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ARGENTINA | Os mitos da divida: dos Kirchner ao Macri

sexta-feira 4 de março de 2016 | 00:00

Quem disse que não tem política de Estado na Argentina? Engordar os bolsos dos credores é um eixo de continuidade com o feito nos anos dos kirchneristas.
Mudam as retóricas, mas o peso da dívida e os custos de pagá-la permanecem. O novo governo acaba de assinar o seu próprio "Pacto Roca-Runciman”, mas diferente daquele outro, o comemora como uma grande vitória. Segundo afirmou o Financial Times, com os US$15 bilhões que o governo vai lançar, a Argentina se prepara para realizar a maior emissão de uma dívida em 20 anos, só superada pela do México em 1996 (US$16 bilhões). E tudo (ou quase) para colocá-los nos bolsos dos abutres que rejeitaram as trocas de 2005 e 2010, para fechar os litígios no tribunal de Griesa em Nova Iorque. Com o acordo pactuado, os abutres irão se beneficiar com rendimentos que vão desde 846% para Aurelius até 3.183% para Bracebridge, e no meio de 1.308% para NML de Paul Singer, tudo a partir do estimado pelo mercado de que esses fundos nunca pagaram mais do que 30% do valor nominal de cada título da dívida.

Pátria, abutres e imposturas

Os kirchneristas ficam escandalizados frente à "entrega" que prepara Macri. "Inaceitável extorsão", sentencia o ex ministro Kicillof no Página/12. Pareceria que passamos de uma fase de firme defesa de uma posição soberana a outra onde, "com alegria", encara-se uma entrega infame. Sob um olhar mais atento, a segunda afirmação faz mais sentido do que a primeira.

Comecemos do início. A troca reivindicada por vário kirchneristas como histórica, pelos níveis de pagamento nominal atingido, esteve longe de representar a interrupção do "business as usual" dos financistas.

Segundo afirmou em 2005 a equipe do ministro Lavagna, a troca desse ano teve um pagamento nominal de 75% sobre o valor nominal dos títulos não pagos. Nos fatos, o pagamento nominal era de aproximadamente 54%, ao que se somava a ampliação de prazos e redução da taxa de juros.

Vejamos: em 18 de março de 2005 a República Argentina desembolsou USD 700 milhões em espécie e USD 35 bilhões em titulos de divida e resgatou titulos impagos por uns USD 62mil (mais juros atrasados por USD 16bilhões) em mãos daqueles credores locais e estrangeiros que decidiram aceitar os termos da troca. A negociação argentina esteve precedida por renegociações como a de Rússia, que em 1999 reestruturou a dívida com um pagamento nominal de 53%.

Muito influenciou também no resultado a generosidade com a qual o pagamento nominal era relativizado em termos efetivos pelos incentivos que eram outorgados aos possuidores dos títulos. Esses incentivos foram 2: o ajuste por inflação nos valores dos titulos e nos títulos condicionados pelo crescimento do PIB. Pelo ajuste por inflação o valor da nova dívida aumentaria USD 1bilhão cada vez que a inflação superasse à desvalorização da moeda por 6 pontos percentuais. Aliás, isto foi pactuado a partir de um tipo de troca muito favorável, o qual garantia que isto aconteceria invariavelmente.

Este seria a partir de 2007 um dos principais argumentos para defender a intervenção do INDEC no intuito de manipular os dados de inflação apresentados por ele. Inclusive, se aceitarmos como válido essa lógica (quando na verdade pretendia-se esconder o encarecimento do custo de vida), no melhor dos casos com a destruição do IPC se estava buscando sair torpemente de um erro não forçado.

Foi o governo, por decisão própria, quem incorporou esse incentivo adicional para os credores. Só no primeiro ano desde a reestruturação, o custo adicional por esse incentivo foi superior aos USD 3 bilhões.

Ainda maior concessão representaram os "valores vinculados com o PIB". Com a ideia de condicionar maiores pagamentos da dívida, o rendimento extraordinário da economia -e assim "associar" aos credores com o crescimento-, criou-se um grande custo adicional que foi maquiado nos resultados apresentados.

Esses títulos apresentavam um prêmio aos credores pelo crescimento acumulado e não só pelo excedente de um ano individual. Também, o nível de referência era um PIB per capita real inferior a um 10% do nível prévio à recessão de 1998/2002, ou seja, era altamente generoso. A previsão de emissão dos novos títulos na troca de 2005 fixava como limite para o que podiam adicionar as transações por "valores vinculados com o PIB" USD 30 bilhões. Quer dizer que se atingisse esse limite o pagamento sobre a dívida total em 2005 seria reduzida a 16%. Atualmente foram pagos por títulos mais de USD 13 bilhões e esse ano poderiam somar-se outros USD 7 bilhões. Dessa forma, o efeito causado pelos incentivos reduziu significativamente o pagamento efetivo da dívida. Na segunda troca de 2010 as condições a respeito do título ligado ao PIB foram ainda mais generosas pois o conjunto dos credores foram pagos retroativamente por todos os títulos do crescimento que tinham se originado desde 2005.

E ainda, muitos dos que cobraram fizeram um grande negócio pois tinham adquirido os títulos a preço de leilão. Entre eles também tem fundos que merecem ser qualificados de "abutres", como o NML Capital.

"Desendividar", ou como entregar até o último dólar aos especuladores

Existe um ponto onde Cristina, Macri, e toda a burguesia argentina concordam: o desendividamento é o melhor que poderia ter acontecido com a Argentina nos últimos tempos. Concordam com essa visão também os "bons abutres", ou seja, os que participaram das trocas de dívida e todos esses anos cobraram pontualmente, com a exceção dos que viram-se afetados desde 2014 pelas decisões de Griesa. Entre eles podemos citar ao milionário George Soros, abutre como poucos, que o kirchnerismo tratou com honra quando antecipou que iniciaria um litígio contra as decisões de Griesa.

Para os kirchneristas, foi uma "patriada" deixar o pais em níveis historicamente baixos de dívida em dólares. A dívida com os portadores privados dos títulos, que em 2005 atingia 28,6% do PIB, diminuiu até 11,8 segundo o último dado conhecido (terceiro trimestre de 2015).

No entanto, a dívida pública total caiu bastante menos, passando de representar 60,7% do PIB no 2005 a um 43,7 no terceiro trimestre de 2015 (o mínimo tinha sido em 2011 de 33,3%). E é que a dívida que "foi paga", com credores externos em dólares, foi em grande medida substituida pela dívida local, na sua ampla maioria com órgãos do próprio setor público. Se a dívida intra setor público representava só 5,3% do PIB em 2005, atualmente atinge o 26,6% do PIB, sendo um 60% da dívida total.

Mais do 60% dos ativos que garantem as aposentadorias encontra-se emprestado para o Tesouro, e isto porque entre outras coisas existe uma necessidade de financiar o "desendividamento".

O endividamento intra setor público, é um primeiro dado que desmente a ideia levantada por economistas entusiastas do interior do governo como Alfredo Zaiat, que afirmou em 2010 que "hoje a dívida não é um condicionante central para a economia nem pela dimensão nem pelo seu horizonte de vencimentos".

O país tem menos exposição por passivos em dólares, mas as margens de soberania conseguidas se provaram de um alto custo e o efeito no tempo, limitado.
Pese a ser "pagadores seriais", a dívida pública total passou de USD 126 bilhões logo após a troca de 2005 a USD 240 bilhões no terceiro trimestre de 2015. O que é de destacar é que desde 2013 aumentou não só a dívida como a proporção do PIB, mas também o que fez parte da mesma em dólares.

Pagar quando abundam dólares, como fez o kirchnerismo devido aos altos preços das commodities que permitiram um saldo superavitário do comércio exterior que não existia há décadas, não tem nada de incomum.

É o mesmo que a Argentina fez durante os anos do ciclo agroexportador tão lembrado pela equipe que participa e/ou apoia o governo Macri. Foi voltar ao refugio dos mercados, do que a Argentina saiu forçadamente em dezembro de 2001. (Ainda que Adolfo Rodriguez Saá quando anunciou o default quis fazer a necessidade virar virtude e comemorou como uma decisão voluntária o que nas condições do país resultava inevitável), no lugar de virar a mesa e declarar o não pago de toda a dívida.

Num movimento pendular, o maior significado do desendividamento, como ficou claro no final do governo kirchnerista, é ter melhorado as condições para que o país se endivide novamente.

É o que hoje se propõe a fazer Macri. Ele comemora o desendividamento porque agora é a vez de iniciar um novo ciclo de endividamento.

Quando os dólares acabam, a tarefa já não é mais desendividar-se, mas sim voltar a endividar-se. Que não haja nisso diferença de princípios entre o governo anterior e o atual ilustra o fato de que Cristina Fernandez também ordenou ao ministro Axel Kicillof fazer os “deveres de casa” para retornar aos mercados em 2014: pagou o Club de Paris, a Repsol, e várias multinacionais julgamentos na Ciadi tão generosamente como os abutres. Somente o recrudescimento do conflito com os abutres explodiu então a possibilidade de voltar a endividar-se como agora se propõe Macri.

O falso remédio da dívida

Refinanciamento da dívida é parte do mantra do novo governo. O ministro Prat Gay defendeu em várias oportunidades que a divida é “boa”, porque permitiria suavizar o ajuste em marcha. Macri em seu discurso de abertura no Legislativo seguiu elaborando essa ideia do endividamento como algo positivo.

Disse que durante o período kirchnerista "o não acesso a crédito significou para Argentina um custo de 100 bilhões de dólares e 2milhões de empregos que não foram criados". Curiosa ideia se olharmos países que tiveram acesso ao crédito, e que hoje estão em franca deterioração econômica e perdendo uma proporção ainda maior de empregos. No caso do Brasil, que teve um amplo acesso aos mercados, até que virou o jogo e entrou no caminho dos ajustes.

Pelas políticas de cortes, teve uma queda de sua economia de 3,7% em 2015 e prevê para esse ano uma deterioração que oscilará entre 3 e 5%. Esse é o seu caminho que a CEOcracia propõe como idílico, quando já sabemos os custos que espera num prazo não muito longo. É pão para hoje e fome para amanhã. Também chega com muito atraso pois nos últimos anos os capitais vem em retirada e o custo do endividamento vem crescendo para os países "emergentes", ainda que a Argentina ofereça um negócio tão interessante que por um tempo os "mercados" poderiam fazer uma exceção e trazer fundos.

A aposta de cumprir todas as exigências dos "mercados" para que assim entrem capitais, é uma proposta de "benefícios" efêmeros, que só servem para aumentar a transferência de recursos aos especuladores das finanças, às custas de um fraco aumento do crescimento esperado durante alguns poucos anos.

Longe de "regularizar" o que falta, é urgente para o povo trabalhador lutar para que não continuem pagando uma dívida cujos custos caem sobre nossas costas. Não pagar a nenhum abutre, o não pagamento da dívida, a nacionalização dos bancos a imposição do monopólio do comercio exterior para por fim ao roubo dos especuladores e os ladrões imperialistas.




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