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Sobre a autobiografia precoce de Patrícia Galvão

sábado 29 de agosto de 2015 | 00:00

Em 1940, durante e após sua prisão pela polícia política de Getúlio Vargas, Patrícia Galvão (1910-1962), escritora modernista e militante comunista, escreve uma longa carta ao seu companheiro Geraldo Ferraz (1905-1979), jornalista e escritor.

Publicada cerca de sessenta anos após a morte da escritora-militante, sob o título Paixão Pagu, trata-se de um balanço crítico sincero e visceral de sua vida, da política e da cultura no Brasil das primeiras décadas do século XX. Na forma de carta, a autora queima o véu burguês que tenta camuflar a realidade e desmonta mitos e estereótipos criados e sustentados por seus inimigos de classe e detratores que, através de livros, teses, comentários e telenovela, reafirmam opressões e mentiras contra a escritora comunista transformada historicamente em objeto sexual do modernismo e do Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Anatomia de uma vida e de uma época

Nascida em São João da Boa Vista, interior de São Paulo, morou até os 16 anos no Brás, região central da cidade, numa casa operária com os fundos para a Tecelagem Ítalo-Brasileira, num ambiente exclusivamente proletário. Em casa, conheceu toda espécie de privação e necessidade. Mas, devido a mentalidade pequeno burguesa de sua família, mesmo vivendo em condições precárias, nunca deixaram de ser os "fidalgos da Vila Operária".

"Há uma intoxicação da vida" e Patrícia Galvão "era uma moleca impossível" para os padrões castos e repressores da família tradicional. Ainda muito jovem presenciou manifestações e greves operárias. Um dia, ao chegar em casa, foi recebida pela mãe com uma enxurrada de chinelos por ter esquecido do tempo numa manifestação de trabalhadores. A jovem ansiava e procurava fugir do ambiente familiar conservador e asfixiante.

Antropofagia

Em 1928 se aproxima do Movimento Antropofágico, encabeçado pelo escritor Oswald de Andrade (1890-1954) e pela pintora Tarsila do Amaral (1886-1973). Colabora na Revista de Antropofagia. Chamada de vedete do modernismo, musa ou mulher do Oswald de Andrade, Pagu faz críticas pesadas ao ambiente modernista. Alguns ilustres poetas e escritores modernistas são apresentados em seu "relatório" como elitistas, pedantes, misóginos e machistas.

Com a ajuda de Oswald e Tarsila, Patrícia Galvão consegue um casamento de fachada com o pintor Waldemar Belisário para poder sair da casa dos pais sem maiores complicações.

Classe trabalhadora organizada

Numa viagem à Santos (SP), a jovem modernista participa de uma reunião do Sindicato de Construção Civil e se surpreende com a orientação das discussões e o entusiasmo dos trabalhadores pela luta de classes. "Encontrei um ambiente pré-grevista e mais consciência e revolta do que esperava". É presa pela polícia política de Getúlio Vargas. Primeira de uma série de prisões.

Patrícia Galvão e Oswald de Andrade se casam em 1930. Nasce seu filho Rudá de Andrade.

O projeto familiar novamente é desconstruído. "A necessidade de luta surgiu ativando toda a revolta latente de minha vida insatisfeita". Em 1931 entra para o Partido Comunista Brasileiro (PCB), partido orientado pela burocracia stalinista que afogou em sangue a revolução socialista de 1917 na Rússia e organizou a derrota do proletariado mundial.

Mas, dentro deste partido burocratizado existiam milhares de trabalhadores e trabalhadoras sinceras que lutaram pela derrubada violenta do capitalismo. "Assombrou-me a cozinheira Maria discorrer com toda segurança sobre os pontos mais áridos de economia política".

1931. Santos (SP).

Comício em homenagem aos militantes anarquistas Sacco e Vanzetti, condenados à morte nos EUA. "A praça já estava repleta de trabalhadores e policiais". A polícia dispara contra a multidão. Alguns policiais estavam vestidos de operários. Herculano, negro, estivador e militante operário é atingido por um tiro nas costas e morre nos braços de Pagu.

Patrícia Galvão é levada novamente para a prisão.

Mas a direção do partido a considera uma intelectual pequeno-burguesa com desvios degenerados e por isso ela sempre precisou provar para os burocratas stalinistas sua sinceridade na luta operária. Foi humilhada e assediada sexualmente por dirigentes do PCB.

1932. Vila Operária. Rio de Janeiro.

"Peregrinei por todas as fábricas do Rio de Janeiro. Eram horas de espera, promessas...Todas as manhãs, deixava meu nome. Vivi dias no pátio da Companhia Souza Cruz". Vaga de emprego na Companhia Hanseática de Cerveja, no setor de engarrafamento. "Mas alí, para não se perder os braços, era necessária uma prática feroz, um treino que eu não possuía. Ao menor descuido, eram cacos de vidro por toda parte. Fiquei observando por apenas quinze minutos aquele trabalho. Foi o suficiente para que eu presenciasse um desses desastres". O próprio operário que ministrava o trabalho para os aprendizes sofreu um grave acidente. "Parei. Quero dizer, ainda quis insistir, mas uma operária velhinha fez-me desistir".

Por intermédio de um companheiro consegue trabalho na metalurgia. "O ambiente da metalúrgica era esplêndido para se trabalhar. Fazia-se alí abertamente a propaganda comunista e o restaurante onde almoçávamos coletivamente era a nossa ampla sala de assembleias". Em pouco tempo, a jovem militante comunista e outro camarada de partido conseguiram organizar alguns operários dentro da fábrica.

Num comício organizado pelo PCB no Largo da Lapa (RJ) esta metalúrgica teve o trabalho paralisado. Os operários seguiram incorporados para participar da manifestação. Nesse dia, uma criança foi pisada por um cavalo. O ferimento não foi tão grave, mas a menina, nos braços da mãe, perdia bastante sangue. A mãe, militante operária, foi obrigada por dirigentes do partido à passear com uma bandeira ensanguentada e fazer um discurso antes de poder cuidar da filha.

Patrícia Galvão não tem dinheiro suficiente para se alimentar. Enfraquecida, ao transportar para um caminhão num tabuleiro de peças de metal sofre um acidente de trabalho. "Precisava operar-me com urgência e de tratamento prolongado. De que modo? O Partido mandou-me para Oswald". É abandonada pela direção do PCB. Debilitada e doente, é socorrida por Oswald de Andrade. Depois do acidente de trabalho na fábrica Pagu é afastada injustamente do partido. Os lacaios de Stalin no Brasil decidem que a jovem militante deve trabalhar à margem, intelectualmente.

Parque Industrial: modernista-feminista-comunista

Em 1933, aos 22 anos, Patrícia Galvão publica Parque Industrial. Considerado uma experiência de linguagem é o primeiro romance proletário brasileiro. Foi financiado por Oswald de Andrade e assinado por Mara Lobo, pseudônimo exigido pela direção do Partido Comunista Brasileiro.

Pagu relata nesta obra as péssimas condições de trabalho nas indústrias de São Paulo e escancara, de forma brutal, como a classe trabalhadora é explorada no coração do capitalismo. Pagu relata particularmente o sofrimento das mulheres operárias exploradas e violentadas sexualmente por seus chefes e patrões. Exploração econômica e Exploração sexual. Escandalizou pequeno-burgueses e stalinistas moralistas conservadores.

Patrícia Galvão retorna ao PCB e passa à cumprir tarefas clandestinas. Para os stalinistas os fins justificam os meios. Mar de lama. Pagu cumpre algumas ordens abjetas. A casta burocrática e traidora precisava e precisa manter seus privilégios.

Não aguenta tanta sujeira e novamente é afastada do Partido.

Viagem com destino à Rússia

1933. Parte como correspondente internacional dos jornais Diário da Noite e Diário de Noticias de São Paulo e Correio da Manhã do Rio de Janeiro. Ao longo do trajeto passou pelos EUA, Japão e China.

1934. Viaja da China para a Rússia. Chegando a Moscou viu coisas feitas e coisas por fazer. Pagu se empolgou com os acertos e reconheceu os erros. "Trabalharia, estudaria, faria qualquer coisa". Daria o seu quinhão à revolução proletária.

Foi jantar no Metropol, com Boris, um oficial do Exército Vermelho, a quem Patrícia Galvão levaria uma carta de recomendação do PCB. Pagu se surpreende com o preparo luxuoso da refeição. A impressão, era exatamente a de estar num palácio capitalista com seus garçons e gorjetas. Boris residia neste prédio e dizia ser necessário.

Saem. Boris foi comprar bombons enquanto Pagu o esperava num canto da Praça Vermelha do Kremlin. Admirava o serviço de trânsito dirigido por mulheres uniformizadas quando sentiu que lhe puxavam o casaco. Era uma garotinha de uns oito ou nove anos em andrajos. Pedia esmola. Patrícia Galvão percebeu a diferença das crianças saudáveis que havia visto nas Sibéria e nas ruas de Moscou. Para a jovem comunista brasileira as conquistas da revolução russa iam por terra abaixo naquela mãozinha trêmula pedindo esmola. E Pagu comprava bombons no mundo da revolução vitoriosa em 1917 e afogada em sangue com a ascensão de Stalin e da casta burocrática em 1928. "Então a Revolução se fez para isto? Para que continuem a humilhação e a miséria das crianças?"

Boris, o oficial do Exército Vermelho que residia num luxuoso castelo tentou justificar dizendo que se tratava de vagabundos que sabotam a construção do socialismo. "Mas como?! Crianças vagabundas num país sovietizado?" Patrícia Galvão deixa Moscou num desfile esportivo. O céu era um céu de aviões e lá adiante, na tribuna, sobre a juventude em desfile, o chefe supremo da burocracia, Stalin, o organizador de derrotas proletárias.




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