos, frangos às fábricas gigantes. E houve virtual paralisia da reforma agrária, com Lula e Dilma batendo recordes de falta de assentamentos, recordes que só foram superadas pelos golpistas Temer e Bolsonaro. Com essas características, não surpreende quanto a “bancada do boi” e a CNA (então presidida por Kátia Abreu) foram um pilar do apoio parlamentar aos governos petistas.

Com seu poder aumentado, o agronegócio quis mais e assim então se entende seu giro político com o impeachment. E eis sua relação com Bolsonaro, com um salto na devastação ambiental via centenas de novos agrotóxicos liberados e com a queima do Cerrado e da Amazônia, como desenvolvido por Yuri Costa em retrospectiva deste ano.

Porém, há que se olhar além do agronegócio. Seu papel crescente no PIB nacional implica não somente na força de Amaggi, JBS/Friboi, Bungee, etc. Significa um deslocamento parcial da economia e da política rumo ao sul e ao interior do país. Implica na formação de cidades médias, na formação de novas classes médias, de novos pequenos proprietários em proporção superior à média nacional.

Desenvolve-se uma nova classe social que vive de serviços urbanos, mas também da gestão financeira e tecnológica dos campos. E junto aos novos proprietários, também surge um novo proletariado, em grande parte ainda hegemonizado por essas camadas burguesas e pequeno-burguesa. E então aí se pode ver um traço crucial do que o PT plantou e Bolsonaro colheu, como escrevíamos em março.

A cúpula exportadora do agronegócio, com forte penetração imperialista, monopolizada por 6 a 10 empresas que detêm a maior parte dos silos, fábricas de processamento, e a logística, mantêm uma relação dupla com Bolsonaro. Ela está representada no governo pela presidente da CNA, Tereza Cristina, emulando a relação de Kátia Abreu com Dilma, mas atua tal como Rodrigo Maia, a Globo e o “centrão” em conter arroubos de política externa trumpista e de devastação ambiental que afetem seus negócios. Assim se entende como Maggi, o rei nacional da soja, criticou a política ambiental de Bolsonaro. E também é imprescindível ver o que se desenvolve no campo brasileiro, e particularmente na Amazônia como vinculado a disputas imperialistas como desenvolvido em “A crise amazônica como marco para refletir o lugar do Brasil nas disputas imperialistas e “A Amazônia sob o fogo de diferentes projetos capitalistas.

Abaixo da cúpula monopolista e imperialista estão os interesses fundiários, uma classe social cada vez mais fundida com o capital financeiro, vinculando suas produções a mecanismos de hedge, créditos de recebíveis agrícolas e outras ferramentas de destaque na BMF/Bovespa. E abaixo desses burgueses produtores de soja e carne estão novas classes médias de gerentes de fazenda, de gerentes de concessionárias de tratores, de empresas de análise química de solos, de melhoria genética de gado, etc. Nesses setores, o apoio a Bolsonaro é mais entusiástico e isso aparece em cada estatística nacional de aprovação do governo. E assim se entende como a soja lavou as mãos das queimadas na Amazônia, e outra fração burguesa se vincula mais diretamente à devastação, como afirmou a socióloga Mariana Chaguri em entrevista.

Assim também se entende que em cada estado onde há mais forte agronegócio há uma desproporção em relação a média nacional de pessoas “empregadoras” em relação à população economicamente ativa, como desenvolvido em “Realidade objetiva e potencial subjetivo: estatísticas sobre classes sociais a 8 meses de Bolsonaro” do qual reproduzimos uma tabela da PNAD.

A demografia incentivada por uma década de incentivos materiais e políticos ao agronegócio exportador de commodities criou e fortaleceu classes sociais, do Rio Grande do Sul ao Pará e Roraima, passando pelo cada vez mais importante Paraná, que foram pilares no golpismo e são pilares para o bolsonarismo.

Esse desenvolvimento específico das classes sociais no interior do país é parte importante para pensar os desfechos que houve na crise orgânica até aqui e especialmente quando houve “desenlaces” [provisórios e instáveis até o momento] que deram papel maior a camadas sem voto como militares e juízes, cujos oficiais são preponderantemente recrutados no sul e no interior do país. Essa reflexão vincula-se a pensar os desenvolvimentos da crise orgânica i, e em especial momentos quando as ações dessas camadas confluem com os interesses das finanças, como argumentava Gramsci, e desenvolvemos em estudos sobre os militares como fez Thiago Flamé em “Os militares voltam à política, mas com qual política” e sobre o judiciário neste artigo “O judiciário e os autoritarismos, o que 3 casos mostram da crise orgânica”.

Proletariado precário e uma hegemonia baseada no consumo

Mas o Brasil não se resume a Pato Branco de onde saiu Dallagnol, Maringá de Sérgio Moro, Goiânia de Caiado, ou Cuiabá de Mendes e Maggi, muito menos se resume à burguesia e à classe média ali desenvolvidas. Elas precisam de sangue e suor proletários, e estes são cada vez mais são mulheres e negras. E o trabalho é cada vez mais precário, há mais dupla e tripla jornada.

Os recordes de emprego durante os governos petistas foram atingidos em base a um salto sideral em terceirização e salários inferiores a 2 mínimos. Partindo dessa base, Temer avançou com a reforma trabalhista e Bolsonaro agora com a lei da “liberdade econômica”, que impõe o trabalho aos domingos e a retirada de direitos trabalhistas da juventude.

Mas o proletariado em todo país é crescentemente feminino, especialmente em terreno de desenvolvimento rápido do agronegócio, como mostramos em “Proletariado, sujeito e predicado feminino no país de Bolsonaro”. Por exemplo, no Paraná, a participação feminina cresceu quase 9% entre 2012 e 2019, já alcançado ali 52% da população economicamente ativa.

Desse modo, entende-se como o reacionarismo do bolsonarismo “nos costumes” não tinha nada “cortina de fumaça” como falava parte do petismo, inclusive Lula. Trata-se de buscar impor a divisão do proletariado, de reforçar o patriarcado para aumentar a exploração capitalista como desenvolvido em “Patriarcado do governo Bolsonaro: opressão da mulher como parte de garantir os ajustes” e aprofundando no manifesto publicado pelo grupo de mulheres Pão e Rosas.

A discussão petista de “cortina de fumaça” atinge não somente questões da relação de patriarcado e capitalismo, mas também a educação, principal pólo social de oposição a Bolsonaro, que não pôde se desenvolver graças a ação consciente das direções sindicais da CUT, CTB e da direção estudantil da UNE, tal como desenvolvido em retrospectiva do ano pela juventude revolucionária e anticapitalista Faísca.

A educação e os ataques do bolsonarismo, até a sua explosão nas ruas, também foi tratada pelo petismo como “cortina de fumaça”. A vinculação do projeto do bolsonarismo para a educação com seu projeto para o capitalismo no país foi abordada em “O Escola sem partido e a reforma do ensino médio: para além da cortina de fumaça”.

Com a discussão de “cortina de fumaça”, contribuíram a fraturar a classe trabalhadora, distanciar cada indignação com temas democráticos dos temas econômicas, aceitando avanços reacionários e capitalistas em um e outro.

O proletariado se tornar a cada dia mais feminino e mais negro torna a necessidade de olhar o mundo com os olhos das mulheres não somente um imperativo de qualidade revolucionária, mas também um aspecto imprescindível para unificação das fileiras proletária e para que aquelas que mais sofrem com o velho e são maioria sejam protagonistas do enfrentamento a Bolsonaro, ao patriarcado, ao racismo e ao capitalismo, como desenvolvido por Letícia Parks em “Enxergar 2020 com os olhos das mulheres negras.

A posição do PT diante da relação ataques democráticos-ataques econômicos e sociais não poderia ser diferente. O partido não somente é implementador de parte da agenda neoliberal de Guedes e Bolsonaro onde governa, como desenvolvido por Ítalo Garcia em “2019, ano que os governadores do Nordeste ajudaram Bolsonaro nos ataques, como também toda a hegemonia construída nos tempos lulistas não foi construída, tomando os indivíduos como parte de classes sociais, ou sequer como portadores de direitos, mas como consumidores e entusiastas da conciliação. Se até ontem cabia incentivar os trabalhadores a pensar que o que for bom para FIESP é bom para o chão da fábrica, como estranhar que uma parcela dos trabalhadores tenham abraçado o pato com entusiasmo?

A construção de discursos do eleitor-consumidor varia de Lula, a Ciro ou Doria, mas também é parte constitutiva do “cidadão de bem” (e bens) de Bolsonaro, como desenvolvido em “O paraíso em 12 parcelas: o cidadão consumidor no lulismo e no bolsonarismo”. E com tanto foco no consumo e na propriedade não é de se estranhar que a política de segurança do PT tenha sido de reforçar os aspectos repressivos e encarceradores do racismo do Estado brasileiro.

Também a bancada da bala muito se alimentou dos anos de PT, seja com a escola de repressão da MINUSTAH no Haiti, cujos generais povoam o ministério de Bolsonaro, seja com o uso crescente de “Garantias da Lei e da Ordem”, com a criação da Força de Segurança Nacional, das UPPs e de um salto na população, negra e pobre, encarcerada.

Os anos de lulismo foram anos de discurso hegemônico de ascensão social pelo consumo baseado no crédito e trabalho precário, e também anos que não faltavam elogios de Datena e Wagner Montes a Lula. Crediário e programas como Cidade Alerta acompanharam o voto 13 e são uma raiz para entender o terreno que Bolsonaro já encontrou semeado.

O estado é laico, mas graças a Deus temos voto evangélico

É inegável como a presença de discursos milenaristas, escatológicos ou do retorno de Cristo, ganham força. Inegável assim como a ostensiva presença evangélica nas principais fileiras de apoio a Bolsonaro. Elas, junto ao olavismo, adoram propagar críticas ao “marxismo cultural”, trazendo a terreno nacional uma forma dessa vertente internacional como desenvolvido por Simone Ishibashi em “A invenção do marxismo cultural e do politicamente correto e seu uso pela ultra-direita e militares”, “Sobre a promíscua relação entre o capitalismo, a ultradireita e a bancada da bíblia contra o laicismo” e “Imperialismo, neopentecostais e sionistas: a que se remete e a quem serve essa unidade”. A força e audácia de hoje é continuidade e descontinuidade do peso angariado pela “bancada da Bíblia” nos governos petistas.

O vice de Lula foi filiado a um partido evangélico para marcar esse matrimônio político, que envolveu recuar em cada questão que tocava aos direitos reprodutivos das mulheres, à educação sexual e aos direitos da população LGBT, do chamado “kit gay” à “carta ao povo de Deus” de Dilma em 2014. Crivella, Feliciano e Magno Malta foram parte crucial da costura eleitoral do petismo e de sua sustentação parlamentar.

O avanço evangélico no país é inseparável da miséria capitalista, e estudos comprovam uma maior taxa de conversão onde há menor IDH, maior migração interna e maior desemprego. Essa relação ilustra a contradição entre posições políticas e morais fortemente conservadoras e fenômenos sociais de degradação capitalista que ensejam a busca nestas igrejas de uma maneira de suspiro crítico do oprimido e também de aceitação da miséria capitalista.

A interpenetração dos opostos

Tal como no fenômeno de formação de novas camadas de proprietários no interior do país e sua forte base de apoio para Bolsonaro, também surge ali com maior força sua potencial coveira: um novo proletariado predominantemente feminino. O avanço evangélico, tão flagrantemente reacionário se tomamos ataques a cultos afro-brasileiros e se tomarmos seus mais famosos políticos e pastores, também é permeado de contradições. E mesmo no Rio de Janeiro, tão neopentecostal, vemos mulheres evangélicas trabalhadoras terceirizadas da saúde entrando em greve contra o prefeito-bispo da Universal.

A seu modo, a conciliação e a corrente mais associada no imaginário político nacional ao reformismo, o PT e Lula, semearam o campo para vários dos mais sólidos pontos de apoio à sua antípoda política, o bolsonarismo. Não se trata aqui de opostos dialéticos. Não se trata de revolução versus contra-revolução, mas de lulismo versus bolsonarismo, de perspectivas com certas continuidades e também importantes descontinuidades do que fazer do capitalismo no Brasil. Porém, nesses choques políticos, econômicos e sociais, pode-se desenvolver o que vá além, pode se desenvolver uma crítica à conciliação, como tanto remarcamos no Esquerda Diário, e importantes intelectuais tem ganhado atenção por também ressaltar isso, como faz o filósofo uspiano Vladmir Saftale em diversos artigos e nessa entrevista.

O desenvolvimento social, econômico e político brasileiro dos anos recentes exemplificam uma das leis da dialética mais apreciadas pelo revolucionário russo Vladimir Lênin: a interpenetração dos opostos. Desde aí é produtivo pensarmos a superação/suprassunção não somente de Bolsonaro mas do capitalismo. Como marcado no livro “Brasil Ponto de Mutação” e em seus debates de lançamento, não é um problema que começa nem termina com Bolsonaro.

O que o lulismo ensejou de bolsonarismo coloca a necessidade de compreensão, mas também de ativamente desenvolver as perspectivas estratégicas, materiais e práticas para uma esquerda anticapitalista e revolucionária, que supere o petismo para poder de fato enfrentar as bases capitalistas que ensejaram o golpismo primeiro e o bolsonarismo depois.

A modo de conclusão, vale retomar conclusões políticas do artigo de Thiago Flamé sobre seminário de dialética, promovido pelo MRT:

O que buscamos construir diuturnamente são as condições para que as contradições de classe que atravessam o capitalismo, hoje apenas latentes e contidas na polarização entre petismo e bolsonarismo, desenvolva-se em toda sua potência. Essas contradições trazem a possibilidade não manifesta de o proletariado irromper como sujeito que luta não só para conservar suas condições de existência em meio à degradação provocada pela crise do capitalismo, mas, a partir dessa luta, colocar-se a perspectiva de construção de uma sociedade sem Estado, sem exploração e opressão.

Não esperamos passivamente pelo momento em que os termos do antagonismo atual se modifiquem, buscamos ativamente construir o momento em que não só governo Bolsonaro possa perecer, mas, junto com ele, o conjunto do sistema capitalista que o atual presidente do Brasil tão bem simboliza, ambos derrotados pela luta da juventude e da classe trabalhadora. Confiamos que essa construção não será em vão e que mais cedo do que tarde a noite bolsonarista será interrompida pelo sol nascente, que iluminará, num clarão, a possibilidade de novo mundo a ser construído sobre escombros da sociedade capitalista.

Jair Bolsonaro vê socialismo em tudo. Logo chegará a hora em que terá que acertar as contas com o verdadeiro socialismo.




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