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DEBATE: GREVE POLICIAL | Porque se pretender marxista e defender a greve policial é impossível

Nas últimas semanas o país foi tomado pela greve da polícia e seus efeitos, por conta da situação aberta no Espírito Santo, em que 130 mortes ocorreram. Como resposta a essa situação, no Rio de Janeiro está sendo enviado um contingente de 9 mil efetivos do exército. A greve policial, e as manifestações das esposas e mães dos policiais que bloquearam os quarteis e ocorrem em menor medida também no Rio de Janeiro, rapidamente foi apoiada pela esquerda, abarcando um leque que vai desde as posições do MAIS, PSTU e setores do PSOL. Debatemos aqui porque o apoio à greve da polícia nada tem a ver com uma posição marxista, ou mesmo de esquerda, seja do ponto de vista prático mais imediato, seja do ponto de vista teórico.

Simone IshibashiRio de Janeiro

terça-feira 14 de fevereiro de 2017 | Edição do dia

Novamente sobre o papel da polícia

Quando se enfrenta uma batalha, sejam greves, guerras ou revoluções, saber quem são os aliados e quem são os que devem ser combatidos é fundamental. No entanto, isso que é elementar passa longe das correntes da esquerda que apoiam a polícia e seus motins. A começar pela distorção que fazem sobre o que é a polícia, e para que serve, pois afirmam que a polícia seria parte da classe trabalhadora. Afinal recebem salários do estado, prestam concursos públicos, correto?

Erradíssimo. Todos os dias a realidade coloca diante de nós, da forma mais bruta, o que é a polícia. Não vê quem não quer. A polícia, como braço repressivo que atua em nome da manutenção da ordem feita para os ricos, protagoniza assassinatos e abusos contra os trabalhadores, negros e pobres sem cessar. De acordo com o Relatório da Human Rights Watch estima-se que na última década, a polícia do Rio de Janeiro matou mais de 8 mil pessoas. Isso não inclui os assassinatos não esclarecidos, que elevariam muito esse número. Sem falar nos desaparecidos pela polícia, como o pedreiro Amarildo símbolo das manifestações de junho de 2013, ou nas repressões aos trabalhadores e suas greves, como a ocorrida na última quinta-feira contra os trabalhadores da CEDAE no Rio de Janeiro.

Não deveríamos ter que gastar muitas palavras para concluir que a polícia, que tem como resultado de seu “trabalho” pilhas de cadáveres de pobres e negros, não tem nada a ver com os trabalhadores da Saúde, técnicos administrativos do Estado ou professores. Mas como nem os dados, nem a experiência vivida parecem bastar para convencer determinados setores da esquerda disso, recorramos novamente à teoria marxista.

Para definir o que é a polícia e qual é sua função social, há que se retomar a definição marxista do Estado capitalista, e como esse mantém sua ordem. Em sua obra fundamental, “O Estado e a Revolução”, Lênin diz que: “Como o Estado nasceu da necessidade de refrear os antagonismos de classes, no próprio conflito dessas classes, resulta, em princípio, que o Estado é sempre o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante que, também graças a ele, se toma a classe politicamente dominante e adquire, assim, novos meios de oprimir e explorar a classe dominada”.

E quem garante a face mais violenta dessa dominação? Precisamente a polícia. Isso é o que levou Lênin a afirmar que “o mais insignificante agente de polícia” tem tanta autoridade que impõe seu arbítrio como quer.

É possível que a polícia se alie aos trabalhadores?

Leon Trotsky, dirigente da revolução russa, organizador e máximo general do Exército Vermelho, debatia em sua obra “Revolução e Contrarrevolução na Alemanha” contra as ilusões da socialdemocracia alemã na polícia, durante os anos 1930. Naquela ocasião dizia que “um trabalhador que entra para a polícia deixa de ser um trabalhador, passa a ser um agente fardado da burguesia”. Em meio à revolução russa, sua caracterização sobre a polícia em resposta aqueles que defendiam “dividi-la e ganhar um setor” para o lado dos trabalhadores não era menos clara: “O desarmamento dos ‘faraós’ [apelido para a polícia] tornou-se uma palavra de ordem universal. A polícia é o inimigo cruel, implacável, odiado e odioso. Ganhá-los está fora de questão”[1] .

Se a polícia não se unificou aos trabalhadores nem com a grandiosa revolução russa de 1917, nem falar de como defender isso hoje é uma absurdidade. Em um artigo publicado no site do MAIS afirmam que com a persistência da greve policial “a resistência venceu”, e critica a política de Bolsonaro como “corporativista”. Criticam: “assim o programa da extrema direita quer melhores condições e mais estabilidade para as forças de repressão. Argumentam: um policial bem pago, vai reprimir mais, dar mais estabilidade ao Estado”. Isso só demonstra que a extrema direita representada de Bolsonaro tem muito mais consciência sobre a natureza social da polícia que o MAIS, o PSTU e todos os que defendem os motins da polícia.

Aqui está o MAIS, tal como o PSTU em que outrora atuavam, caindo no senso comum de que a polícia é violenta e brutalmente covarde na repressão aos trabalhadores, porque é mal paga e tem más condições de trabalho, argumento também defendido por Marcelo Freixo do PSOL. Esse último em debate ao Extra com ninguém menos que Flavio Bolsonaro, insistiu na necessidade de “valorizar a polícia” e instituir uma espécie de “plano de carreira”.

Vejamos. A polícia norte-americana tem um salário médio de US$ 55.410 por ano, o que equivale a R$124.118,40 por ano, ou R$ 10.343,20 por mês. A média do custo de vida no Brasil de acordo com a revista The Economist é 8,7% maior que a dos EUA. Mesmo assim, a polícia norte-americana matou apenas no ano de 2014 cerca de 1.172 pessoas, sendo que em 14 departamentos de polícia foram mortas apenas pessoas negras, mostrando que além de um elevado número de assassinatos é profundamente racista, como denuncia o Black Live Matters. Assim, crer que aumentar o salário dos policiais vai fazê-los reprimir menos, ou deixar de criar milícias que oprimem o povo como as do Rio de Janeiro, é nada mais que uma ilusão reformista.

Sobre serem “corporativistas”. Já dizia Marx que a existência determina a consciência. E a existência da polícia resume-se a reprimir trabalhadores e pobres. Não é de estranhar que nas manifestações contra o pacote de ataques de Pezão no Rio, a polícia defenda seus interesses corporativos, não se preocupe se os professores recebem ou não seus salários, e tenha negociado à parte o pagamento de seus salários, como ocorreu no final do ano passado.

Existe ainda o velho argumento do PSTU de que a greve policial desestabiliza a ordem. Sim, desestabiliza. Mas pela direita. O PSTU que sofreu uma amarga crise que culminou na separação dos setores que compõem o MAIS (que frente às greves da polícia têm a mesma posição) por conta do apoio do PSTU às manifestações da direita pró golpista, a maior prova de que nem toda desestabilização do governo é progressista. Deveria ter tirado lições. Bem como o MAIS, que rompeu justamente por conta da posição do PSTU que os colou à direita em relação ao golpe. Ao contrário disso, afirmam que “não apoiar a greve da polícia é abrir caminho à direita”. Mas a conclusão é justamente o oposto disso.

Fortalecer a luta real da classe trabalhadora real

O entusiasmo com a polícia e seus motins não raro tem como raiz o ceticismo com a classe trabalhadora real, e suas lutas. Isso porque a posição de que “desestabiliza a ordem” nega completamente a questão de que a desestabilização que favorece os trabalhadores é aquela feita em nome de seus interesses e com o seu método. E isso implica necessariamente independência de classe dos trabalhadores em relação à burguesia e seus agentes, dentre os quais figura a polícia.

Essa concepção não pode servir para preparar ações audazes dos trabalhadores, uma vez que uma organização superior da classe trabalhadora necessariamente passará por enfrentar a polícia do outro lado da barricada. E que os trabalhadores quando confiam em suas próprias forças, colocam em marcha toda a sua criatividade para achar uma via de armar-se e desestabilizar a ordem. Difundir ilusões na polícia como aliada, como fazem esses setores da esquerda, ou o MUSPE, que congrega sindicatos de polícia com os da Educação no Rio de Janeiro, é um desserviço para os trabalhadores. Como os professores poderão organizar ações radicalizadas a partir do MUSPE, que integra os sindicatos de polícia?

É chamativo o entusiasmo do MAIS, PSTU e setores do PSOL com os motins policiais, enquanto ocorre a importante luta da CEDAE, companhia de águas do Rio de Janeiro que está sendo ameaçada de ser privatizada por Temer e Pezão. Os trabalhadores da CEDAE estão protagonizando a luta operária mais importante hoje. Resistiram à repressão na frente da Alerj, doaram sangue para a população, e tem declarado a todo momento a solidariedade aos demais setores atacados, como a comunidade universitária da UERJ. É ao triunfo desses que a esquerda deveria estar integralmente dedicada hoje. Sindicatos e figuras da esquerda, como Marcelo Freixo, deveriam colocar toda sua força para chamar uma mobilização massiva, contra os ataques, e especialmente em defesa da CEDAE.

É a partir do desenvolvimento do combate dos trabalhadores da CEDAE, que junto aos professores, trabalhadores da Saúde, estudantes das universidades como UERJ, que se pode ter a unidade necessária para vencer os ataques. Assim é que se poderia constituir uma verdadeira frente-única dos trabalhadores, em base à independência de classe. Isso abriria uma nova perspectiva não apenas à luta contra os pacotes estaduais, mas a todos os ataques nacionais do governo golpista de Temer, podendo se transformar numa plataforma para os trabalhadores de todo o país. Essa é a tarefa urgente para hoje, pois é a partir disso que se pode abrir uma correlação de forças favorável para passar de defensiva à ofensiva. Da mesma forma, a esquerda deveria ligar essa luta a uma ampla campanha por fora o exército do Rio de Janeiro.

Não apoiar a polícia está intimamente ligada a uma estratégia revolucionária baseada na independência de classe. Só assim se pode dar uma saída de fundo, e não cair na utopia de uma polícia humanizada e democrática típica das visões da esquerda reformista. A luta pela independência de classe é, portanto, parte da estratégia de lutar por um governo de ruptura com o capitalismo, impondo um verdadeiro governo dos trabalhadores, e não mais um governo da esquerda reformista. Mas para isso a classe trabalhadora deve se dotar de uma estratégia revolucionária, o que inclui desmoralizar a polícia, não tentando “ganha-la para o seu lado”, como pretende a esquerda com quem debatemos aqui, mas pela constituição das milícias operárias, e de sua ação revolucionária, o que só vai chegar a se desenvolver se desde já os trabalhadores avançam implacavelmente na sua consciência e independência de classe, e a esquerda atua contra com sua política.

[1] A História da Revolução Russa, volume 1, Leon Trotsky




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