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Debate com evento do Grupo Puebla | O significado do discurso de Lula na UERJ

No dia 30 de março Lula deu um discurso na UERJ que lotou a Concha Acústica, ao lado de Dilma, Aloisio Mercadante além de diversos ex-membros de governos latino-americanos. Convocado como parte do evento Democracia e Igualdade em realidade se tratou de uma das ações da campanha eleitoral de Lula à presidência.

Simone IshibashiRio de Janeiro

sexta-feira 1º de abril de 2022 | Edição do dia

A quantidade de pessoas presentes ao evento expressa um anseio justo de por fim aos anos de Bolsonaro, que trouxeram à tona o que existe de mais odioso da burguesia brasileira. No entanto, o anseio de que os trabalhadores e a juventude poderão encontrar uma solução profunda para os nossos anseios votando em Lula não será atendido. E por mais que Lula sempre seja hábil em adaptar seu discurso aos ouvidos que lhe escutam, é preciso que se saiba que suas ações demonstraram no passado, assim como demonstram agora, que pretende governar junto aos que patrocinaram o golpe de 2016, e aos patrões e ricos que vivem da exploração dos trabalhadores e de arrancar os sonhos da juventude.

O primeiro anúncio da noite foi a renúncia de Ricardo Lodi do cargo de reitor da UERJ, que afirmou que sairia para pleitear uma provável candidatura sua ao lado da campanha de Lula. O reitor saudou André Ceciliano, deputado e presidente da Alerj, como um “grande parceiro” e um dos “principais aliados” da UERJ. Não citou que o mesmo André Ceciliano gravou vídeo pedindo votos para o candidato do PSL, ex-partido de Bolsonaro, Bruno Vianna em Campos de Goytacazes, além de ter sido a favor da privatização da CEDAE, sendo um fiel aliado dos patrões e seus partidos no Rio.

Mas coube à Lula, o discurso que contém omissões que na verdade dizem muito, e também de afirmações que devem ser observadas de perto e contrastadas com a prática. Ele buscou comparar seu primeiro governo com o atual momento que é muito mais convulsivo a nível internacional.

Logo no início de seu discurso Lula quis passar a ideia de que durante o seu governo, o Brasil tinha conquistado autonomia internacional, e que o país não será forte esperando ajuda das potências, em especial dos Estados Unidos. Que deveria buscar força no povo. Analisemos atentamente o significado concreto que essas duas questões têm quando se trata das práticas políticas levadas adiante por Lula e pelo PT.

Durante seus mandatos Lula não enfrentou o imperialismo estadunidense. Pelo contrário, foi aliado dos Estados Unidos, em especial durante o governo de Obama, mas inclusive não teve grandes enfrentamentos com Bush. No próprio discurso ele ressalta a sua ida a Casa Branca e de como mantinha relação amistosa com ele. Não tomou nenhuma medida contra os imensos lucros que o imperialismo retirava do país, e tampouco foi ativo contra a guerra do Iraque de Bush, como quis fazer crer no seu discurso da UERJ. Sua política foi mostrar-se como um “bom aliado” que poderia na América Latina, e mais especialmente na do Sul, ser um articulador regional sem, no entanto, travar qualquer enfrentamento estratégico com os Estados Unidos, ou qualquer potência imperialista.

Em seu discurso, Lula quis passar uma ideia de que a situação em 2002 era tão ou mais desafiadora como a atual e ele teria “passado na prova”. Vejamos se é assim. A inflação era alta, a dívida externa elevada e privatizações foram legados malditos de FHC em um contexto em que a burguesia exigia alterações das bases socioeconômicas do país para uma exploração superior, avançando sob a estatais em concomitante processo de reforma do estado. Desse processo, culminou em milhares de demissões nos serviços públicos, o regime de trabalho informal se espraiou, assim como o rebaixamento dos salários.

Os primeiros anos de governo de Lula foram exatamente uma continuidade do processo de degradação dos direitos parcos conquistados na constituinte de 88. Expressão concreta disso foi a Reforma da Previdência aplicada em 2004, a Lei das Parcerias Público Privadas do mesmo ano e aprofundou o processo de terceirização.

No primeiro de FHC havia 1,8 milhão de terceirizados. Com o governo Lula, em 2005, os terceirizados já eram 4,1 milhões, um crescimento na casa de 127%. O primeiro governo foi marcado pelos ajustes, crescimento baixo e uma margem de apoio apertada sustentada pelo aumento do salário mínimo e os programas sociais focalizados. Nesse sentido, os ajustes repassados ao conjunto da classe trabalhadora representaram uma continuidade em larga medida com os ajustes do governo anterior.

No início do século XXI, a situação que se criava em toda América Latina de esgotamento das bases de ataques neoliberais, que se transformaram em luta de classes em diversos países, levando à queda de vários presidentes em uma semana de 2001 na Argentina, barrou o golpe na Venezuela e levou os trabalhadores bolivianos a se levantarem. A barreira a projetos imperialistas como a ALCA estava inserida nesse contexto.

A conjuntura internacional altera suas bases frente a histórica crise de 2008 e o boom das commodities que permitiu ao país uma margem superior de margem de manobra, assim como a afluência de capitais para o Brasil com a crise financeira americana. O avanço de programas sociais, o aumento do salário mínimo, o acesso ao crédito possibilitaram uma inserção pelo consumo e não de direitos sociais consolidados. Viu-se na prática com o pouco que resta desses avanços sociais depois de 5 anos de golpe e o quanto podem esfarelar quando a burguesia deixa de abrir margens para concessões, as conquistas só foram possíveis por conta desse momento histórico que não se coloca mais. Vejamos de perto alguns dos principais portfólios dos governos do PT.

Outro exemplo que Lula omite em seu discurso foram os cortes dos governos do PT na Educação. Frente a barbárie que significa Bolsonaro, Lula e os governos do PT são saudados como os salvadores das universidades públicas, algo repetido diversas vezes pelos presentes no evento da UERJ. Se por um lado, foram ampliadas as vagas aos estudantes durante os governos do PT, a maioria delas precárias em universidades privadas, chegando a 78% do total. Lula não diz que em 2015 o governo Dilma para manter a “responsabilidade fiscal” exigida pela burguesia cortou R$ 10,5 bilhões da Educação, tirando a maior parte disso das universidades federais.
Em seu discurso o ex-presidente fez a defesa das riquezas nacionais e das empresas estatais, tais como a Petrobras e a Eletrobras que Lula por conta da ofensiva privatizadora. O que ele não diz é que durante seu governo, os acionistas da Petrobras enriqueceram fortemente, assim como os banqueiros e empresários das chamadas “campeãs nacionais”.

Apesar da denúncia dessa ofensiva, o que Lula não oferece é uma estratégia para que os trabalhadores e o povo se apoderem dessas riquezas para colocá-las a serviço dos interesses da ampla maioria, contra os privatizadores, acionistas estrangeiros, e interesses das burguesias locais e estrangeiras. Lula esconde que somente com a luta de classes isso será possível. E faz isso não porque ignore esse fato, mas porque apresenta um projeto estratégico de conciliação de classes. Um reformismo em um momento em que as reformas em prol dos trabalhadores e do povo são cada vez menos possíveis.

No terreno internacional as medidas realizadas pelo governo foram em larga medida de submissão ao imperialismo. O Mercosul nunca buscou enfrentar o imperialismo, sendo uma unidade comercial dos países da América do Sul que buscava ampliar as margens das burguesias locais para garantir vantagens em alguns ramos econômicos, e negociar em melhores condições com os imperialismos sem romper em nada com a subserviência àqueles.

Em seu discurso na UERJ, Lula diz que a “elite não via a África” e se gabou de ter visitado todos os países do Caribe. O que Lula conscientemente não citou foi o fato de que também durante o seu governo ocorreu sob seu comando a infame ocupação do Haiti pelas tropas da MINUSTAH. A ocupação do Haiti, que Lula entendia ser uma moeda de troca para um assento no Conselho de Segurança da ONU, teve à frente ninguém menos que o general Augusto Heleno, o grande aliado de Bolsonaro. Em frente ao público da UERJ, Lula fala dos direitos dos povos negros, mas enquanto foi governo não hesitou em ocupar militarmente, oprimir e promover sofrimentos ao povo haitiano, em uma ocupação que levou 1343 soldados para essa ação reacionária que custou em 2004 R$2,3 bilhões.

E se não bastasse, essa ocupação reacionária ainda serviu de treino às tropas brasileiras que posteriormente realizaram sob Temer a infame intervenção federal no Rio de Janeiro, enquanto a PM enviou efetivos para aprender a como matar negros e pobres, tal como o exército brasileiro fazia nas favelas haitianas de Cité Soleil. Esse laboratório assassino serviu de base para as formas de ação da PM na implantação das UPPs, responsáveis pela ampliação dos assassinatos das populações negras e pobres do Rio de Janeiro. As UPPS, aliás, foram comemoradas por Lula, que em 2010 chegou a afirmar que a partir de sua implantação a “polícia bate em quem tem que bater”.

A conjuntura internacional atual é marcada pela reatualização da época de crises, guerras e revoluções. A crise capitalista não se revolveu desde 2008 e uma guerra reacionária entre Ucrânia e Rússia está em pleno desenvolvimento. Independente das conclusões das atividades militares propriamente dita, a situação de conjunto estará marcada por conflitos imperialistas e saques nas semi-colônias. Muito diferente do que diz Lula, não é possível resolver “com uma cervejinha” os conflitos entre potências, mas pelo contrário, o imperialismo alemão se rearma fortemente pela primeira vez desde a segunda guerra mundial preparando suas próprias incursões.

Nesse sentido, a situação internacional é muito distinta de seu período como governo diminuindo drasticamente as margens para concessões sociais duradouras. Nesse sentido, e como não poderia deixar de ser, outra enorme ausente de Lula em seu discurso na UERJ foi a o fato aberrante de sua candidatura levar como vice um nome como Geraldo Alckmin. O ex-governador de São Paulo na época pelo PSDB, notoriamente conhecido por tentar fechar escolas e retirar merendas de crianças (e encontrou uma ampla resistência da juventude que ocupou as escolas em 2014) é um grande serviçal das alas mais neoliberais da burguesia brasileira. Alckmin é querido pela burguesia brasileira não apenas pela sua proximidade com as alas mais atreladas ao capital financeiro e sua ânsia privatizadora (a mesma que Lula tanto criticou em discurso na UERJ), mas também pela violência com a qual reprimiu as greves, principalmente da Educação, durante seus governos. Alckmin era nada mais nada menos do que o filho legítimo do golpe institucional, candidato da Rede Globo e da FIESP para liderar o país após Michel Temer. No seu currículo, carrega o histórico de governador mão de ferro, reprimiu brutalmente as greves no Estado de SP e, como dito acima, ficou conhecido como ladrão de merenda pelos estudantes das escolas estaduais, aonde houve milhares de ocupações que também foram reprimidas pelo seu governo em 2015 e 2016. O PT pavimentou o caminho para o golpe em 2016 ao não organizar os trabalhadores e a juventude para lutar, como a atual, cujas alianças política formadas pelo PT com ninguém menos que Geraldo Alckmin já apontam de que será feito um possível governo seu.

Em uma situação internacional distinta, convulsiva, com tendências inflacionárias, a proposição de se aliar com Alckmin é um prenúncio do que Lula diz é verdade. Pode mesmo repetir seu primeiro governo no sentido da aplicação dos ajustes da burguesia, o que não é dito é que as margens para concessões nesse marco podem ser ainda menores.

Com essa unidade absurda, Lula quer dar um recado claro à mesma elite burguesa que ontem criticou enquanto falava para estudantes: fiquem tranquilos, estamos juntos, não atacarei os mais ricos em nada, o de vocês está garantido. Dessa forma, Lula e o PT se aliam com as figuras mais expressivas dos políticos dos ricos e da burguesia, e golpistas responsáveis pela ascensão de Bolsonaro. Esse projeto de conciliação de classes só pode favorecer aos que já vem sendo favorecidos ao logo de todos esses anos. E esses não somos nós.

É claro que os anos sob Bolsonaro fazem com que haja uma aspiração à mudança. No entanto, a extrema-direita é uma força social no Brasil que não será derrubada pelas eleições e sem luta. Para enfrentar Bolsonaro, o desemprego, a inflação, a miséria e os ataques que ele representa junto às outras instituições do regime, é necessário garantir a independência de classe e unidade com os setores da esquerda, com um programa operário, para que os capitalistas paguem pela crise.

É preciso construir uma alternativa com independência de classe, que parte em primeiro lugar de se apoiar nas lutas em curso, como a forte greve dos garis no Rio de Janeiro (que sequer foi citada no evento). Diante do processo de aceleração da precarização do trabalho, inflação, fome e desemprego, nós do Esquerda Diário e do MRT colocamos a necessidade do conjunto das organizações de esquerda levantarem uma forte campanha unificada pela revogação integral da reforma trabalhista, articulando com a demanda pela revogação de todas as reformas e privatizações.

Esse seria um primeiro passo na batalha por reagrupar os setores críticos à conciliação petista e construir uma alternativa independente, inclusive com expressão eleitoral, com programa de fato socialista, para uma saída revolucionária, a única realista para enfrentar a destruição de direitos desse regime do golpe institucional.


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