×

LITERATURA | O marxismo perante a literatura Beat

Ao inflamarem as letras mornas através da velocidade do pensamento que não comporta beletrismo, os escritores beats da década de cinqüenta legaram um tipo de matéria prima poética que anima leitores e escritores brasileiros dispostos a fazer troça do status quo.

terça-feira 12 de maio de 2015 | 00:00

Entre aquele que borda versinhos e o poeta revolucionário existe uma enorme diferença. O segundo não separa a escrita dos ritmos do corpo, da rua palpável e dos conflitos políticos. A mesma diferença também é verificável entre o romancista revolucionário, que se arrisca livremente pela escrita pulsante, e o romancista-tatu (este último está preso na toca e indiferente quanto ao potencial transgressor da literatura). Longe de ser o pombo correio de uma ideologia política, o escritor revolucionário exprime a necessidade de ruptura com a ordem vigente de acordo com as possibilidades estéticas contidas na linguagem literária. Tal condição tem empurrado os jovens escritores mais inconformistas não na direção do chazinho literário mas de experiências contemporâneas como a Beat Generation.

Ao inflamarem as letras mornas através da velocidade do pensamento que não comporta beletrismo, os escritores beats da década de cinquenta legaram um tipo de matéria prima poética que anima leitores e escritores brasileiros dispostos a fazer troça do status quo. Este fato já é verificável no Brasil dos anos sessenta, quando o poeta Roberto Piva, e outros, trouxeram a sensibilidade beat para a literatura brasileira. De uns quinze anos pra cá, é relativamente crescente o número de intelectuais que perambulam por cafeterias e botecos da vida portando livros de bolso escritos por gente como Allen Ginsberg e Jack Kerouac. Como será que a crítica marxista deve proceder perante a influência dos beats? A literatura beat é algo que não podemos descartar se quisermos enriquecer os debates culturais dentro da esquerda. Ao mesmo tempo, cabe ao marxismo identificar o que está vivo e o que está morto no legado beat.

A obra-vida dos escritores que fazem parte da geração beat está longe de ser um mero estereótipo pré-ripongo, pois a escrita dos beats integra-se a uma dimensão fundamental da literatura de combate. Sendo um dos principais embriões da contracultura, a produção literária beat corresponde a um processo de modernização da cultura norte americana durante as décadas de quarenta e cinquenta. Quando Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs selaram uma insana amizade literária por volta de 1944 (o resto do bando chegaria logo depois), os EUA viviam uma verdadeira esquizofrenia na cultura. De um lado o American Way of Life convertendo a sociedade num pesadelo de plástico, educando pessoas que deveriam estar mortas da cintura pra baixo, glorificando “heróis de guerra" e promovendo uma temporada de caça a comunistas, desajustados, “marcianos" e qualquer um que questionasse a sociedade burguesa branquela e puritana. Do outro lado, estavam os bichos doidos que devoravam a modernidade européia dos Dadás e dos surrealistas, interessavam-se pelo zen budismo, freqüentavam círculos políticos anticapitalistas e mergulhavam nas culturas marginalizadas dos EUA, muito especialmente na cultura negra, cuja principal expressão estava na música do jazz.

Implodindo as barreiras entre a palavra escrita e falada, entre vivência e ficção, entre o poema e o texto em prosa, os beats, ainda que não apresentassem uma plataforma estética definida em torno de um programa literário, organizaram uma extensa produção que não perdeu em nada da sua explosiva eficácia sensível: a ausência de rebuscamento e polidez no texto literário permitiu a inserção da gíria, da fala da rua, do som improvisado (como no bebop) e das livres associações mentais que entre o onírico e a crítica social trouxeram espontaneidade ao ato de escrever. Como já foi dito muitas vezes, a escrita alucinada de Kerouac está em sintonia com o improviso musical de Charlie Parker e a action painting do pintor Jackson Pollock. Se 80% daquilo que os meios de comunicação de massa impõem da cultura norte americana de hoje é lixo, existe uma América oculta que contribui com a crítica e a contestação ao sistema capitalista. Porém, tão difícil quanto combater a caretice inerente à sociedade atual (e aqui no Brasil o puritanismo vem crescendo, inclusive, e indevidamente, no contexto proletário) é fazer a esquerda compreender que existem aspectos altamente progressistas no caldo literário beat.

Mesmo nos anos cinquenta, a esquerda norte americana caiu de pau nos beats. Havia, e ainda há, uma incompreensão de fundo estético e político. É claro que existem diferenças filosóficas entre marxismo e contracultura. Revolucionar, do ponto de vista político, pressupõe organização para se manifestar e atuar no seio da classe operária: são os trabalhadores organizados e em luta que apontam para a superação do sistema capitalista. Portanto, pegar caronas sem destino, santificar uma existência marginal junto ao lumpen e levar uma vida junkie, envolvem uma conduta que não tardaria em fazer com que os beats e toda contracultura dessem com a cara no muro: aquele beco sem saída com o qual “as melhores mentes" da geração de Ginsberg se depararam, acabou sendo o destino de uma postura política que almeja apenas “cair fora" do sistema e não destruí-lo. Mas feitas estas reservas de horizonte filosófico, em que o misticismo pautado numa visão instantânea e não histórica da realidade, torna-se incompatível com o materialismo dialético, existem aspectos literários e comportamentais importantíssimos na beat. A contribuição fundamental na Beat Generation está em acionar uma das principais dimensões revolucionárias da literatura: cabe aos escritores construírem uma imaginação e uma sensibilidade emancipadas das formas de dominação/repressão da cultura burguesa.

Uma nova subjetividade via literatura apresenta através da beat uma força antagônica, que não pode morrer na estrada ou na sarjeta mas sim ser incorporada pela crítica literária marxista. Por mais individualista que fosse Burroughs ou por mais politicamente conservador que fosse Kerouac, a escrita destes e de outros beats faz um estrago nos códigos de linguagem (e no gosto) da classe dominante. Compreender por exemplo que o poema pode ser um blues (tal como fizera Ginsberg), significa retirar a literatura do pedestal e misturá-la com a vida.




Comentários

Deixar Comentário


Destacados del día

Últimas noticias