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terça-feira 23 de janeiro de 2018 | Edição do dia

Embaixador da “paz social”

A conjuntura do Cone Sul em que o Papa adentra, está tomada por governos de direita não assentados, quer dizer, que não conseguem impor uma nova relação de forças para avançar qualitativamente em seus planos contra a classe trabalhadora e o povo pobre. Avançam à custa de um duro desgaste de seu capital político, como com Macri na Argentina com a contra-reforma da previdência, onde as manifestações dos dias 14 e 18 de dezembro mostraram que contará com forte rechaço de uma “sociedade mobilizada”. Ou como o governo de Temer, órfão de legitimidade e impopular, o que é um fator de incerteza permanente no marco da crise orgânica do regime brasileiro. No Chile o retorno de Piñera à presidência está longe de ser triunfante, indica ser um governo que terá que negociar permanentemente no parlamento e contar com a resistência aos seus planos entre a população. No Peru, Kuczynski enfrenta uma severa crise política e o repúdio nas ruas pela absolvição de Fujimori [1], além de importantes mostras de resistência como tem sido as greves mineiras.

Neste marco, o Papa não vem para “desestabilizar” a direita, mas sim pregar a “paz” e a “reconciliação” em prol da “governabilidade” e da ordem. Reivindica maior “sensibilidade” e atitude contra a pobreza para conter as tensões sociais que os ajustes aprofundam. Sua estratégia busca fortalecer a igreja como fator de mediação recuperando o peso social entre os trabalhadores e o povo humilde. Esse é o sentido da retórica aos “movimentos populares”, à juventude e aos povos originários, como se dirigir aos mapuches em Temuco ou como fará frente à representantes indígenas no Peru na próxima escala em Puerto Maldonado, nas margens do rio Madre de Dios.

O Papa promove uma maior influência política e organizativa da igreja com os “movimentos sociais” para canalizar suas reivindicações dentro do regime, e bloquear uma eventual radicalização de suas lutas, defendendo e utilizando ao mesmo tempo o enorme poder que o aparato clerical já tem na educação, na saúde e nas políticas sociais nestes países.

Este posicionamento ocasiona fricções políticas com alguns governos de direita, com os quais, de outro lado, a igreja compartilha muito da agenda conservadora e pró-empresarial, daí a indiferença com Macri ou com Piñera, assim como as críticas que setores da direita fazem a Bergoglio por seu papel internacional, por exemplo, em diálogo entre governo e oposição na Venezuela ou entre Cuba e Estados Unidos. É óbvio que se o Papa não fizesse política, a igreja não poderia desempenhar esse papel de mediador a serviço da ordem. Essa demagogia pseudo-progressista não muda em nada o papel reacionário da instituição clerical, grande fator de poder nos países latino-americanos, ligado historicamente à classe dominante por múltiplos vínculos “pastorais”, econômico-financeiros e sócio-políticos.

Como parte do giro à direita na América Latina existe uma reação contra os avanços do movimento de mulheres, dos direitos de pessoas LGBTs e outros elementos que questionam o conservadorismo e o machismo na sociedade. Católicos, evangélicos e outras seitas lançam uma guerra contra o que chamam de “ideologia de gênero” e alimentam a homofobia, além de incitar o obscurantismo religioso na educação. No entanto, a igreja católica está atravessada por uma profunda crise que dificulta desempenhar o papel de “grande mediadora” e debilita sua autoridade como “polícia da moral” e guardiã dos “valores cristãos”. A estratégia de Bergoglio busca “revitalizá-la” também neste terreno, mais “espiritual” do que o da política profana.

Salvar a igreja às custas das vítimas de abuso

Desde o ponto de vista pastoral, a tarefa mais urgente do Papa é ajudar a conter a crise estrutural que atravessa a igreja chilena, mergulhada até o pescoço em escândalos de abusos sexuais e outros, entre os quais, o caso mais notório é o do padre Fernando Karadima, protegido até o último momento pela hierarquia local do Chile. Bergoglio faz uma manobra de “controle de danos” pedindo “perdão”, mas que não é mais do que, como tuitou Juan Cruz Ch., uma das vítimas: “...Outro titular barato. Basta de perdões mais ações. Os bispos encobridores seguem aí. Palavras vazias. Dor e vergonha é o que sentem as vítimas”. Em consequência, Bergoglio disse “manifestar a dor e a vergonha frente ao dano causado a crianças por parte de ministros da Igreja”... próximo de Juan Barros, o bispo que encobriu os abusos de Karadima, fortemente repudiado em sua jurisdição de Osorno, em uma eloquente amostra de que o objetivo do Papa é preservar às custas das vítimas as estruturas de uma igreja em que os abusos e cumplicidades são sistemáticos.

No Peru outro notório escândalo o aguarda: o do grupo católico conservador Sodalicio de Vida Cristiana (SVC), que há anos é centro de denúncias de abusos sexuais a menores pelo seu fundador. A cúria peruana e o próprio Vaticano fizeram o impossível para protegê-lo... Recentemente, uma semana antes da visita do Papa, ele interveio com um “comissariado apostólico” em uma manobra para levar a questão para a justiça e acalmar a tempestade.

Em ambos os países se trata de cleros profundamente ligados ao poder, envoltos também em manobras financeiras e investimentos “não santos”, cúmplices de regimes contra-revolucionários, autores de crimes brutais contra a humanidade e defensores de sua nefasta herança até os dias de hoje. Basta apontar o papel da hierarquia católica chilena desde o golpe de Pinochet. Ou o papel do cardeal Cipriani no Peru, antigo aliado de Fujimori.

Bergoglio combina uma “tática” defensiva de reconhecimento formal dos pecados eclesiásticos com a pastoral de massas face às grandes manifestações e através da mídia, chegando a milhões em países em que a “fé” anda fraca ultimamente. Mas vai mais longe, veio insistir em sua estratégia para “revitalizar” a Igreja, lutando para conquistar os cleros locais desconfiados. Tal foi o conteúdo geral do discurso que realizou para padres, monges, seminaristas de todo o Chile na catedral de Santiago. Foi todo um programa para enfrentar a crise: para responder às denúncias de abuso, lhes disse que reconheçam “o dano e sofrimento das vítimas e suas famílias”, mas também “o sofrimento das comunidades eclesiais, e dor também por vocês, irmãos, que além do desgaste pela entrega, tem vivido o dano que provoca a suspeita e o questionamento, que em alguns ou em muitos pode ter introduzido a dúvida, o medo e a desconfiança”... um discurso hipócrita que isenta de culpa e pretende igualar as vítimas com a estrutura que escondeu as vítimas e encobriu o abuso, para defender a impunidade.

Para moralizar e mobilizar o clero convida-os a evitar que “Pedro (ou seja, a Igreja) se torne um destruidor verdadeiro ou um caridoso mentiroso ou um perplexo paralisado, como pode acontecer nessas situações”, convida-os a aceitar que “estão fazendo novas e diversas formas culturais que não se ajustam as margens conhecidas” (isto é, que a imagem clerical do mundo perdeu a batalha), evitar “a tentação de nos confinar e isolar para defender nossas propostas que terminam sendo não mais que bons monólogos” e sair ao mundo, pregar o evangelho, mas adaptando o discurso às atividades dos novos tempos. Marca assim, um caminho frente ao retrocesso que a Igreja vem sofrendo, particularmente na América Latina.

A crise da Igreja Católica na América Latina

Mesmo na América Latina, considerada ainda como “a maior reserva mundial do cristianismo”, a igreja está em sérios problemas. Segue tendo uma enorme e nefasta influência na vida política, graças aos seus múltiplos laços com o Estado, com os militares e com a burguesia, além da educação, das políticas de assistência social e seu importante poder econômico. Mas as igrejas reúnem cada vez menos fiéis, as “vocações” religiosas e seus preceitos são cada vez menos acatados: somente uma minoria de católicos rechaça o divórcio civil ou o uso de preservativos. Por um lado, passa por uma crise de religiosidade, onde o dogma católico tradicional se choca com múltiplos aspectos da vida contemporânea. Por outro, seu papel reacionário desacreditou a cúria em setores importantes da sociedade.

“Tudo indica que é irreversível a perda de hegemonia da Igreja Católica e que a ilusão de um ‘continente católico’ ficou nisso: uma ilusão” escreve o historiador, teólogo e ex-jesuíta Rodolfo de Roux, isto, como consequência do “incremento do pluralismo religioso, consolidação do pentecostalismo, progresso da secularização da sociedade, erosão da hegemonia católica”.

425 milhões de latino-americanos se definem como católicos, quer dizer, um terço dos fiéis do mundo. Mas, em termos relativos, o peso do catolicismo na região vem caindo. Em 1970, 92% dos latino-americanos se definiam como católicos; em 2014 essa proporção caiu para 69%, enquanto que os evangélicos e outros protestantes estavam entre 4 a 19%. No Peru, caiu para 76%, no Chile para 64%, e no Brasil, histórico bastião católico, para somente 61%. Paralelamente tem multiplicado cultos de origem africana ou indígena, o “new age” e outras tendências, enquanto aumentou também a proporção de agnósticos e ateus declarados.

Esta perda de posições em âmbito ideológico-religioso se combina com um desafio político: no Brasil, Peru, Colômbia, América Central, etc., os evangélicos e outros protestantes tornaram-se influentes atores políticos que disputam com a igreja romana no anticomunismo e no conservadorismo patriarcal.

Transformações sociais, culturais e política, além dos múltiplos atrasos da Igreja: sua aliança com o imperialismo e seu compromisso com todos os regimes reacionários que existiram e, desde as ditaduras militares dos anos 70 até os regimes neoliberais dos anos 90, sua localização conservadora que segue no século XXI, em que entrou com o “passo mudado” sob a liderança dos papas Woijtila e Ratzinger, que endureceram o conservadorismo político e doutrinário como estratégia defensiva frente aos novos tempos de maior “secularização” cultural. Com isso, acabaram aprofundando a crise da qual são explosivas as manifestações da “roupa suja” exposta da Igreja em vários sentidos: a multiplicação dos escândalos por abuso sexual de proporções “sistêmicas” com milhares e milhares de denúncias no mundo todo; a corrupção e aventuras financeiras dos “banqueiros de Deus”; a cumplicidade com crimes contra a humanidade e genocídios como o da Argentina [2].

Bergoglio foi escolhido para ensaiar uma “lavagem” no rosto da inapresentável face que a igreja estava mostrando com Bento XVI, paladino do retorno à “grande disciplina”. Seria um Papa “renovador”, que vai ventilar um pouco dos empoeirados porões do Vaticano, e abrir uma nova “primavera” para o catolicismo em retrocesso. Ao mesmo tempo, Bergoglio era uma garantia de moderação, como mostrava seus sólidos antecedentes conservadores, sob a ditadura militar e sob o governo de Carlos Menem. Claro, corrigiria um pouco a direção se adaptando aos novos tempos... “mudando algo para que nada mude”, porque desde o Vaticano, como de costume, tudo se resolve de acordo com os fins e saberes da mais antiga e difundida instituição contra-revolucionária da história. Ainda assim, a “guerra vaticana”, expressão da resistência interna de poderosos setores ultraconservadores da igreja, que se opõe às menores mudanças por razões tanto ideológicas como bancárias, assim como a inconsistência da “mensagem de Francisco” frente à crua realidade econômica, social e política capitalista, mostra os limites do “bergoglismo”. É possível que a estrela do Papa jesuíta tenha passado o momento de seu maior brilho.

[1] Para entender:
No Peru, Fujimori foi denunciado por esterelizar forçosamente cerca de 236 mil mulheres
Milhares nas ruas no Peru contra o perdão ao ditador Fujimori

[2] Veja: A cumplicidade de Bergoglio com a ditadura militar argentina

Traduzido por Ana Carolina Fulfaro




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