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O suspiro do oprimido: estudos mostram laço entre barbárie capitalista e conversão neopentecostal

Ricardo Sanchez

Kadish, Lasar Segall.

O suspiro do oprimido: estudos mostram laço entre barbárie capitalista e conversão neopentecostal

Ricardo Sanchez

Estudo publicado pela Folha mostra relação entre desemprego, perda de renda e avanço religioso neopentecostal. A contribuição política e teórica de Marx sobre a religião se mostra viva para pensar e agir no Brasil contemporâneo.

Qual brasileiro nunca se deparou com preces coletivas antes da jornada de trabalho, com pessoas lendo a Bíblia em um ônibus lotado ou com ruidosos cultos nas periferias e favelas? Ou com a agressiva defesa da homofobia e patriarcado no Congresso e Assembleias Legislativas estaduais? Que em nome da religião, meninas deveriam vestir rosa e meninos azul? Por outro lado, qual greve dura também não teve entre seus protagonistas trabalhadoras e trabalhadores que se viam como “os 300 gideões”, como falavam os garis do Rio em 2014?

O crescimento social e político dos evangélicos no país é um fato marcante dos últimos anos. O combate à religião, e particularmente às suas formas mais hetenormativas, patriarcais, criacionistas, também se tornou um lugar-comum em meio à “opinião pública” progressista brasileira. Porém, uma crítica seletiva à religião, focada só nos evangélicos e especialmente sem buscar as raízes sociais e históricas das conversões não parece produzir resultados diferentes daqueles de pregar a convertidos (ao ateísmo, no caso), postar-se de fora da classe trabalhadora e setores mais precários, naturalizar o que acontece no mundo vivido, tratar só da religião em si, como se isso fosse possível, por fora do mundo capitalista onde ela se dissemina.

As causas da conversão em massa ao neopentecostalismo precisam ser compreendidas para dialogar com os trabalhadores e preparar uma crítica radical à religião, que permita, como dizia Marx, avançar da crítica dos céus à necessária crítica radical de uma realidade miserável que precisa da religião como sua auréola sacra e justificadora.

Miséria da vida e conversão religiosa

A Folha publicou com destaque matéria correlacionando crises econômicas e conversões ao neopentecostalismo no Brasil. Quanto maior o desemprego, quanto maior a perda de renda, maior a conversão ao neopentecostalismo, diz essa pesquisa. Nos locais onde os efeitos da globalização foram mais fortes, por exemplo, no Rio de Janeiro, aponta a pesquisa, maior é a taxa de conversão, especialmente nos anos de 1990.

O avanço político dos evangélicos tem sido cheio de consequências reacionárias se olharmos exclusivamente para os mais famosos pastores e bispos, no apoio da bancada da bíblia não somente ao golpe institucional e a Bolsonaro, mas a cada elemento reacionário dos últimos anos. Contraditoriamente, todavia, às posições políticas de seus líderes, o fenômeno tem fortes raízes sociais: desemprego, fome, migração. A pesquisa publicada pela Folha, que correlaciona crises econômicas, desemprego e conversão ao neopentecostalismo, mostra uma sólida relação estatística: a cada 1% de perda de renda nos anos 90 haveria ocorrido 0,8% de conversão do catolicismo ao neopentecostalismo.

Esse resultado é convergente com outros poucos estudos comparativos produzidos pela sociologia da religião. Há uma quase inexistência de pesquisas estatísticas da dinâmica religiosa no Brasil e na América Latina, entre os poucos estudos, como o conduzido pela Pew Research (com dados até 2013) e por pesquisadores da PUC chilena se valendo de dados do “Latinobarometer” (com dados históricos e mais recentes), há uma sólida convergência com o apresentado pela Folha.

O estudo dos chilenos Somma, Bargsted e Valenzuela (2017), utilizando questionário do Latinobarometer que envolveu 17 países por duas décadas, demonstra, em traços gerais, fenômenos convergentes ao que é apontado pelo americano Pew Research Center (2014). Os dois estudos se valem de questionários representativos das populações de todos os países amostrados, e procuram realizar testes sobre a dinâmica dos fenômenos religiosos na região.

Ambos os estudos mostram como a maior parte do fenômeno de dinâmica religiosa na região é de conversão e não é geracional, por exemplo, o Pew Research mostra que enquanto 84% dos latino-americanos entrevistados foram criados como católicos, somente 69% se identificava assim no momento (PEW, 2014), uma diferença de 15% da população, e somente 9% alegou ter sido criada como evangélica e assim permanece se identificando (SOMMA, 2017, p. 134). Em todos países, há uma elevada parcela de ex-católicos que se tornaram evangélicos e, em algum países, tornaram-se não religiosos. Há uma boa discrepância de dados entre os países; em todos, há queda do catolicismo, com ritmo menos intenso em alguns países como México e Paraguai, com crescimento de população sem religião no Uruguai e Chile, e um crescimento majoritariamente evangélico em outros países, mesmo que em proporções diferentes. No Brasil, há a mesma pluralidade, lugares como o Rio de Janeiro que tem estatísticas convergentes com a região mais evangélica do continente, a América Central, e outros locais com maior “resistência” católica do que a média nacional.

A PEW Research encontra uma probabilidade maior de convertidos a religiões evangélicas (categoria que agrega denominações protestantes históricas e neopentecostais) terem passado por migrações internas do que aqueles que permaneceram católicos, especialmente em países como Brasil, Nicarágua e República Dominicana. No caso brasileiro, segundo essa pesquisa, 50% dos ex-católicos que atualmente se identificam como evangélicos migraram internamente, mas somente 38% dos que permaneceram católicos migraram. A maior parte dos migrantes internos no Brasil são pobres, chegam a cidades grandes e metrópoles e vão morar em periferias, favelas, sofrem mais intensamente o trabalho precário, o desemprego, a ausência ou precarização da saúde, da educação, entre outros direitos sociais.

Enquanto a Folha correlaciona perda de renda e desemprego, o instituto americano PEW vincula à migração interna, os chilenos citados mostram correlação de baixo IDH e identificação como evangélico (2017, p. 132).

Dessa maneira, tomando os três estudos, quanto mais capitalismo mais conversão a religiões presentemente mais conservadoras política e moralmente.

Com exceção da pesquisa do instituto PEW, que mostra a situação do convertido individualmente, as pesquisas citadas pela Folha e dos chilenos da PUC daquele país, não permitem afirmar que foram diretamente os mais pobres que se converteram, mas que nos locais onde há mais pobreza e maior desemprego, há mais convertidos. A experiência vivida permite preencher o que esses dados estatísticos não falam diretamente.

Entre perdedores relativos e perdedores absolutos dos últimos anos e décadas, nos lugares onde há um maior número dos segundos, houve maior migração à influência de Malafaia, RR Soares, Feliciano, Macedo, etc. Trata-se de fenômeno social e político brasileiro que guarda semelhança com o que ocorreu politicamente nos últimos anos no “rust belt” americano, e do ponto de vista religioso entre os imigrantes centro-americanos, em que, tal como no Rio de Janeiro, os neopentecostais tendem a se tornar maioria da população.

Manutenção dos convertidos, o matrimônio de neoliberalismo senil e desenvolvimento das igrejas neopentecostais como “Estado ampliado”

Nenhuma dessas pesquisas citadas explica a permanência dos convertidos nas novas religiões, nem como foi continuando a ocorrer numerosas conversões mesmo em anos de crescimento econômico.

Essa permanência é inseparável de fatos preponderantes na vida sob o capitalismo. Mesmo quando há crescimento de renda e emprego prospera ainda a exploração, a miséria, a brutal ausência de saúde, educação, saneamento, transporte público, cultura e lazer. Nem tampouco essa permanência na conversão deve ser separada dos efeitos e das pressões do crescente poder político das lideranças neopentecostais, nem de fenômenos que tem sido pesquisados recentemente como “conversões” de traficantes como narrados no livro “Oração de Traficante: uma etnografia”, ou ainda empresários associados a atividades ilegais ou tidas como imorais, sem que estes sequer tenham que dar sinais externos de abandonar suas atividades, permitindo essa conversão sem nenhuma mudança relevante na vida, e há ainda amplo relato do exercício de coerção armada, em determinadas localidades, forçando a “conversão” em determinadas localidades, especialmente contra praticantes de religiões afrobrasileiras.

Em meio a essa pluralidade de fenômenos e sua forte raiz social, amparada na degradação capitalista que está por trás do fenômeno da maior parte das conversões, a bancada da bíblia foi ganhando força em meio aos governos petistas, com concessão atrás de concessão, com cargos, recursos, isenções de impostos, concessões de passaportes diplomáticos, e veto a projetos em defesa de direitos das mulheres, populações LGBTT. Fortalecida pelo PT, essa bancada depois se converteu em ativa agente do golpe institucional e crucial base de apoio ao bolsonarismo.

Por outro lado, numerosas pesquisas da sociologia da religião na América Latina, ao abordar os mecanismos concretos de como acontecem as conversões, deixam bem marcados os impactos do capitalismo na vida dos convertidos. O “reavivamento” (ou outras expressões similares) em meio às dificuldades da vida (drogas, desemprego, prisões, doenças, mortes), bem como a importância das igrejas como um dos principais mecanismos do que Gramsci chamava de “Estado ampliado”, especialmente nas periferias. Nas dificuldades da vida, e no lugar da escola, dos sindicatos, entram crescentemente as igrejas.

A teoria sociológica da religião tem como um de seus “clássicos”, mesmo que controvertido e esquemático, e sem agência dos indivíduos, um livro dos anos 60 do século passado de Lofland e Stark. Esse modelo apresentado décadas atrás afirma as seguintes etapas da conversão: 1) experimentar tensões; 2) oferta de uma perspectiva religiosa de resolução desses problemas; 3) passar a buscar novas religiões; 4) achar um culto em momento crítico de sua vida; 5) estabelecer ligação com os participantes; 6) focalizar a vida no culto; 7) interação intensa com o culto.

Apesar do marcado esquematismo do modelo, fica claro com as pesquisas já citadas, que parte do que é descrito por Lofland e Stark pode ser entendido como condições sociais da conversão, se mostra empiricamente na realidade. Há grande probabilidade de que os convertidos tenham sofrido o doloroso processo de migração, há fartas evidências de quanto pior o IDH, quanto maior a perda de renda em uma localidade, maior o número de convertidos, e também há farta evidência quantitativa e qualitativa mostrando um grau maior de interação religiosa de neopentecostais do que de católicos, desde rezarem mais vezes ao dia a maior frequência nos cultos. O presenteísmo é ainda maior entre os recém-convertidos.

Essa “identificação e presença intensa”, presentes no modelo Lofland-Stark é ainda mais demandada quando há um neoliberalismo senil, com marcados ataques aos direitos sociais, quando um trabalhador precisa se submeter a uma dezena ou mais horas pedalando sob sol e chuva para ganhar um salário-mínimo, quando há mundos de gente vagando pelo planeta como imigrantes, e cresce a urbanização sem que cresçam os equipamentos a garantir direitos, como escolas e outros investimentos públicos, e inclusive há deterioração e fechamento de escolas como locais para cultura local, reduzindo os CIEPs cariocas e CEUs paulistas a nada, fechamento de creches e bibliotecas públicas para reduzir a parcela do orçamento público que não é apropriada pelos capitalistas, que demandam mais e mais recursos para si.

Desse modo, a miséria da vida sob o capitalismo se oferece tanto como causa da conversão e a crescente religiosidade se oferece como maneira de lidar, protestar, aceitar essa mesma causa miserável.

Quanto menos direitos sociais, mais necessidade da religião, como “Estado integral ou ampliado” (na acepção de Gramsci de uma totalidade orgânica de “sociedade política e sociedade civil”) para garantir comida, abrigo, integração, convívio social. Eis em resumo um papel destacado que as igrejas neopentecostais cumprem nas periferias do país: da alimentação a quem não tem o que comer, ajudar a achar um emprego (mesmo que seja um bico ou trabalho não registrado), a tocar um instrumento musical, a encontrar um par amoroso.

O neoliberalismo senil dos últimos anos, despido do triunfalismo econômico e ideológico dos anos de 1990, destroça direitos sociais e trabalhistas, impõe cada vez mais a necessidade de dupla jornada a uma classe trabalhadora cada vez mais feminina, mas em sua diminuição dos gastos para garantir parcelas crescentes da renda nacional em mãos capitalistas, necessita de maior presença do Estado ampliado para construir hegemonia, tanto em seus aspectos de coerção como nos de consentimento. Nesse intervalo que ganha maior importância o papel de ONGs e novas burocracias na “sociedade civil” e, especialmente, as igrejas. Ocupam um lugar que em outros momentos e outros países foi ocupado por sindicatos e escolas.

Cada crescimento da adesão popular e trabalhadora às igrejas enquanto aparatos de coerção, de contenção, mas também de socialização, expressam não somente um avanço da alienação e controle pela burguesia, mas também expressam como a vida miserável que o capitalismo impõe às massas exige um suspiro alhures, nem que sejam com a promessa de outra vida após essa vida.

Mais Marx e Lênin e menos Voltaire

Enquanto Luís XVI ainda tinha sua cabeça sobre o pescoço, Voltaire, Diderot e outros iluministas escreviam lindas peças filosóficas e literárias contra a religião. Indo muito além de seus escritos, a Revolução Francesa se apoderou dos terrenos eclesiásticos, e a Comuna de Paris aboliu o ensino religioso, criou condições para suprimir a opressão estatal a favor de determinadas religiões como subproduto de seu imenso desafio ao Estado burguês na primeira tentativa operária de “tomar o céu de assalto”.

Contudo, a crítica à religião prevalecente no país não esta nem no nível de um século antes da Comuna de Paris. No iluminismo, vemos a interminável ironia em Cândido, a acidez dos inúmeros Catecismos escritos por Voltaire marcaram época e constituíram um avanço da humanidade contra o obscurantismo medieval, forneceram preciosos argumentos contra a religião como justificativa de tudo na vida, no mundo. Repetir essas críticas e ironias em pleno século XXI, que é a maneira como uma parte do “progressismo” brasileiro trata a questão, constitui um pedantismo perante as “massas ignorantes” e um movimento consciente de ignorar solenemente os comprovados vínculos entre avanço da barbárie capitalista e o avanço das conversões, para, do alto de sua cátedra, negar-se a enfrentar a raiz do problema que leva à busca da religião: a miséria da vida no capitalismo.

As pesquisas aqui abordadas mostram uma comprovação empírica e contemporânea das primeiras teses de Marx sobre a religião, vinculando as misérias do capitalismo à busca pela religião como expressão da vida sem coração sob o capitalismo. Essas pesquisas dão vida ao que o revolucionário alemão afirmava em sua Crítica a Filosofia do Direito de Hegel: “A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo.”

O desenvolvimento do capitalismo, com cada vez mais degradações ambientais, sociais, gerando padecimentos físicos e psíquicos inéditos, mostra a atualidade da compreensão marxista, mas também do programa e da estratégia desenvolvidos pelos marxistas revolucionários para levar adiante esse necessário combate, retomando o que pontuava Lênin em 1909:

“Não se pode limitar a luta contra a religião a uma prédica ideológica abstrata, não se pode reduzi-la a essa prédica; é preciso pôr esta luta em ligação com a prática concreta do movimento de classe dirigido para a eliminação das raízes sociais da religião. Por que é que a religião se mantém nas camadas atrasadas do proletariado urbano, em vastas camadas do semiproletariado e também na massa do campesinato? Por causa da ignorância do povo, responde o progressista burguês, o radical ou o materialista burguês. Consequentemente, abaixo a religião, viva o ateísmo, a difusão das concepções ateístas é a nossa principal tarefa. O marxista diz: não é verdade. Essa concepção é um superficial culturalismo limitado e burguês. Essa concepção explica de modo insuficientemente profundo, não de modo materialista mas idealista, as raízes da religião. Nos países capitalistas contemporâneos são raízes principalmente sociais. A opressão social das massas trabalhadoras, a sua aparente impotência completa perante as forças cegas do capitalismo, que causa todos os dias e a todas as horas aos simples trabalhadores sofrimentos mil vezes mais horríveis e martírios mil vezes mais bárbaros do que quaisquer acontecimentos extraordinários como guerras, terramotos, etc. — eis em que consiste a mais profunda raiz atual da religião. [...] Nenhum livro educativo arrancará a religião de entre as massas oprimidas pelos trabalhos forçados do capitalismo, dependentes das cegas forças destruidoras do capitalismo, enquanto essas massas não aprenderem elas próprias a lutar unidas, organizadas, sistemáticas e conscientemente contra esta raiz da religião, contra o domínio do capital sob todas as formas.” (Sobre a atitude do partido operária em relação à religião).

Pode te interessar ver vídeo do seminário “A perspectiva marxista sobre a religião” com Simone Ishibashi

FONTES

LOFLAND, John; STARK, Rodney. Becoming a world-saver: a theory of conversion to a deviant perspective. American Sociological Review, v.30, n.6, 1965.

PEW RESEARCH CENTER. Religion in Latin America: widespread change in a
historically catholic region. Pew Research Center, 2014

SOMMA, Nicolás M.; BARGSTED, Matías A.; VALENZUELA, Eduardo. “Mapping 
religious change in Latin America”. Latin American Politics and Society, v. 59, n.I, 2017.


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