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Dia 28 de setembro se comemora o Dia Latino Americano e Caribenho de Luta Pela Legalização do Aborto. Mas o que o PL 435/2019, o chamado “PL da cesárea”, da deputada estadual de São Paulo Janaína Paschoal (PSL) tem a ver com isso?

Marília Rochadiretora de base do Sindicato dos Metroviários de SP e parte do grupo de mulheres Pão e Rosas

quinta-feira 26 de setembro de 2019 | Edição do dia

Quando discutimos direito ao parto e ao aborto, partimos de um mesmo ponto: o corpo da mulher e seu direito de decidir. Em primeiro lugar é necessário dizer que a deputada tem razão quando diz que existe uma discussão ideológica por trás da posição contra seu Projeto de Lei. Quando vemos os mesmos setores fervorosos contra a legalização do aborto e contra a autonomia da mulher no caso de uma gravidez indesejada, se colocarem a favor de uma suposta autonomia da gestante, dizendo que ela deve poder optar pela cesárea, já é de se desconfiar. Quando vemos quem são os autores e defensores desse PL, a agilidade de Doria para votar em regime de urgência e implementar o PL no estado de São Paulo. Quando observamos os aplausos do Crivella e do CREMERJ no Rio de Janeiro, os mesmos setores que proibiram os médicos aceitassem plano de parto das gestantes, proibiram as doulas como acompanhantes e disseram que a violência obstétrica não existe. Tudo isso nos leva então a questionar que autonomia seria essa que a Janaina Paschoal fala para defender seu PL. Veja mais sobre o PL aqui.

Não defendem a autonomia das mulheres, se utilizam dessa palavra para de forma totalmente hipócrita manter e aprofundar o mais estrito controle sobre os corpos das mulheres. A medicalização do parto é uma forma de controle do corpo da mulher por alguém que não é ela. Os mesmos que nos negam o direito a decidir sobre nossos corpos e nossas vidas, se queremos ou não ser mães, querem controlar nossos corpos até mesmo na hora do parto. Além disso, é ideológico porque querem nos convencer de que somos fracas, de que somos o sexo frágil, que não aguentamos a dor do parto e que devemos aceitar a violência como algo natural. Os mesmos que dizem não existir violência obstétrica, são os que a praticam e naturalizam essa forma institucional de violência, e aterrorizam as mulheres dizendo que para não passar por isso precisam fazer uma cesárea. Tudo em função de um sistema mais produtivo de nascimentos, mais rápido, confortável, controlado e lucrativo para os médicos, para a indústria farmacêutica e afins, mas não para as mulheres e bebês.

Portanto, que esses mesmos setores sejam contra a legalização do aborto e favoráveis ao PL da Janaina, já seria suficiente para se questionar que alguma relação deve ter. Tem, e é ideológico, sim.

Porém, apesar de fracos e de forma alguma baseados em evidências científicas, a deputada diz ter argumentos para defender sua opinião (mais uma vez ressaltando que é a opinião de uma leiga, já que ela não é profissional na área). Aqui você pode conferir a opinião de um dos obstetras mais respeitados no meio do parto humanizado em São Paulo. Aqui, aqui e aqui você pode conhecer a posição de Gilson Dantas, médico e colaborador do Esquerda Diário. Um dos argumentos que ela utiliza é de que a cesárea iria evitar a morte materna e a paralisia cerebral nos bebês recém-nascidos. Nada pode causar mais asco do que se utilizar de um argumento tão sensacionalista com um problema tão grave de forma tão leviana. No posicionamento da Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo consta todas as informações baseadas em estudos e evidências científicas de porque esse argumento é uma mentira. Além disso, chega a ser sórdido se utilizar desse argumento errôneo para tentar responsabilizar as mães que optam pelo parto normal caso algo dê errado (normalmente por inexperiência, imperícia ou intervenções desnecessárias da equipe). E sobre o risco de morte materna, a mesma associação argumenta que o aumento das cesarianas esta associado com hemorragias após o parto, e que no Estado de São Paulo, onde o índice de morte materna cresceu de 35/100000 nascidos vivos em 2012 para 50/100000 nascidos vivos em 2017, a segunda causa de mortes maternas se devem a hemorragias, o que contraria totalmente o argumento da deputada. Em todos os casos de riscos para as mães ou bebês, as mulheres negras e pobres são as que estão mais expostas e vulneráveis, pois a grande maioria depende do sistema público de saúde e são as que seriam mais atingidas pelo PL da deputada Janaína Paschoal.

Seguindo os “argumentos” da deputada, ela diz que defende a “autonomia” das gestantes em optar pela “via de parto”. Pois bem, vejamos. Autonomia pressupõe informação de qualidade, esclarecimento, reflexão. Uma grande parte das mulheres opta pela cesariana a pedido por medo da dor do parto normal. Aí já está o primeiro problema de falta de esclarecimento e informação. Além de existir um grande terrorismo em torno da dor do parto praticado pelos médicos por motivos escusos de interesse particular, essas mulheres são informadas e é colocado à disposição delas métodos (farmacológicos ou não) para alivio da dor? Raramente, ainda mais no sistema público, onde infelizmente não se tem nem equipamentos nem profissionais suficientes para isso. Além disso, o PL não deixa claro sobre qual tipo de cesárea estamos tratando, então isso pode dar margem para uma cesariana a pedido durante o trabalho de parto (mesmo sem indicação), caso em que a cesariana tem ainda mais risco de hemorragia e infecção.

Os benefícios do parto normal dificilmente são esclarecidos para as gestantes pelos obstetras “tradicionais”, desatualizados sobre as evidências científicas, em geral bem preparados para lidar com cirurgias, ambientes controlados e situações de emergência, mas mal preparados para assistir a um parto de risco habitual sem intervenções desnecessárias. Além de ter uma recuperação mais rápida que a cesárea, o parto normal também tem menor risco de infecção, o útero retorna ao seu tamanho normal mais rapidamente e favorece a amamentação. Para os bebês, os benefícios incluem maior facilidade para respirar e receptividade ao toque, por causa da passagem pelo canal vaginal, maior atividade, além de não precisar ficar em observação e poder ficar direto no colo da mãe.

Por outro lado, os riscos da cesárea, em menor ou maior grau de acordo com o tipo de cesárea que estamos tratando (eletiva, a pedido, de emergência ou intraparto a pedido), também normalmente não são ressaltados, são negligenciados ou até mesmo escondidos das mães. Entre os mais graves para a mãe estão as complicações anestésicas, hemorragia, infecção, dificuldade de recuperação pós parto, dificuldade na produção de leite materno, riscos a longo prazo como para futuras gestações (placenta previa, placenta acreta ou outras anormalidades placentárias, ruptura da cicatriz uterina), histerectomia (remoção do útero), ruptura bexiga ou intestinos e eventos tromboembólicos. Isso para além dos riscos cirúrgicos habituais, como em qualquer cirurgia deste porte. Para o bebê as consequências podem ser graves, como dificuldade e morbidade respiratórias, separação da mãe para observação, corte prematuro do cordão umbilical (que priva o bebê de boa parte do oxigênio e sangue que ainda permanecem no cordão até o mesmo parar de pulsar), iniciação ou duração diminuída da amamentação e complicações por prematuridade. Nesse estudo você pode entender melhor os risco e benefícios do parto normal e da cesárea. Entre os riscos mais graves está a prematuridade iatrogênica, que se dá por cesarianas agendadas sem indicação ou por erro no cálculo da idade gestacional. Esse tipo de intervenção médica desnecessária foi o que ocasionou o aumento da prematuridade para 41% no Brasil.

O parto normal também tem riscos, é claro. Porém, são diminuídos em relação à cesárea, além do que, com uma equipe capacitada na assistência ao parto humanizado é possível antever as situações em que é necessária uma reversão para a cesárea. Nesses casos, e em outros em que é bem indicada, a cesárea é uma cirurgia importantíssima, que pode salvar a vida da mãe e/ou do bebê.

O maior problema da lógica e da ideologia que estão por trás do PL da Janaína Paschoal é justamente transformar desvios que são raros dentro da normalidade em patologias, para poderem ser controlada e manipuladas tecnicamente. É justamente aqui que se liga ao problema da autonomia e da capacidade da mulher de decidir sobre o próprio corpo. Além de tudo, o PL parte de uma visão, em consonância com a maior parte dos médicos conservadores da medicina tradicional, da mulher como infantilizada, ainda mais gestante, de que ela seria incapaz de decidir por si mesma e portanto não precisa ser informada sobre todas as consequências das suas decisões, ficando vulnerável aos argumentos dos médicos que são “esclarecidos”.

Assim também com a violência obstétrica onde, por falta de esclarecimento sobre seus direitos, muitas mulheres aceitam como natural porque os médicos dizem que é necessário passar por isso para parir (e muitos defendem que o termo violência obstétrica não existe justamente para poder praticar livremente).
Além dos argumentos insustentáveis a seu favor, o PL ainda é irresponsável ao não esclarecer de que forma será implementado no SUS. O serviço público hoje carece de leitos, equipamentos adequados nas UTIs, profissionais e suprimentos. Ao contrário da “ditadura do parto normal” como prega Janaína Paschoal, o que existe hoje no Brasil é uma epidemia de cesáreas, o segundo país do mundo com maior número de cesáreas (52%). Na rede privada o número chega a alarmantes 80%, quando o recomendado pela OMS e ANS é de apenas 15%. Como atender ao inevitável aumento do número de cesáreas na rede pública sem antes investir na saúde? A deputada é parte do partido do Bolsonaro, governo que faz cortes atrás de cortes nos direitos sociais, além de querer acabar com as leis trabalhistas e querer que trabalhemos até morrer com a reforma da previdência. Nesse sentido, é completamente absurdo querer sobrecarregar ainda mais o SUS de forma totalmente irresponsável, com um discurso demagógico de “autonomia”.

Esse problema se liga profundamente não somente com o direito ao nosso corpo mas com o direito à maternidade. Não nos deixam decidir sobre nossas vidas, se queremos ou não ser mães, e as mulheres que decidem (ou são obrigadas a) ser mães, não tem assegurado seu direito ao livre exercício da maternidade. As mães que passam por uma cesárea tem um tempo maior de recuperação do que as que passam pelo parto normal. Quem vai dar assistência à essas mulheres no pós parto? Quem e qual estrutura vai atender os possíveis bebês prematuros ou com complicações que nascerem pela via de uma cesárea desnecessária? Como as mulheres e bebes que realmente passam por uma cesárea bem indicada ou de emergência vão ter sua vaga garantida num sistema sobrecarregado por cesárea a pedido? Mais uma vez as que mais sofrem são as mulheres trabalhadoras, em especial as pobres e negras. Precisamos reivindicar lavanderias, restaurantes e creches públicas 24h, que atendam todas as famílias que necessitem. Para as famílias de trabalhadores, é necessário garantir 1 ano de licença maternidade e 6 meses de licença paternidade (afinal não é apenas responsabilidade da mãe cuidar do recém nascido), além das condições de ordenha nos locais de trabalho para garantir a continuidade da amamentação até dois anos de idade ou mais (conforme recomendado pela OMS e ANS).

Por fim, podemos dizer que o PL da deputada Janaína Paschoal não está nem um pouco preocupada em dar autonomia às mulheres, e sim em garantir ainda mais controle dos corpos das mulheres, em especial as mulheres negras e pobres. O que é necessário para melhorar os preocupantes índices de nascimento em São Paulo e no Brasil é investir na saúde pública de qualidade e na humanização do parto, através da contratação e capacitação de profissionais na assistência ao parto (obstetras, obstetrizes, enfermeiras obstétricas, anestesistas, doulas, pediatras etc), num programa de pré-natal que esclareça todos os riscos e benefício das escolhas da mãe com informação de qualidade e baseada em evidências científicas, com uma equipe que apoie sua decisão e não julgue ou amedronte. Que desde cedo se garanta informação através da educação sexual nas escolas, que pode esclarecer tanto em relação à vida sexual, diversidade sexual, métodos contraceptivos e também sobre as vias de parto. Que seja disponibilizado os métodos não farmacológicos para alívio da dor, bem como analgesia intraparto de qualidade, que possa aliviar a dor da mulher que assim deseje, ao mesmo tempo que mantem a progressão do trabalho de parto normal. Para garantir de fato a autonomia da mãe é necessário disponibilizar a assistência também ao parto domiciliar garantida pelo SUS, com equipamentos e profissionais necessários.

É claro que se, tendo real consciência e esclarecimento sobre os riscos da cesárea e benefícios do parto normal, a mãe ainda assim optar pela cesárea, seu direito de escolha deve ser respeitado. A deputada Janaína tenta nos imputar a posição de não respeitar a autonomia das mulheres, mas esse é um argumento falso, como demonstramos nesse artigo. No contexto atual de violência obstétrica; machismo e racismo institucional; falta de informação para as famílias; falta de equipamentos e equipes atualizadas e capacitadas na assistência ao parto humanizado; falta de assistência no pré e pós-parto para as mulheres em geral e para as que passam por cirurgia em particular; falta de estrutura para recepção ao recém-nascido que tiver complicações; médicos que só pensam em sua própria comodidade, produtividade e lucro; o buraco é muito mais embaixo. Nesse contexto, o PL não passa de uma imposição da cesárea de forma irresponsável, que pode levar a um aumento da morbidade materna e neonatal ou consequências a curto e médio prazo, mascarada por um discurso vazio e demagógico de “autonomia”.

Portanto concluímos que, não somente do ponto de vista ideológico e político, mas também do ponto de vista médico, essa ultra-medicalização do parto obedece essencialmente interesses econômicos da medicina capitalista. Ao invés de dar autonomia para a mulher, transforma um ato fisiológico numa intervenção brutal no seu corpo, mais uma vez tirando nosso direito de escolha livre e consciente. Com o parto cesárea, mais caro e mais tecnificado, se abre uma janela para aumentar a taxa de lucro da indústria de equipamentos hospitalares, indústria farmacêutica e tantas outras que lucram com esse parto "artificial", muito mais perigoso para a mulher e para o bebê e muito mais lucrativo para a indústria médica capitalista.

*Marília é mãe da Violeta (que faleceu vítima de anóxia neonatal) e do João Pedro, de 10 meses.

Leia outros textos da autora sobre o assunto (além dos já citados nesse artigo):

Vamos falar sobre parto e sobre respeito às mães e bebês?

Sobre o direito ao corpo, ao parto e ao aborto




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