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Pobres Criaturas: Bella Baxter ao encontro do socialismo?

Yolanda Dourado

Pobres Criaturas: Bella Baxter ao encontro do socialismo?

Yolanda Dourado

Sim, contém spoilers!
Yorgos Lanthimos é um cineasta conhecido por filmar o absurdo. Um absurdo tão óbvio quanto inquietante. Em seu mais recente filme Poor Things, vemos o patriarcado e o capitalismo pulsando na vida de uma mulher com cérebro de bebê, como experimento de um cientista, que precisa trilhar seu próprio caminho apesar do controle masculino. Há quem veja em Poor Things um Frankenstein feminino, porém, ao contrário da criação de Mary Shelley, é o monstro que gera a criatura, que passa a ser amada por todos, inclusive pelo criador. Todas as descobertas desde então passam a compor uma trajetória fantástica. O gozo através da fruição da genitália, a descoberta da felicidade fácil pelo prazer feminino, o rompimento das convenções. As palavras, o parque, as plantas, o sapo, a vida. E, de repente, Lisboa com um cafajeste qualquer que lhe oferece um sexo satisfatório apesar de não constante.

Estamos falando de Bella Baxter, interpretada por Emma Stone, um acontecimento, o que é praticamente uma ressurreição apoteótica depois do rídiculo La La Land. Bella, em um corpo de mulher que se suicidou grávida, volta ao mundo com um cérebro implantado de um bebê. Muitos dizem que é uma alegoria de como os homens enxergam as mulheres ou gostariam que as mulheres fossem. Considero que o filme é mais profundo do que isso. Ao inserir no cotidiano de Bella figuras tão intencionalmente estereotipadas, como o pai protetor e criador não à toa chamado Godwin Baxter (“God”, Deus, com um impecável Willem Dafoe), o noivo paternalista que sabe das tramas do pai (Max) e o amante machista cafajeste (Duncan, com um Mark Ruffalo brilhante), o filme busca chamar atenção para as estruturas sociais que sobrepassam os indivíduos que cumprem também um papel de controle e opressão sobre Bella.

Do preto e branco londrino ao colorido que Lisboa traz para sua vida, hipnotizada pelo fado de Carminho e pelo pastel de nata para abocanhar a vida de uma só vez, Bella dá seus saltos furiosos de forma cada vez mais intensa e decidida em um sexo explícito que incomodou os moralistas que devem preferir a deprimente 4ª temporada de Sex Education. Soltou seu corpo para dançar em um salão nobre, ainda que a tentem controlar (palmas para Ruffalo pela performance icônica) e, mesmo assim, é convidada a dançar na cidade após tamanho espetáculo. Vemos então o cafajeste que supostamente não se apaixona por ninguém e tem problemas de fidelidade afetiva, de repente, de quatro por Bella, com ciúmes e sem conseguir lidar com a libertação sexual incontrolável que a insaciedade dessa mulher traz à tona. Contudo, a insaciedade dela não era somente por sexo.

Bella Baxter queria mais. Mesmo presa em um navio, conheceu um cético niilista e uma senhora de 60 anos que já entendeu que o mais interessante nas pessoas não está entre as pernas, para que os grandes dilemas da vida humana passassem a ocupar seus pensamentos. Eles lhe apresentaram livros. Livros! Como podem ser perigosos os livros e as amizades. Foi por eles que conheceu a desigualdade, vendo crianças mortas de fome enquanto os ricos perfeitamente vestidos comiam bem. Bella optou por dar todo o dinheiro que tinha aos pobres e, sem perceber, foi roubada e terminou buscando a prostituição para conseguir uma vida melhor para “mudar o mundo”. Mesmo seu criador God, que tanto exaltava de maneira esdrúxula a educação opressiva – em uma clara crítica irônica aos sistemas educacionais cientificistas e autoritários, que mesclam indevidamente a sociedade com a biologia e falsificam o que existe de especificamente sentimental nas relações humanas –, termina por admitir que sente saudade de Bella e a sua importância "Você gostaria de um mundo sem Bella?".

A maioria das críticas do filme tem se mantido na polêmica sobre se o filme é feminista ou não. Alguns parecem aterrorizados com o perigo do gozo incessante. De qualquer forma, creio que são ângulos errados. O filme não é um panfleto, ainda que dê seus sinais. Yorgos Lanthimos, perguntado sobre qual o tema do seu próximo filme, não soube responder: “Não defino temas, penso em histórias”. Creio que cabe refletir se a história colocada permite uma reflexão transformadora e crítica dessa sociedade, e é disso que talvez algumas críticas tenham se ausentado, de uma pista que atravessa o elemento patriarcal e transita para os problemas de um sistema completamente desigual como o capitalismo. Trata-se de um aspecto marcado pelo autor da obra Poor Things, publicada originalmente em 1992. O escritor escocês Alasdair Gray tinha simpatias pelo socialismo e em sua literatura trata dos problemas da desigualdade, da fome e das guerras no capitalismo – ele que viveu a Segunda Guerra Mundial.

Agora em Paris, na casa de prostituição, em meio a uma vida que no filme é mostrada de forma glamourizada sem expressar o nivel de opressão e exploração da vida real, Bella recebe um panfleto socialista de uma das colegas que lhe explica que o socialismo é lutar por uma sociedade igualitária, ao que Bella responde “então eu sou isso também”. De alguma forma, é a mesma resposta que deu ao colega cético niilista que, apesar de lhe ter apresentado o caminho dos livros como arma de transformação, dizia-lhe para não acreditar em nada, nem no capitalismo, nem no socialismo. Bella então afirma: “você é somente um jovem quebrado que não aguenta o sofrimento do mundo”.

Com essa avidez, Bella Baxter avança dos saltos furiosos do suposto “melhor sexo da vida” com Duncan para experimentar também um gozo sereno e profundo de um sexo gentil em uma cena poética com sua nova amiga. Contudo, entre os críticos sempre haverá os conservadores que hão de condenar o livre gozo. Ainda assim, de todo esse processo de amadurecimento, crescimento, encontro com a medicina, superação dos traumas do passado e descoberta da sua vida anterior (antes do suicídio, quando era Victória), Bella vai de encontro a ideia de buscar uma igualdade social a sua maneira, que não é socialista. Não, o filme não é um panfleto, são apenas pistas em meio ao absurdo. Nós sim, que somos socialistas, continuaremos com nossos panfletos.

Espero que não ganhe muitos Oscars ou nenhum, mantendo a ótima trajetória de A Favorita e O Lagosta, indicados porém pouco premiados tamanha estranheza. Em tempos de Barbie (me perdoe Greta Gerwig, eu gostava de você, mas Barbie foi demais) Poor Things apresenta um cinema esteticamente revolucionário e potencialmente transformador.


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