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RESENHA: LULA, A VERDADE VENCERÁ | As propostas de Cristina Kirchner na Argentina e seu espelho na crise brasileira

A seguir trazemos uma tradução de um ensaio acerca do livro de conversas com Lula, A verdade vencerá. O ensaio, publicado originalmente em nossa seção Argentina do semanário Ideas de Izquierda, busca tirar lições da experiência nacional e popular promovida sob os anos lulistas.

Matías MaielloBuenos Aires

sexta-feira 18 de maio de 2018 | Edição do dia

A Editorial Octubre, o CLACSO (Conselho Latinoamericano de Ciencias Sociales), o Página/12 e a Boitempo Editorial do Brasil acabam de publicar em castelhano o livro de conversas com Lula, A verdade vencerá. Com a presença de Dilma Roussef, o livro foi apresentado na Feira do Livro de Buenos Aires. Entre as referências das forças políticas nacionais, falaram de Hugo Yasky a Felipe Solá, passando por Gustavo Menéndez e Víctor Santa María, presidentes do PJ, bonaerense e portenho, respectivamente, até Pino Solanas e Victoria Donda. Havia um ponto democrático da convocatória, que era a liberdade de Lula e seu direito de disputar as eleições, mas foi também uma oportunidade para todo esse espectro político de louvar a figura do ex-mandatário e de Dilma.

O processo que se vive no Brasil tem consequências regionais de primeira ordem. Um golpe institucional em curso no principal país da América do Sul, do qual a detenção e possível interdição de Lula representa seu capítulo mais recente. Um cenário em que os juízes decidem em quem se pode votar, os militares “advertem” o que podem decidir os juízes, e governa contra as massas um presidente golpista cujos índices de popularidade equivalem a um erro estatístico.

O testemunho de Lula se faz duplamente interessante ao leitor argentino. Por um lado, porque o Brasil da última década e meia constituiu o projeto mais amplo do período recente da América do Sul no sentido de impulsionar uma burguesia “nacional” – o que na Argentina sob os governos kirchneristas não passou dos Cristóbal López. Por outro lado, porque o PT protagonizou um ciclo político mais amplo que o kirchnerismo. É semelhante ao que teria se passado na Argentina se Scioli tivesse triunfado em 2015. O PT teve que afrontar no governo o fim das condições econômicas excepcionais que o tinham sustentado. Sua resposta foi o ajuste.

Hoje, quando o projeto Nac&Pop [Nacional & Popular] local se postula como alternativa frente à ofensiva do machismo contra as massas,A verdade vencerá nos apresenta uma boa oportunidade de olhar as perspectivas desses tipos de projeto no espelho do Brasil.

A culpa é de Dilma

Nas entrevistas, Lula ensaia um balanço dos seus governos e uma interpretação das causas do golpe institucional. Deixa ler nas entrelinhas que se tivesse sido o presidente a partir de 2014 poderia tê-lo evitado. Não com mobilização, claro, e sim graças à sua credibilidade e à sua capacidade de negação, pagamentos os quais chamaríamos de “boneca política”. Para fundamentar, mergulha nos dois últimos anos do governos do PT, tentando destacar-se da política de Dilma como presidenta.

Para quem lê A verdade vencerá, não deixa de ser uma situação um tanto estranha que a própria Dilma Roussef tenha se encarregado da apresentação do livro. Nele, Lula atribui quase exclusiva responsabilidade ao ajuste implementado pelo PT nos seus últimos anos de governo, sugere que a confirmação do bloqueio golpista foi uma boa medida devido à sua incapacidade política, e a desenha como uma pessoa que nem sequer queria ganhar as eleições, ao mesmo tempo em que se havia negado a oferecer a ele a candidatura.

Segundo Lula, Dilma: “cometeu muitos erros na política pela pouca... talvez pela pouca vontade que ela tinha de lidar com a política; muitas vezes, ela não fazia aquilo que era simples fazer.” . E nos conta:

“Eu era a única pessoa que dizia à Dilma as coisas como elas eram, conversando com franqueza. Ela ouvia, mas, como tem uma personalidade muito forte, devia pensar: “Esse cara não entendeu nada”. Ela chegou a falar para um deputado, brincando: “Você não entende de política”. O cara tá na Câmara há 48 anos… [risos]” (p. 35).

Mais adiante nos conta uma piada que inclui um conselho lapidar:

“a Dilma não queria nem ouvir falar no Eduardo Cunha. E aí é muito difícil você fazer política quando transforma as divergências políticas em coisas pessoais. Muito difícil. O conselho que eu dou é não entrar na política.” (p. 136)

É inegável, na história da política, a importância das personalidades individuais dos governos. Mas, ainda em Estados dependentes com traços semi-coloniais como Brasil ou Argentina, em que o governo do Estado capitalista conte com burguesias locais débeis e tenha que lidar com classes operárias nacionais mais fortes em termos relativos (no caso do Brasil, com mais de 90 milhões de trabalhadores e trabalhadoras) e com o imperialismo como ator fundamental.

Lula se orgulha de haver tido êxito nessa empresa durante seus mandatos. Em seu prefácio de A verdade vencerá, Luis Filipe Miguel ensaia uma explicação:

“Na Presidência, Lula construiu uma amplíssima base de apoio parlamentar, seguindo o padrão de seus antecessores: o Poder Executivo é um balcão de negócios, que aprova seus projetos no Congresso oferecendo em troca cargos e vantagens. Manteve uma política econômica favorável aos bancos e foi de prudência extrema na implementação de bandeiras históricas do partido, como a reforma agrária. Iniciativas em agendas consideradas sensíveis, como direitos reprodutivos, direitos sexuais ou democratização da mídia, foram revogadas sempre que a grita dos grupos mais conservadores ultrapassou determinado patamar.O caminho adotado foi abrir mão de tudo para garantir um ponto: o combate à miséria extrema, por meio de políticas de transferência de renda para a população mais pobre, cujo maior emblema foi o programa Bolsa Família. […] Foi uma maneira de postergar a resolução dos conflitos sociais e, enquanto isso, assegurar algumas melhorias para os mais pobres sem ameaçar os privilegiados.” (p. 18)

A seu tempo, Chico Oliveira utilizou o interessante conceito de “hegemonia às avessas” para definir aquela situação. A burguesia, incapaz de articular uma hegemonia própria, dava a direção moral do país a Lula (o Bolsa Família incluso), com a condição de fortalecer seus negócios. No esquema, digamos, “neodesenvolvimentista" do PT não havia contradição. A famosa teoria do derrame, mas “com desenvolvimento”.

Nas entrevistas, Lula se encarrega de explicá-lo a seus interlocutores. Gilberto Maringoni pergunta: “Presidente, como o senhor costuma repetir uma frase: ‘Eles nunca ganharam tanto dinheiro como no meu governo [algo como o ‘se llevaron en pala’ que costumava repetir CFK por estas bandas]”. Será que isso foi uma vantagem ou é um problema?” E lula responde pedagogicamente:

“O problema do sistema capitalista é que, se você não ganhar dinheiro, você não sobrevive. O cara não monta empresa, o cara não… Se eu quero montar uma empresa, eu tenho que saber se vou ter lucro com o produto. […].

[…] Eu abro uma licitação para construir uma mesa dessas aqui [bate na mesa]. Se o cara perceber que a taxa de retorno é pequena, ele simplesmente não vai. Se ele não for, você vai ter que fazer outra licitação ou criar uma empresa estatal para fazer a mesa.” (p. 81)

Sob esses princípios, durante os governos do PT, aprofundou-se o desenvolvimentos dos chamados “global players” brasileiros nos espaços que ofereceriam “vantagens comparativas”, em ramos como a construção civil, a aviação, a construção naval, petroquímica, a indústria da carne. A Odebrecht, por exemplo, a mais importante construtora do Brasil e uma das maiores do mundo, floresceu e se expandiu internacionalmente. A JBS, a maior processadora de carne bovina do mundo levou seus negócios a 150 países. A própria Petrobras se afirmou como uma das maiores empresas do mundo, contando com as reservas de “Pré-Sal” descobertas no litoral brasileiro. A empresa Sete Brasil desenvolveu a construção de navios-sonda, um ramo estritamente monopolizados por empresas imperialistas.

Claro que todo esse assunto não se deveu ao empreendedorismo da “burguesia nacional” brasileira, mas produzindo uma política que vinha de FHC ao benévolo financiamento que o PT entregou em grandes quantidades a diferentes capitalistas através do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDS).

Mas a história não terminou bem, e muito antes do golpe institucional. O que deu errado? Qualquer leitor crítico de A verdade vencerá sentirá que essa pergunta fica sem resposta. Foi somente por que Dilma “tinha pouca vontade para lidar com a política” ou havia algum problema no projeto político?

Brincando na floresta

Olhando um pouco para a história, podemos ver que os anos e anos de crescimento que fundaram o entusiasmo com o Brasil do BRIC se deram em um contexto bem particular. O imperialismo norteamericano, em meio ao declive histórico de sua hegemonia, havia definido como prioridade sua cruzada no Oriente Médio – e acabou por se atolar. Nossa região gozou de uma primavera econômica de quase uma década (baseada no “boom” dos commodities), e a China multiplicou 22 vezes o volume de seu comércio com a América Latina em 15 anos.

Lula afirma no livro: “Se fizessem uma pesquisa em 2013, 2014, eu era unanimidade no meio empresarial”. Ao que Maringoni pergunta: “E por que isso mudou?” E o ex-presidente respondeu com um lacônico: “Ah, isso é o que eu quero saber” (p. 48).

A “boneca política” de Lula não tinha apenas méritos próprios. Aquelas condições excepcionais permitiram ao PT implementar um esquema econômico que ao mesmo tempo que sustentava políticas como o Bolsa Família, financiava o desenvolvimento dos “global players” e garantia ao capital imperialista lucros recordes, assim como o monumental negócio da dívida pública, cujo serviço chegou a consumir 42% do orçamento federal com o PT ainda no governo. Contudo, pouco depois de iniciada a crise mundial, a orientação do imperialismo norteamericano no cenário regional começou a mudar.

A arremetida imperialista buscou colocar o “Brasil BRIC” na caixa e impulsionar o avanço contra os trabalhadores e setores populares. Nessa empresa, foram fundamentais Sérgio Moro e o exército de juízes vitalícios, vários deles treinados no próprio Departamento de Estado norteamericano. O avassalamento de direitos democráticos elementares, sempre presente contra a população negra e os habitantes das favelas, passou a ser utilizado também para dirimir as disputas entre os “de cima” (escutas ilegais, prisões sem provas, delações, etc.).

Mas Lula é taxativo nesse ponto. Diante da pergunta de Juka Kfouri: “O senhor ainda consegue ter confiança no último tribunal, o Supremo?” Lula responde: “Preciso ter confiança. Se eu perder a confiança no Poder Judiciário, preciso parar de ser político e dizer que as coisas neste país só vão se resolver na base da revolução”. E acrescenta: “Como também não acredito em tribunal popular, continuo acreditando na democracia e no funcionamento de todas as instituições” (p. 103-104).

A corrupção é o lubrificante “de classe” que faz funcionar a democracia burguesa. Já dizia o velho Engels em 1891. Os governos do PT não seriam uma exceção. Pois bem, a Lava Jato foi uma operação em escala ampliada, não afetava apenas os políticos, como o mensalão, mas também os encastelados burgueses brasileiros dos grupos multinacionais, como a Odebrecht, Andrade Gutiérrez e os Bastista.

Nós, trotskistas, costumamos falar da “burguesia nacional” como uma classe covarde devido a seu próprio caráter de parceira menor do imperialismo, mas, na realidade, sempre oferece novos exemplos para ilustrar a definição. Gente como Emílio e Marcelo Odebrecht, ou Joesley e Wesley Batista, supostos porta-estandartes do Brasil no mundo para a visão do PT, entraram para a história como bons “delatores premiados”. O PT que tinha dado os fundos do Estado para engordar ruas ganâncias terminou sendo o principal “delatado”. Esse foi o princípio do fim, muito pouco digno, de certo, do “Brasil potência”.

Um projeto político esgotado

A classe trabalhadora brasileira é um verdadeiro gigante. Diante do imperialismo, a burguesia “nacional” busca se fazer a partir de uma parte maior da pilhagem que “rouba” dos explorados, mas, evidentemente, uma classe comandada pelos Odebrecht ou os Batista só pode fazê-lo se contar com algum tipo de apoio da classe trabalhadora. O perigo implícito é desencadear um movimento de trabalhadores de massas, que ameace sua própria existência. É preciso apoio, mas “controlado”. É por isso que o Partido dos Trabalhadores de Lula foi uma peça-chave para aquela equação se fechar durante mais de uma década.

No prefácio citado, Luís Felipe Miguel assinala que:

"A presença de um partido de esquerda na administração federal exigiria toda a contenção do mundo, a fim de não gerar algum tipo de desestabilização. Sindicalistas e lideranças de movimentos sociais diversos foram chamados a ocupar posições nos governos petistas. Embora isso afiançasse que houvesse sensibilidade, dentro do Estado, às demandas desses grupos, sobrepunha a elas as preocupações de governo e incentivava que conversas de bastidores substituíssem a mobilização como forma de buscar ganhos. Como regra, no período petista, a preocupação principal do campo popular foi proteger o governo – e as pressões sobre ele vieram quase sempre só da direita.” (p. 19).

Com o fim do ciclo econômico ascendente e o imperialismo ajustando as chaves, todo esse esquema começou a ruir. A manta era cada vez mais curta. Em junho de 2013, rompeu-se aquela passividade da que fala Miguel. As massas saíram às ruas, a juventude esteve na linha de frente. A recusa ao aumento do transporte se combinava com o descontentamento generalizado pelo Estado dos serviços públicos e as aspirações da chamada – eufemisticamente – “nova classe C”, composta, em grade medida, por trabalhadores assalariados.

Lula explica como conseguiram, todavia, ganhar as eleições de 2014. Diz:

“Nós ganhamos a eleição com um discurso. A Dilma dizia ‘nem que a vaca tussa eu vou mexer nisso, nem que a vaca tussa eu não vou fazer aquilo’, e isso levou a juventude da periferia, os movimentos funk, rap, punk, o que você possa imaginar, companheiros do PSOL e muito mais gente a mostrar a cara para dizer que a direita não podia ganhar. Aí, primeiro veio o Levy como ministro da Fazenda, o que foi um desastre para a nossa militância. Depois, a proposta de Reforma da Previdência apresentada no dia 29 de dezembro [de 2014]. […] O nosso povo do movimento social, do movimento sindical, dizia: “Fomos traídos”. Esse é o sentimento da militância. (p. 116-117).

Pode surpreender ao leitor do livro que o principal dirigente de uma força política responda como se fosse um observador, ao se referir, nada mais nada menos, que à fraude eleitoral realizada pelo PT frente a seus eleitores, que desmoralizou amplamente sua base. É que o PT teve a má-sorte de ganhar as eleições, diferentemente de Cristina Kirchner em 2015 com Scioli, que ensaiou um discurso eleitoral similar ao de Dilma relatado por Lula.

Esses tipos de inconsistência no relato do ex-presidente se reiteram ao longo do livro. O diálogo sobre o ajuste fiscal é ilustrativo: “Gilberto Maringoni – E o que o senhor achou do ajuste fiscal? Lula – Muito ruim, muito ruim... Gilberto Maringoni – Publicamente, o senhor apoiava. Lula – Na verdade, não. Eu não apoiava nem desapoiava.” (p. 38). Também é digno de nota o relato da sua proposta para o ministério da fazenda: “Lula – O que eu falei para ela foi que minha recomendação era o Meirelles [31] . E dizia pra ela: ‘Dilma, a questão com o Meirelles é saber como lidar com ele’” (p. 35). Lembremos que Meirelles – presidente do Banco Central durante as duas presidências de Lula – acabou se tornando o Ministro da Fazenda do governo golpista de Temer.

Desse modo, não se trata de inconsistências discursivas, tampouco de uma mera tentativa de atribuir as culpas à pessoa de Dilma Roussef, nem de um respeito irracional pelo poder judiciário quando diz “necessito ter confiança”. É simplesmente o único modo de defender um projeto político de conciliação de classes, cuja viabilidade desapareceu com as condições excepcionais que o sustentaram.

Hoje, o imperialismo retomou a iniciativa na região. Macri e Temer, cada um a seu modo, são emergentes dessa nova situação. Nessas condições, ainda que se arrependam os que querem reeditar o lulismo e o kirchnerimos, a questão passa pela classe operária – de ambos os lados da fronteira – poderá encarar os futuros enfrentamentos com uma política independente de qualquer variação do capitalismo – incluindo, a “nacional”. O imperialismo e as burguesias locais colocam todos os seus recursos cotidianamente para que isso não se suceda. Eles têm pavor de um movimento de massas dos trabalhadores que não possam controlar, e nisso, sem dúvida, não se equivocam.

Tradução: Paula Almeida


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PT    Lula    Política



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