×

LITERATURA | Oswald de Andrade descobriu o Brasil

sexta-feira 17 de fevereiro de 2017 | Edição do dia

Pedro Alvarez Cabral não descobriu nada: hoje qualquer pessoa que tenha o mínimo de visão crítica sobre nossas raízes coloniais, consegue subverter o ponto de vista no palco histórico quinhentista; quer dizer, olhando para o ponto de vista dos povos indígenas, a pergunta que acaba sendo feita para os portugueses é “ quem descobriu quem cara pálida? “. Certo, ninguém poderia ter “ descoberto “ o território que futuramente ficaria conhecido como Brasil. Mas apropriando-se do termo “descoberta“ numa direção progressista, pode-se dizer que se teve um sujeito que descobriu o Brasil este foi o escritor Oswald de Andrade. Descobrir no sentido de sacar a fundo a gênese do nosso caldeirão: na profunda mistura entre povos, a única maneira de se responder no plano da cultura ao projeto político colonizador de ontem e ao projeto imperialista de hoje, é comer a carne da literatura dos dominadores e realizar a assimilação crítica brasileira.

Definitivamente o baú de Oswald de Andrade parece não ter fim: acaba de chegar às livrarias a obra Poesias Reunidas (saiu pela editora Companhia das Letras). Nesta nova edição, 22 poemas inéditos do autor antropófago integram o livro. A atenção que a poesia de Oswald precisa receber hoje deve-se ao fato dele ser um poeta que, embora falecido em 1954 , apresenta-se como genuíno poeta do ano de 2017: sua técnica avançadíssima reverbera na literatura atual não apenas pelas conquistas destruidoras promovidas pelo modernismo, mas pela agilidade e humor que arrancam a palavra do contexto alienado e lhe devolve vida, frescor, um tipo de inovação capaz de cativar até mesmo um leitor que nunca prestou atenção em poesia.

Oswald ainda se comunica com os espíritos rebeldes porque o caráter revolucionário/iconoclasta de sua obra, corresponde à necessidade de insultar qualquer tentativa de institucionalização da literatura que se quer revolucionária. É fundamental que se estude a obra de Oswald no ambiente acadêmico (pesquisas fecundas e a organização do acervo do autor são promovidas por universidades; o que garante excelentes estudos). Entretanto, a rebeldia de Oswald extravasa qualquer espaço oficial, exatamente porque sua obra arrebenta com as couraças da produção e da crítica literária convencionais. Dinamitando a estrutura do verso na poesia, abrindo caminhos experimentais pelo território do romance, passando o pé na língua culta em nome da espontaneidade da fala coloquial na escrita, aliando vanguardismo e marxismo no campo da dramaturgia e vociferando contra a cultura patriarcal/burguesa, Oswald de Andrade só pode estar sentado ao lado dos revolucionários, ou ao menos daqueles que querem agitar o barco.

Tais considerações sobre a obra de Oswald de Andrade não fazem dele um personagem canônico no campo revolucionário. O cara possuía muitas, inúmeras contradições. O escritor fazia questão de escancarar confusões sobretudo de ordem política. Irreverente demais para a moral conservadora da elite cafeeira dos anos 20, mas membro desta mesma elite. Anarquista demais para os stalinistas do PCB dos anos 30, mas fiel escudeiro do stalinismo. Stalinista demais para os socialistas dissidentes, mas ele próprio um dissidente da esquerda durante a segunda metade dos anos 40. Entretanto, por ser antropófago, Oswald não tinha medo das contradições pessoais de um artista, assumindo a própria dialética na sua vida. Afinal de contas, o que é a antropofagia senão o movimento dialético experimentado na pele e no dente? Contraditório sim, mas autor de uma obra que o coloca como um dos pioneiros da arte revolucionária realizada no Brasil.

A versatilidade de Oswald que foi crítico, esteta, poeta, romancista, dramaturgo e filósofo, não cabe na ótica pós moderna, na ótica de autores de tipo relativista e logo despolitizados. Oswald de Andrade é um escritor moderno porque reivindica (mesmo que contraditoriamente) a própria modernidade em seu caráter revolucionário. A batalha moderna na qual Oswald tomou parte como um barulhento estrategista, envolve a crítica e o combate à civilização burguesa: ele começa com a luta contra as tradições conservadoras das artes, desafia a cultura patriarcal e chega ao conflito político essencial entre burguesia e proletariado, tomando partido deste último. Oswald de Andrade possui uma trajetória intelectual turbulenta mas firmemente radical: no início dos anos 20 temos o topete futurista contra o passadismo, na metade da década a ruptura de vanguarda integrando-se às forças primitivas/populares do Brasil e no final da década as influências Dadá e surrealista no movimento antropofágico. Nos anos 30, Oswald assumiu as exigências marxistas para a literatura revolucionária a partir da combinação com elementos de vanguarda. Como dramaturgo, por exemplo, ele consegue na peça O Homem e o Cavalo (1934) aliar a propaganda comunista(na realidade, uma patética apologia do stalinismo) com os procedimentos estéticos de vanguarda. Por ser ousado Oswald não tinha medo de experimentar. É incrível ler suas obras e se deparar com trabalhos tão heterogêneos: Serafim Ponte Grande (1928) e os dois volumes de Marco Zero (1945), por exemplo, não parecem ter sido escritos pelo mesmo autor.

Oswald de Andrade é um autor obrigatório nas bibliotecas dos leitores inconformados. Seus livros são fartamente encontrados por aí. Tudo indica que eles não devem desparecer tão cedo das livrarias. Já passou da hora da esquerda brasileira mergulhar na obra deste antropófago único.




Comentários

Deixar Comentário


Destacados del día

Últimas noticias