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DEBATES "BURQUÍNI" | O feminismo será antirracista e anti-imperialista, ou não será

É necessário e urgente um grande movimento de mulheres e feministas nas ruas contra semelhante ataque racista. Porque estão atacando nossas irmãs de classe, estão atacando todas nós.

Cynthia LubBarcelona | @LubCynthia

terça-feira 6 de setembro de 2016 | Edição do dia

Na sexta-feira, 27 de agosto, o Conselho de Estado francês invalidou o decreto municipal de Villeneuve Loubet, na Costa Azul, que proíbe em suas praias o mal chamado “burquíni”.

Este “passo para atrás” já vivemos em relação à proibição da burca e do nicabe nas cidades da Catalunha anos atrás. Os Estados imperialistas provam suas forças, avançam e retrocedem sobre os direitos democráticos mais elementares, neste caso, com medidas abertamente racistas, tingidas de islamofobia. Agora com uma de suas “fotos” mais absurdamente xenófobas: a da polícia na praia obrigando as mulheres árabes muçulmanas a se despirem.

O Estado gaulês voltou aos seus “princípios republicanos” quando se viu chegar um repúdio generalizado. Mesmo assim, cerca de trinta municípios franceses decidiram manter o veto.

E então, como responde o movimento feminista e de mulheres a altura de semelhante ataque? Os debates são múltiplos, mas os posicionamentos são pouco claros ou abstencionistas diante de uma realidade que é clara e assustadora: que a polícia do Estado imperialista francês obrigue as mulheres a tirar sua roupa de banho, é racismo e islamofobia.

A proibição do mal chamado “burquíni”, burca ou nicabe é racismo

É impossível abarcar em um só artigo todos os debates, que cruzaram como uma lança o movimento feminista europeu. Mas vamos partir do mais preocupante, quando há setores que apoiam a proibição por considerar o caráter opressivo da roupa de banho mal chamada “burquíni”, como fizeram com a burca ou o nicabe.

O que está em discussão é tomar um posicionamento claro frente a uma proibição que se dá na Europa, por parte de instituições estatais imperialistas, atuando com as forças repressivas, contra mulheres árabes e/ou muçulmanas que aqui habitam. E em seu posicionamento, o movimento feminista europeu segue sendo ambíguo, abstencionista ou passivo.

Este posicionamento contra o racismo e a islamofobia é independente do debate sobre estar a favor ou contra o uso dos véus; questão de uma enorme complexidade, porque existem diversas discussões históricas e atuais sobre o véu ou o véu integral, que estas mulheres souberam analisar a partir de suas próprias experiências históricas e políticas.

Estas experiências deram dentro do movimento de mulheres e feministas árabes e/ou muçulmanas políticas a favor ou contra o hijab, burca, ou nicabe, que, ao menos para “pincelarmos” seus conhecimentos, é necessário contextualizar e entender o significado variável que teve seu uso. Retomarei alguns apontamentos escritos em outro artigo.

Os usos do véus e sua simbologia

As feministas árabes e/ou muçulmanas questionam o chamado “feminismo ocidental” que insiste na existência de uma forçosa conexão entre cultura e opressão da mulher. Desta conexão mecânica se desprende a estratégia de “abandono da cultura autóctone”¹ como via de emancipação. A proibição atual do véu integral ou do chamado “burquíni”, se inscreve então nesta mesma premissa.

O debate sobre o véu, hijab, se introduz no século XIX sob um Egito submetido à colonização britânica, quando algumas lideranças do mundo árabe-muçulmano que lutavam por reformas nos direitos das mulheres, como a educação, e influenciados pelo discurso colonial europeu, consideravam o uso do véu como um “símbolo de atraso cultural”.

As novas correntes feministas árabes do século XX questionaram estes reformadores e sua consideração como impulsionadores de um “primeiro feminismo”. Foi se conformando um feminismo anticolonial que rechaçava a ocidentalização das políticas de gênero expressadas na proibição do véu – que havia começado a ser colocada em prática em diversos países –, no marco de que havia avançado muito pouco nos direitos das mulheres.

Assim, o debate sobre o hijab se dividia entre quem o considerava um símbolo do “atraso cultural” ou, ao contrário, como identificação da cultura árabe e muçulmana contra as ameaças do poder colonizador.

A partir do século XX houveram mudanças importantes depois do desenvolvimento dos processos anticoloniais, quando as mulheres nacionalistas ou islamistas árabes converteram o hijab em um “símbolo de resistência anticolonial”. Assim descreve Franz Fanon, com respeito à luta anticolonial na Argélia na década de 1950 quando, diante da proibição francesa do véu, mais de 10 mil mulheres saíram às ruas com o hijab, tal como mostra o filme A Batalha de Argel.

Porém, também emergiram movimentos de mulheres e feministas que, em determinados contextos, lutaram contra a imposição do hijab ou do “véu integral”, burca e o nicabe, sem abandonar a luta contra o poder colonial e enfrentando-se ao mesmo tempo com os poderes autóctones mais reacionários. É o caso por exemplo do Irã, onde usar hijab é obrigatório depois da revolução islâmica de 1979.

Na Europa este debate têm se atualizado nos últimos anos com base na proibição da burca e do nicabe em países como França, Bélgica, Holanda, Luxemburgo, cidades da Catalunha (Estado espanhol), na Alemanha – onde a metade dos estados proíbe o véu – e na Itália, onde a lei antiterrorista de 1970 proíbe vestes que cubram a face.

Assim sendo, esta proibição “em nome da liberdade” e da “segurança” para estas mulheres não é mais que o acobertamento da perseguição cotidiana à população imigrante, perpetuada pela xenofobia e o racismo. E muitas mulheres denunciam que, proibido o “burquíni”, ficarão ainda mais relegadas em suas casas sem banhar-se nas praias.

O feminismo será antirracista e anti-imperialista, ou não será

Os prejuízos raciais sobre a “mulher oriental” se manifestam também sob mecanismos que desconhecem as lutas destas mulheres, para ensinar “valores ocidentais superiores” que possam arrancar a opressão destas “passivas e submissas mulheres”.

Se cria assim uma falsa ideia de superioridade e progresso relacionado com o Ocidente. Como se a maioria das mulheres árabes, muçulmanas, africanas ou latinas, pobres e trabalhadores, que habitam a Europa ou os Estados Unidos, não sofreram opressão de gênero, desigualdade salarial, precariedade, feminicídio, apesar de viverem e nascerem em sociedades “cristãs e ocidentais” ou “laicas”.

Mas estas mulheres sabem reconhecer as particularidades de seu próprio horizonte histórico-social em que se inscreve as relações de opressão, dentro de uma universalidade de problemas semelhantes com os de todas suas irmãs de classe: suas condições trabalhistas, desamparo em direitos sociais e políticos, violência e perseguição sexual e feminicídios, entre outros. Também sabem lutar contra as imposições do Estados de seus próprios países, que não são iguais às do Ocidente.

Não tomar posição clara contra esta proibição racista, é inscrever-se nestes valores colonialistas e imperialistas. Uma mostra de que setores do movimento feminista atual está longe dos problemas da maioria das mulheres, muitas vezes muito mais complexos e dramáticos que eu uso do véu. E portanto, dócil frente a luta contra seu próprio Estado, contra a opressão da maioria das mulheres: pobres, imigrantes, trabalhadoras.

A abstenção sobre este grave ataque é perigosa num contexto europeu de polarização social onde crescem molecularmente grupos de extrema direita cada vez mais visíveis nas ruas atacando imigrantes e queimando centros de refugiados.

Então, não é momento de nos organizar nas ruas com um enorme movimento de mulheres e feministas, junto às organizações sindicais e sociais, contra este ataque racista a nossas irmãs de classe?

Não podemos confiar nos tímidos “passos atrás” que as vezes concedem os Estados capitalistas imperialistas, quando nossas irmãs de classe sofrem junto a suas famílias uma constante perseguição racista, disposta a legitimar toda uma múltipla cadeia de opressões e exploração. Porque estão atacando nossas irmãs de classe, estão atacando a todas nós.

¹ Que tem origem no mesmo lugar onde se manifesta [NT].

Tradução: Alexandre "Costela"




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