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POLÊMICA | Podemos em 2017: da ilusão reformista a se tornar o pé esquerdo do regime

O ano de 2017 esteve marcado por uma maior adaptação do Podemos às instituições e “regras do jogo” do Regime de 1978. Essas são as chaves do acelerado processo de domesticação do Podemos que declaram, agora mais que nunca, a necessidade de construir uma outra esquerda, que seja anticapitalista e revolucionária.

Diego LotitoMadri | @diegolotito

Josefina L. MartínezMadrid | @josefinamar14

segunda-feira 25 de dezembro de 2017 | Edição do dia

Foto: EFE/Alejandro García

A falsa “equidistância” na Catalunha que favoreceu o regime espanhol

As eleições catalãs foram um duro golpe para a estratégia eleitoral do Podemos. Catalunha Em Comu-Podem, integrado pelos Comuns de Ada Colau e o partido catalão de Pablo Iglesias, retrocedeu de 11 a 8 deputados no Parlamento, pressionado entre o ascenso da nova direita de Cidadãos e a persistência do bloco soberanista. A falsa “equidistância” que essa corrente quis manter diante do ataque conservador do regime (via artigo 155) contra o movimento democrático catalão que reclamava seu direito a decidir em um referendum e a proclamar uma República independente, sem dúvidas foi cobrado.

Esse resultado, decepcionante para Iglesias e o resto da direção do Podemos, se deu no marco de uma coalizão montada na surdina, nada menos que depois da drenagem interna do secretário geral do Podem, Albano Dante Fachin, e a instauração de uma “gestora” (que já naquele momento, e muito atinadamente, denominamos como o “155” de Iglesias no Podem).

Durante a campanha, o discurso de Xavier Domenech e Pablo Iglesias foi se opor a “ambos” os nacionalismos (equiparando o nacionalismo opressor do Estado espanhol com o nacionalismo oprimido do povo catalão), com o argumento de que o debate sobre a independência era só uma “cortina de fumaça” para não falar das questões que “realmente importam” como programa social. O problema é que essa falsa equidistância, apesar de questionar com fundamento a direção burguesa e pequena-burguesa do processo, os colocou ao lado do nacionalismo opressor e do bloco “constitucionalista monárquico”, que impôs um golpe institucional via artigo 155, a ocupação da Catalunha com destacamentos policiais e da guarda civil e a prisão e perseguição ao Governo catalão.

Na questão catalã, Podemos não passou na prova. Ao se negar a adotar uma posição democrática consequente, ainda mantendo uma posição não independentista, a formação deixou clara sua subordinação ao bloco constitucionalista. Sua proposta de “referendum pactuado” com o regime atual só foi uma forma ambígua de encobrir seu respeito pela legalidade do Regime de 1978 que nega o direito de autodeterminação. A única posição democrática consequente, pelo contrário, era defender até o final o direito à autodeterminação e, portanto, inclusive de separação, do povo catalão. Ou seja, o que milhões de catalãs e catalães votaram no referendum do 1-O, apesar da repressão da polícia... e que esses mesmos milhões voltaram a confirmar no 21D.

Tentando “explicar” seu retrocesso eleitoral na Catalunha, o Podemos diz que como subproduto da “unilateralidade” das posições do bloco monárquico e do bloco soberanista (outra vez equiparando a ambos), cresceu a direita. Já antes, Pablo Iglesias tinha afirmado que os independentistas “contribuíram a despertar o fantasma do fascismo”. Uma infâmia que chegou ao cúmulo de que um dos referentes ideológicos do Podemos, Juan Carlos Monedero, justifique o golpe institucional do 155 na televisão, culpando o processo catalão de que haja presos políticos, que o PP tenha “recuperado oxigênio” e que “os fascistas estejam crescendo”. Uma das declarações que o Podemos e os “comuns” se calam.

O referendum do 1-O e seu resultado, apesar de terem sido negados pelo Podemos, era algo que poderia ter lhes permitido disputar a hegemonia do movimento democrático em curso nas direções como o partido de Puigdemont ou o ERC, que desnudaram o neorreformismo (e isso inclui seus sócios de Esquerda Unida e líderes “comunistas”, como o espanholista Paco Frutos) como a última trincheira “de esquerda” em defesa da ordem legal e constitucional vigente.

O governo ajustador do Podemos e Agora Madri

A aprovação do Plano Econômico Financeiro (PEF) de Madri, que inclui um recorte de mais de 580 milhões, junto com o fechamento de Sánchez Mato (IU) como vereador da Fazenda, para cumprir com a “regra do gasto” imposta por Montoro, marcou um ponto de inflexão no governo de Agora Madri. A “prefeitura da mudança” mostrou para quem quiser ver que não pretende ir mais além de uma gestão “eficiente” e “decente” dos planos neoliberais ditados pelo PP ou desde Bruxelas. E para isso, a ex-juíza Manuela Carmena está disposta também a recortar inversões sociais como forma de cumprir com a “legalidade” estabelecida.

Unidos-Podemos sempre apresentou aos governos de Madri, Barcelona e outras cidades o “exemplo” que seguiriam se governassem o Estado. Mas quais foram as melhorias na vida real de milhões de trabalhadores e trabalhadoras, desempregados, precários, jovens, imigrantes ou para os movimentos sociais, desde que a esquerda reformista espanhola chegou ao poder municipal? Nenhuma.

Desde que chegaram no poder, as chamadas “prefeituras da mudança” não tentaram reverter as privatizações do ciclo anterior, nem anular as adjudicações de serviços públicos a grandes construtoras. Aceitaram sem questionar a ditadura dos bancos que deixaram sem casa a milhares de famílias, e muito menos se propuseram a terminar com a precariedade trabalhista e o desemprego juvenil.

Em relação a política de gasto e pagamento da dívida, o governo de Agora Madri transformou em virtude o que desde uma perspectiva de esquerda até há alguns anos só se podia ver como uma capitulação: o pagamento pontual e “eficiente”, inclusive adiantado, da dívida pública. Para construir esse discurso se deixou de lado que a dívida descomunal dos Estados, em diferentes níveis, foi funcional à banca privada e às grandes empresas, às políticas da União Europeia e aos organismos financeiros internacionais. Agora Madri não só abandonou o programa de “não pagamento”, mas também o programa – mais moderado – de uma “auditoria” para separar “dívida legítima” de ilegítima. A redução da dívida em Madri é mostrada como um triunfo, sem dizer que isso foi e é às custas de pagar e pagar sem questionar, subordinando qualquer tipo de inversão e planificação econômico social a essas coordenadas, tal como dita o governo central e o neoliberalismo “austericida” dos últimos anos.

Nada do que a Prefeitura do Agora Madri fez, incluso o pacote de ajuste, foi questionado pelo Podemos. Pelo contrário, Pablo Iglesias, saiu imediatamente a se alinhar com Carmena: “É razoável que as equipes de governo se reconfigurem. Acredito que a Prefeitura de Madri está sendo um exemplo de gestão e vai seguir sendo para toda a Espanha”. Mas inclusive desde a Esquerda Unida, a corrente de Anticapitalistas no Podemos e setores ligados a Ganhemos, que saíram defendendo o papel do cessado Sánchez Mato na Prefeitura e questionaram a aprovação do plano econômico sob o signo de Montoro, seguem reiterando seu apoio ao governo municipal de que formam parte.

Agora Madri e Podemos reproduzem assim, a sua escala, o mesmo curso que seguiu o Syriza na Grécia, quando o governo de Alexis Tsipras capitulou diante dos ditados da Troika, a custa de reduzir pensões e privatizar metade da Grécia.

Ao se subordinar às políticas neoliberais impostas por Montoro e pelo PP, Agora Madri se liquidou definitivamente como “projeto de mudança”. Porque, como dizíamos em outro artigo recentemente, não pode haver nenhum projeto de mudança a serviço dos trabalhadores e dos setores populares se não parte do princípio elementar de que é melhor quebrar a lei, do que afundar o povo. Pelo contrário, para Carmena, Pablo Iglesias e Unidos Podemos, parece que a regra é: “melhor cumprir com a lei, do que cumprir com o povo”. O municipalismo reformista, como era de se esperar, culmina assim um itinerário.

Pacto com o PSOE em Castilla-La Mancha

Se faltavam elementos para demonstrar o nível de domesticação que chegou o Podemos, no mês de julho deste ano se concretizou o ingresso do Podemos ao governo do PSOE na Castilla-La Mancha, um novo salto na adaptação ao regime, integrando-se ao governo da ala mais “direitista” do PSOE.

A direção do Podemos tentou mostrar esse movimento como um passo para conseguir um “governo da mudança” com o PSOE a nível estatal, chamando a Pedro Sánchez a concretiza-lo. Como dizíamos naquele momento, o “compromisso histórico” do Podemos com o PSOE, peça chave do regime político, se assemelha – como farsa – ao acordo do PCI com a Democracia Cristã em 1977, para conjurar o perigo do “autoritarismo”. Em sua versão mais leve, agora o fundamento do pacto é expulsar o PP, que representaria o “polo da restauração” frente ao “polo da mudança”, com um PSOE que balança à esquerda, segundo interpretação de Pablo Iglesias e Iñigo Errejón em um artigo publicado em 20 Minutos a finais de julho, o primeiro que escreviam juntos depois de muito tempo de guerra interna.

Mas não somente este último fato, mas também desde então, o PSOE se transformou, como era de se esperar, em um pilar chave da ofensiva restauradora do regime, dando apoio incondicional à aprovação do artigo 155 contra a autonomia catalã, aprovando a repressão e a prisão de políticos independentistas. Ainda assim, Podemos não rompeu seu pacto de governo na Castilla-La Mancha. Pelo contrário, essa semana voltou a ratificar seu andamento, votando a favor dos pressupostos de 2018.

Os pactos com o PSOE revelam uma vez mais qual é o projeto de regeneração do regime político “desde a esquerda” que promove o Podemos, uma operação oposta ao questionamento a esse mesmo regime bipartidista que emergiu desde o 15M em diante, com o sucinto, mas claríssimo lema: “PSOE e PP são a mesma merda”.

Do fim do ciclo da esquerda neorreformista a uma nova hipótese anticapitalista

Negação do direito de autodeterminação e contra a monarquia, justificação dos ajustes, pactos com o PSOE, abandono da ideia de impulsionar processos constituintes independentes do regime, moderação programática e política. Todos e cada um desses posicionamentos políticos são expressão não só da adaptação estratégica do Podemos ao regime político e aos mecanismos básicos da democracia liberal, mas também de seu próprio fim de ciclo como alternativa política de “esquerda”.

O relato da política para “ilusionar”, dos “sorrisos”, da “gente comum”, da “gente decente” ou da “pátria”, se mostrou em cada momento crítico como um discurso vazio detrás do qual se reproduziam práticas políticas funcionais ao regime e ao status quo.

Podemos reduziu assim a estratégia política a zero. Seu ceticismo da luta de classes e de qualquer possibilidade de enfrentar de forma revolucionária ao regime capitalista é o fundamento de uma estratégia que não vai mais além de uma tímida tentativa de reforma. Mas que, entretanto, por sua domesticação e adaptação aos mecanismos políticos, jurídicos e constitucionais do regime de 1978, se torna impossível. Um mal negócio.

Quanto tardará essa deriva em dar lugar a um amplo processo de reflexão e crítica de muitos setores de trabalhadores, jovens e ativistas que depositaram ilusões em Unidos Podemos e as chamadas “prefeituras da mudança”? Não sabemos. Mas o seguro é que esse processo se desenvolverá mais cedo ou mais tarde. E essa dinâmica, justamente é a que declara uma necessidade: abrir o debate sobre uma nova hipótese política depois do fracasso do neorreformismo.

A esquerda que se reivindica anticapitalista e revolucionária, assim como os setores mais conscientes do sindicalismo de esquerda e da juventude combativa, ainda débil no Estado espanhol, têm (temos) uma disjuntiva diante da famosa interrogação de Lenin: “O que fazer?”. A liquidação política dentro do neorreformismo, como lamentavelmente sucedeu com muitos grupos no Estado espanhol (e na Europa), que até a pouco tempo se reivindicavam “anticapitalistas”, ou a subordinação frente-populista a algum setor burguês “democrático”, resultam um destino trágico. Mas a autocomplacência sectária e a irrelevância não são um destino muito mais alentador para a esquerda revolucionária.

Entre a “Cila” do oportunismo e a “Caribdis” do sectarismo, entretanto, há uma alternativa. Começar a construir outro tipo de esquerda, uma que seja verdadeiramente anticapitalista e da classe trabalhadora, que faça sua a bandeira da defesa dos direitos democráticos desde a independência de classe e sem se subordinar a nenhum “campo” burguês; que tome em suas mãos a tarefa de organizar os setores mais explorados e precarizados da classe trabalhadora, das mulheres e juventude; que se proponha em definitiva a lutar contra o Regime de 1978 e a agenda conservadora a recentralizadora do Governo, e não reforma-los.

Uma esquerda assim é a que está se construindo na Argentina na Frente de Esquerda e nossa organização irmã, o PTS (Partidos dos Trabalhadores Socialistas, também organização irmã do MRT do Brasil). Um exemplo “esquecido” no velho continente pelos reformistas e negado pela imprensa capitalista. E não é para menos. Porque justamente demonstra que é possível ganhar influência em setores massivos da classe operária e da juventude e inclusive conquistar fortes posições eleitorais, sem relegar um programa de transformação revolucionária da sociedade.

Na Argentina está se construindo uma grande esquerda dos trabalhadores, que defende abertamente seu programa anticapitalista no parlamento como uma tribuna para desenvolver a luta de classes, como agora fazem os companheiros Nicolás del Caño e Myriam Bregman, junto a dezenas de milhares que enfrentam nas ruas o ajuste anti-operário e a repressão do governo de Macri contra os pensionistas e a classe trabalhadora.

Aqueles que fazemos parte do Esquerda Diário, as e os militantes da CRT no Estado espanhol, acreditamos que esse é o tipo de esquerda que temos que construir no Estado espanhol e no conjunto da Europa, e nos dedicamos a esse objetivo nossos esforços. Por isso, para desenvolver esse debate, queremos abrir as páginas do nosso diário. Não há tempo para perder.




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