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“Para Maquiavel, assim como para Marx, não se trata apenas de interpretar o mundo, mas também de transformá-lo”

Redação

Fotomontagem de Juan Atacho
Tradução de Laura Scisci; revisão de Heitor Carneiro

“Para Maquiavel, assim como para Marx, não se trata apenas de interpretar o mundo, mas também de transformá-lo”

Redação

Entrevista com Filipo Del Lucchese

Nicolau Maquiavel é um pensador fundamental para a filosofia política. Arbitrariamente apresentado como um teórico do poder sem escrúpulos pelo “antimaquiavelismo”, sua obra tem se demonstrado amplamente irredutível às tergiversações e leituras vulgares.

No período posterior à invasão da Itália pelo rei francês Carlos VIII em 1494, marcado pela disputa entre as grandes potências europeias pelos territórios e cidades da península Itálica, o secretário florentino inaugurou uma forma de pensamento e ação política que segue surpreendendo por sua atualidade.

Para debater sobre este e outros temas, entrevistamos Filipo Del Lucchese, docente na Brunel University em Londres e autor das obras Conflict, Law and Multitude in Machiavelli and Spinoza: Tumult and Indignation (Continuum, 2009) e The political philosophy of Niccolò Machiavelli (Edimburg University Press, 2015). Também foi coeditor, junto a Fabio Frosini e Vittorio Morfino, do livro The Radical Machiavelli. Politics, Philosophy and Language (Brill, 2015).

Del Lucchese propõe compreender o pensamento de Maquiavel a partir da centralidade do conflito e da conflitualidade. Desde este ponto de vista, em seu livro The political philosophy of Niccolò Machiavelli, analisa os elementos de continuidade entre Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, O Príncipe, Histórias Florentinas e A arte da guerra (considerando também outras obras de Maquiavel); e coloca em discussão algumas das principais interpretações do pensamento maquiaveliano dos séculos 16 ao 20.

Nesta entrevista a Juan del Maso, Del Lucchese retoma estas questões abordadas em seu livro, assim como a relação entre Maquiavel e Marx e as contribuições do pensamento maquiaveliano para pensar a realidade atual.

Na introdução e conclusão de seu livro The political philosophy of Niccolò Machiavelli, você diz que ler diretamente as obras de Maquiavel é melhor do que ler livros sobre Maquiavel. Por quê?

Esta é uma constatação que vale para todos os autores clássicos, não apenas para Maquiavel. Como bem escreveu Italo Calvino em Por que ler os clássicos: “nenhum livro que fale sobre um livro diz mais do que o livro em questão”. Não apenas não diz mais, tampouco pode dizê-lo melhor que a obra em questão, nem sequer quando a explica ou a esclarece (o que às vezes pode ser útil). Esta é a diferença entre a literatura primária e a literatura secundária que, infelizmente, o sistema de ensino universitário está progressivamente perdendo de vista, sobretudo em países como o Reino Unido, onde eu leciono. A literatura crítica sobre um autor não deve ser rechaçada, pelo contrário, há de ser conhecida, explorada, digerida, mas nunca no lugar do próprio autor. Isto é particularmente válido para um autor como Maquiavel, cuja prosa é tão potente, direta e incendiária que dificilmente pode ser melhor absorvida do que ao submergir-se diretamente no texto e, se possível, no texto em sua língua original. Especialmente no caso de um jovem estudante que faz seu primeiro contato com a prosa maquiaveliana, sem dúvida restarão ambiguidades, talvez incompreensões e também interpretações errôneas. No entanto, certamente será melhor do que o falso filtro tranquilizante e neutralizante do especialista de plantão que pretende explicar e interpretar. Já que você mencionou, isto naturalmente também vai contra o meu livro sobre Maquiavel. Porém, infelizmente é necessário sobreviver, academicamente falando, e sem publicações não há sobrevivência. Portanto, eu escrevi uma introdução a Maquiavel... mas a escuta primária do texto é imperativa, para toda a história da filosofia e para muitas outras disciplinas.

No ínicio, era a crise de 1494. Como os eventos deste ano influenciaram a obra e vida de Maquiavel?

Se escutamos ao próprio Maquiavel, o ano de 1494 é apenas um início, um dos muitos inícios da história de Florença e da Itália, sobre a qual ele reflete e pela qual se interessa. Na primeira parte de Histórias Florentinas, aprendemos que nunca há um só início, mas vários, repetidos, entrelaçados inícios que fazem do tempo a trama possível para a ação política. Sem essa trama complexa e aleatória, cuja potencialidade foi primeiramente captada por Louis Althusser, depois por Etienne Balibar e Vittorio Morfino, em anos mais recentes, não haveria política possível. Agora, 1494 é o início que o próprio Maquiavel se propõe a pensar e atuar, é o momento que abre a possibilidade de sua ação política, de modo comovente, não apenas para ele mesmo, mas para muitos de seus contemporâneos. Em 1494, são exploradas e manifestadas no solo italiano as forças econômicas, políticas e culturais que haviam sido acumuladas nas décadas anteriores na Europa. Nada mais seria como antes, mesmo que nada houvesse mudado irremediável e irrevogavelmente: simplesmente se abre um novo horizonte de possibilidades a essas novas forças. O jovem Maquiavel se impressiona com a visão deste novo início. A leitura dos clássicos já havia começado a moldar suas ideias, mesmo se pouco ou nada o preparava para a atividade política e diplomática. O ano de 1494 obriga este núcleo de conhecimentos iniciais e sua grande sensibilidade individual a amadurecerem repentinamente, a tornarem-se instrumentos prontos para incidir no mundo real e não apenas em seu mundo intelectual. Assim como para o Marx das Teses sobre Feuerbach, tratava-se agora não apenas de interpretar, mas também de transformar o mundo. Nada une estes dois momentos históricos, naturalmente, mas a consciência de Marx e Maquiavel sobre um novo início é, para mim, muito similar. É uma grande sorte e um grande privilégio viver um destes dois momentos históricos. Naturalmente é também um grande risco, que tanto Maquiavel quanto Marx souberam assumir até o final.

Por que você diz que não se pode separar a filosofia da política para entender o pensamento de Maquiavel?

Me pergunto se podem ser separadas em qualquer autor que tenha explorado o terreno híbrido da filosofia política. Mas para dizer algo concreto sobre o secretário florentino, creio que seu pensamento ilustra como o de poucos a fertilização recíproca dos dois domínios: bem pobre teria sido sua elaboração filosófica, em relação a de seus contemporâneos humanistas, sem a contaminação por um interesse político prático e imediato. Bem limitada teria sido sua perspectiva política se não tivesse abordado não apenas o caminho da República Florentina, mas também o da Romana. Claramente, Maquiavel não é um filósofo no sentido tradicional do termo. Ainda que tenha estado na vanguarda do uso de alguns textos fundamentais e recentemente redescobertos da tradição clássica, como o De rerum natura de Lucrécio ou o livro VI de Políbio, Maquiavel não tem uma educação ou uma meditação escolástica de textos filosóficos. Não teve o tempo e, provavelmente, nem a disposição para tal. Porém, cada gesto político seu está informado de uma meditação intensa da experiência dos clássicos. Basta pensar no empreendimento mais importante de sua vida política, a constituição de um exército republicano, cuja trajetória foi tão bem descrita recentemente por Andrea Guidi em seu volume Um secretário militante. Do mesmo modo, cada uma de suas investidas no terreno da filosofia política, sobre a Política de Aristóteles, sobre O Político de Platão, sobre A Cidade de Deus de Santo Agostinho, sobre os manuais para os príncipes, está permeada pelo interesse prático e político de dar vida a uma nova teoria útil para o presente, pela sua urgência em viver e agir. Portanto, separar a filosofia da política em Maquiavel significa expor-se ao risco de não captar o que há de mais original em seu pensamento, o que foi mais escandaloso em sua época e também na historiografia mais moderna: basta pensar nas acusações mais ou menos diretas que lhes foram feitas, nas últimas décadas, por parte dos straussianos e skinnerianos, por exemplo.

Você destaca a centralidade da conflitualidade no pensamento de Maquiavel. Que mudanças foram ocorrendo na abordagem desta problemática nas obras que você analisa em seu livro?

A teoria e a prática do conflito sempre foram objeto de interesse de Maquiavel, a partir da análise das comunas rebeldes que foram a origem do domínio florentino nos primeiros anos da República, através da meditação sobre as lutas entre patrícios e plebeus nos historiadores latinos, até a conflitualidade endêmica da história de Florença. Com exceção de algumas interpretações recentes (de Barthas, Pedullà, McCormick, Vatter, Winter), um dos aspectos que, do meu ponto de vista, foram subestimados pela historiografia foi justamente a evolução da concepção de Maquiavel ao longo de seus escritos. Essa subestimação teve um efeito neutralizante sobre a escandalosa teoria de Maquiavel. No geral buscou-se separar e distinguir os “bons” conflitos, travados pela honra e glória, dos “maus” conflitos, travados pelas “coisas materiais” e pela supremacia econômica. Deste modo, Maquiavel foi subtraído da pré-história da análise dos conflitos de classe e dele foi feito um liberal ante-litteram, disposto a aceitar uma certa conflitualidade moderada, de natureza política, e a condenar os choques extremos e radicais, de natureza econômica. Fiz uma tentativa de demonstrar, contra essa interpretação, que o discurso maquiaveliano sobre o conflito não é moderado nem parcial. Ao contrário, é um discurso absoluto, no sentido literal de não ter uma solução. Na aceitação da realidade inevitável do conflito de classe (não no sentido marxiano, obviamente), Maquiavel aceita até o final os riscos, sem superações ou ilusões. Tanto em Florença como em Roma, nas Histórias Florentinas, nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio ou em O Príncipe, não há liberdade sem conflito, mas tampouco há liberdade sem o risco de que este mesmo conflito se torne destrutivo e rasgue o tecido político expondo a cidade à potência de outras cidades, numa dinâmica interminável de potência e ruína. Neste sentido, a partir da ausência estrutural de uma solução ao problema do conflito, não existe um pensador menos dialético e mais anti-hegeliano que Maquiavel.

No entanto, na forma com a qual Maquiavel apresenta a relação entre fortuna [termo maquiaveliano que compreende os conceitos de acaso, circunstância e situação] e virtude há certa dialética, ou não? Gramsci, ao mesmo tempo que reivindica Maquiavel, faz uma crítica às leituras da dialética em relação à composição a priori dos conflitos...

Estou de acordo, pelo menos em parte, com a leitura de Gramsci que você sugere. As coisas mais interessantes nesse sentido foram escritas por Fabio Frosini na Itália. No entanto, devemos ter em mente que o problema que nós temos de resolver em relação a Maquiavel não é o mesmo que Gramsci tinha para resolver a questão do seu Maquiavel. Mas sem ir longe demais, eu diria ao menos um par de coisas: se por um lado houve, sobretudo nos últimos anos, uma saudável renovação das leituras de Gramsci (e de Marx) tendendo a evitar uma concepção crua, esquemática e teleológica da dialética, Gramsci não é Althusser. Agora, ambos reivindicam um certo Maquiavel em seu próprio marxismo. Ambos fazem isso, a meu ver, com razão, mas não fazem o mesmo. Você individualiza bem a questão da fortuna e da virtude. Pessoalmente, e talvez mais de acordo com o último Althusser que com Gramsci, eu creio que não existe uma relação dialética entre os dois elementos, nem no sentido hegeliano, nem em nenhum outro sentido. Não apenas não há uma composição a priori dos conflitos, mas também não há nenhuma composição dos conflitos, se por composição entendemos uma teoria que consiga melhor enquadrá-los, dominá-los, neutralizá-los e explorá-los. Para Maquiavel, os conflitos não estão na teoria e sim na História, sempre incerta e aberta, sempre exposta ao fracasso ou ao êxito, no encontro aleatório de forças que se compõem, descompõem e chocam continuamente.

Seguindo com a centralidade do conflito, quais afinidades eletivas e diferenças podem ser apontadas entre Maquiavel e Marx?

As afinidades são, justamente, eletivas. Sou sempre cético em relação às tentativas de reduzir a originalidade marxiana na análise científica do capital ao seu descobrimento de antecessores na história da filosofia. Isto vale para Maquiavel assim como para Spinoza. As afinidades são eletivas, antes de tudo, porque são escolhidas, porque o próprio Marx fala a Engels sobre a força e originalidade extraordinárias do pensamento histórico-político de Maquiavel e reconhece sua importância para sua própria análise. E são eletivas num forte sentido: não é possível falar de uma corrente subterrânea do materialismo, como Althusser e Negri, mas é inegável que se queremos construir um arsenal teórico para nossa teoria política, então é precisamente em Maquiavel e Marx que devemos buscar a centralidade do conflito político. As diferenças são claras: Marx baseia sua análise sobre um conceito de classe que não pode simplesmente ser retomado ou transposto à realidade renascentista de Florença. É importante não dar margem às críticas de inconsistência cronológica. Porém, é igualmente importante – como Maquiavel e Marx ensinaram – que a análise histórica não seja um fim em si mesma e, pelo contrário, possa dar forma a uma teoria e uma ação política. A maior afinidade que vejo entre os dois pensadores é a de terem vislumbrado a necessidade de atuar politicamente na própria realidade, a favor de um grupo social ou contra outro grupo social, e de terem utilizado para isto, entre outras ferramentas, a teoria.

Nos últimos dois capítulos de seu livro, você faz um percurso pelas leituras de Maquiavel em dois períodos: as do século 16 ao 18, referentes às questões da autoridade, do conflito e da origem do Estado; e as dos séculos 19 e 20, em relação ao nacionalismo, à luta de classes e ao imperialismo. Se tivesse que escolher uma ou duas de cada período, quais seriam as mais significativas?

A dificuldade de responder a esta pergunta tem a ver com o fato de que Maquiavel foi usado por pensadores políticos de contextos muito diversos e inclusive com intenções opostas entre si. Portanto, a centralidade do conflito é, para mim, a distinção que rechaça e deixa de fora as leituras conservadoras e até mesmo reacionárias que foram feitas de Maquiavel, desde Schmitt até Mussolini, de Strauss aos teóricos de management da atualidade. Escolheria sem dúvida, então, o Maquiavel do conflito como alma da política. O realismo político é o segundo aspecto que colocaria no centro: Maquiavel sempre se interessou em tomar as pessoas, coisas, lugares, fatos e tempos tal como são e não como gostaríamos que fossem. Não existe outra realidade além da realidade em que estamos, e é somente com esta consciência que podemos pensar e tentar atacá-la para destruí-la.

Uma última pergunta: quais poderiam ser as chaves de leitura ou os temas centrais em torno dos quais poderíamos interpretar Maquiavel hoje?

Eu diria que um novo conceito de democracia, antes que nos vejamos falando da democracia como falamos do feudalismo ou da reforma agrária, ou seja, experimentos interessantes, mas historicamente superados. Maquiavel me parece um bom teórico de uma democracia que saiba integrar os conflitos radicais do presente, mais além e contra o liberalismo mais ou menos progressista. Nesta última categoria inclúo também as teorias sobre a democracia agonista [1], que hoje está bastante em voga. A democracia agonista, que parece relembrar a teoria maquiaveliana, na verdade se baseia em uma escolha preventiva, em uma decisão (no sentido schmittiano) de quais são os conflitos positivos e aceitáveis, e quais aqueles que são negativos e inaceitáveis. Sob a forma de um progressismo democrático, a democracia agonista não passa de uma reedição do liberalismo progressista. Maquiavel havia indicado que a teoria do conflito deve se confrontar com todo tipo de conflito, sem discriminar previamente sua legitimidade. Por democracia, assim como Maquiavel, entendo o kratos do demos [poder do povo], e não uma pálida versão do bem comum ciceroniano. As ideias de Maquiavel estão colocadas nesse sentido, a meu ver, e sua aplicação no presente ainda precisa ser pensada.


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FOOTNOTES

[1Conceito criado por Chantal Mouffe, em oposição a antagonista. Nesse modelo, os atores políticos deixam de se opor diretamente uns aos outros, e portanto há a redução dos conflitos políticos
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