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O racismo da ditadura militar brasileira

Renato Shakur

Imagem: Alexandre Alves

O racismo da ditadura militar brasileira

Renato Shakur

Introdução

Há um balanço compartilhado de parte da sociedade brasileira e de uma historiografia sobre o golpe de 1964 a qual expõe a dura perseguição, o assassinato e o desaparecimentos dos militantes de esquerda que se rebelaram contra o regime ditatorial, que apesar de reivindicarem estratégias de orientação “foquista” e “guevarista”, colocaram-se contra o autoritarismo do regime militar.

No entanto, há uma outra história. Também essa de perseguição, assassinato e desaparecimento de trabalhadores negros, de militantes negros de movimentos sociais antirracista, mas que diferentemente daquela outra, essa parte da história da ditadura militar brasileira carrega a marca mais cruel e sanguinária do racismo.

O golpe de 1964 foi um golpe contra a classe trabalhadora e, sem sombra de dúvidas, aprofundou ainda mais o racismo estrutural e a violência contra a população negra. A ditadura militar precisou acentuar ainda mais o preconceito racial para a acumulação de capital e para derrotar o proletariado que vinha sendo, no pré-64, um fator de desestabilização do regime (Estratégia Internacional Brasil – A classe operária na luta contra a Ditadura, p. 164-1980).

Sem percebemos a íntima ligação entre a questão racial e a questão de classe, ficam vedados maiores entendimentos entre a ditadura militar brasileira e o racismo. Acerca dessa relação entre raça e classe Karl Marx numa carta em 1846 a Engels sugeriu que a exploração racial esteve intimamente ligada ao modo de produção, para ele, sem a escravidão do negro “não haveria algodão, e sem o algodão não haveria a indústria moderna”, sendo a escravidão uma “categoria econômica de primordial importância” para o sistema capitalista. (Anderson, 2010, p. 83).

Os militares e a democracia racial

A ditadura militar foi uma defensora da democracia racial. A fim de acentuar a exploração econômica e dominar subjetivamente as massas negras, os militares defenderam de maneira irrestrita o mito da democracia racial, que tentava apagar da sociedade brasileira a situação de desigualdade entre negros e brancos a partir da miscigenação e do distanciamento gradual do povo negro em relação à condição escrava.

A pesquisadora Karin Kosling, por exemplo, afirmou que, “no regime militar, o mito da democracia racial e da congregação racial harmônica brasileira fazia parte de um projeto político ideológico”, e que, portanto as denúncias do movimento negro organizado que concorressem para combater esse mito propagandeado pelo regime, certamente acabou sendo alvo de repressão e perseguição política.

O fundamental é que a defesa do mito da democracia racial pelos militares desde 1964 cumpriu um papel-chave na exploração econômica e na dominação capitalista, ao afirmar que não haveria racismo na sociedade brasileira, a ditadura militar e a burguesia brasileira tentaram desviar as explosivas contradições sociais resultado de uma estrutura econômica baseada na escravidão e no racismo.

Não se pode falar sobre racismo!

O ditador Costa e Silva, a partir das atribuições conferidas pelo Ato Institucional nº 5 (AI-5), assinou o decreto-lei 510, artigo 33º, que vedava qualquer discussão pública que colocasse em questão o tema da raça, sendo esta prática observada como uma forma de “incitar o ódio e a discriminação racial”. Ora, os militares que defendiam a ideologia da democracia, através de dispositivos bonapartistas do regime, tentaram criar um ambiente que eliminasse do conjunto da sociedade e, sobretudo das massas proletárias, a questão negra, criminalizando e punindo aqueles que ousassem falar sobre discriminação racial e racismo.

Essa foi a senha para perseguir, criminalizar, prender e torturar trabalhadores e militantes de entidades dos movimentos negros e da esquerda brasileira que denunciavam o racismo e a violência policial perpetrados pelos militares. O regime ditatorial se valeu de dispositivos autoritários como o AI-5 para intensificar ainda mais a perseguição e a violência contra negros e negras, sufocando qualquer voz dissonante do regime que denunciasse o cotidiano racista e violento vivido pelos trabalhadores brasileiros.

Identidade negra e perseguição policial

A polícia política também cumpriu um papel semelhante e não menos racista. Servindo com um departamento de perseguição aos movimentos sociais, organizações de esquerda e sindicatos, a repressão e perseguição aos negros foi um fator fundamental de sua atuação. Em um documento da Aeronáutica datado de 2/3/1978 enviado ao Centro de Informações da Aeronáutica (CISA), um informe da Diretoria de Eletrônica e Proteção ao Voo, órgão diretamente vinculado à repressão política do regime ditatorial, descreve dois “suspeitos” da seguinte maneira: “Havia dois homens num ‘opala beje (ano 77 ou 78)’, ao volante um homem magro moreno e cavanhaque e óculos escuros”, ao seu lado “um homem moreno forte, cabelo Black Power”.

Para o sistema de vigilância de um organismo vinculado à polícia política do regime, o fator que condicionou dois homens dentro de um carro a serem suspeitos de algum crime foi a cor negra de sua pele e seu cabelo crespo. Dois homens negros, tendo um deles cabelo black power eram os alvos perfeitos de um regime autoritário que perseguia os negros e as negras que de alguma forma tentavam expressar sua identidade. A perseguição e a criminalização da identidade negra não parou por aí. As batidas policiais, investigações e repressão dos bailes souls eram uma constante, bem como a violência nas periferias e favelas.

Conclusão

O golpe de 1964 e a ditadura militar que seguiu durante 20 longos anos teve um inimigo central, os trabalhadores brasileiros e se valeu de expedientes bonapartistas do próprio regime, para intensificar a exploração sobre as massas proletárias e para enriquecer uma burguesia diretamente ligada ao imperialismo. No Brasil, um país de estrutura econômica profundamente marcada pela escravidão e subordinada aos ditames dos centros capitalistas, principalmente os EUA, esse golpe teve que ser direcionado, sobretudo, aos negros. A ditadura militar brasileira se utilizou do racismo, seja a partir de expediente de repressão política, seja pelo mito da democracia racial, para perseguir, matar, torturar e explorar trabalhadores e trabalhadoras negras.

Referências

ANDERSON, Kevin B. Marx at the margins. Chicago, 2010.

KOSSLING, Karen Sant’Anna. As lutas anti-racistas de afro-descendentes sob a vigilância do DEOPS/SP. São Paulo, 2007.

PEDRETTI, Lucas. Bailes soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de 1970. Rio de Janeiro, 2018.


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Renato Shakur

Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF
Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF
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