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ANIVERSÁRIO DA REFORMA PROTESTANTE | O celestial como expressão do material: A reforma protestante e suas facetas históricas

Há quatrocentos e noventa e nove anos, dentro dos muitos acontecimentos que se sucedem no período histórico que se convencionou chamar Idade Moderna, a fé cristã vivencia cisma. Sob a bandeira da Sola Fide, Sola Gracia, Sola Escriptura, Solo Cristos e Sola Deo Gloria, os discursos dos chamados reformadores pretendiam reformar a condição dos cristãos e se contrapuseram ao estabelecido pela Igreja Católica de Roma... Duas vertentes, a partir daí, passam a se rivalizar no anúncio da fé cristã: catolicismo e protestantismo...

José Ferreira JúniorSerra Talhada – Pernambuco

segunda-feira 31 de outubro de 2016 | Edição do dia

O século XVI principia com a eclosão de um movimento que se revela contraponto da Igreja Católica de Roma que, durante toda a Idade Média (quase mil anos), impusera dominação no ocidente europeu. Tratava-se da chamada Reforma Protestante, que possui como protagonistas maiores (pelo menos mais divulgados), Martinho Lutero e João Calvino, e como espaço de suas atuações, respectivamente, Suíça e Alemanha.

Convém não creditar os louros do movimento reformador exclusivamente aos reformadores citados. Correto é afirmar que outubro de 1517 foi o ápice de uma construção que se verificava desde a Baixa Idade Média, ou seja, houve todo um trabalho de resistência em relação a Igreja medieval – venda de indulgências e dispensas, por exemplo -, feito pelos que são chamados pré-reformadores, como John Huss e Jerônimo Savanarola, alguns chegando a pagar com a própria vida. Assim, os agires luterano e calvinista, no século XVI, devem ser considerados como uma espécie de arremate de uma construção social anterior.

Também se revela pueril imaginar que somente possuiu faceta religiosa a Reforma Protestante. Verdade é que a religião foi a mola propulsora do evento, mas também se constitui verdade que, apropriando-se dos discursos religiosos luterano e calvinista, a burguesia e a nobreza buscaram a satisfação de seus interesses, ou seja, viram esses dois atores históricos que as propostas discursivas, calvinista e luterana, serviam-lhe de justificativa para a satisfação de suas intencionalidades.

Friedrich Engels, no seu livro As guerras camponesas na Alemanha expõe de forma clara, sob uma perspectiva materialista histórica, a diferença do seu pensamento e o dos historiadores burgueses. Estes acreditavam que as diferenças em coisas sobre o céu geravam conflitos na terra; Engels, por sua vez, afirmava que os conflitos por interesses materiais na terra geravam as divergências sobre as coisas do céu.

Lutero e a secularização dos bens da Igreja: o apoio da nobreza

Lutero era membro do clero, melhor dizendo, do baixo clero (composto por padres e monges). Escandalizado com as práticas da Igreja - a venda de indulgências e dispensas, principalmente -, levantou-se contra as ordens do Papa Leão X, que houvera outorgado autoridade a João Tetzel, clérigo como Lutero, para proceder as vendas de indulgências e dispensas, sob a justificativa de haver necessidade de angariar fundos para construir a basílica de São Pedro.

Intimado pelo papa para se retratar, Lutero não declinou da sua posição. Foi, por isso, excomungado pelo Papa. A bula que o excomungava rasgou e queimou, chamando-a “cloaca fedorenta”. Em contra-ataque ao agir papal, afixou na porta da catedral de Westminster, na Alemanha, noventa e cinco teses, onde expunha contraposição aos desmandos da Igreja de Roma. Considerado herege, Lutero escapa da morte na fogueira porque a nobreza alemã o protege e o guarda em lugar seguro.

A nobreza alemã protege e apoia Lutero em sua luta contra a Igreja corrupta, porque, em seu discurso, Lutero preconiza a secularização dos bens da Igreja, principalmente as terras, que se constituíam cerca de um terço das terras européias ocidentais. Havia uma nobreza sem-terra, assim ocorrendo em virtude da chamada “Questão da Primogenitura”, existente desde o medievalismo. Sob essa questão, somente cabia ao filho mais velho do senhor feudal a herança das terras do feudo. Assim, os demais filhos, mesmo de linhagem nobre, eram despossuídos de status, porque eram nobres sem terras. É principalmente esta fração da nobreza que a Lutero emite apoio.

A aristocracia, que se transformaria em burguesia, entendia que, à sua desenvoltura como classe exigia-se a superação definitiva do feudalismo. Porém, para superar os limites do feudalismo era preciso ferir mortalmente o coração dele, e a Igreja Católica de Roma que justamente era o coração do feudalismo. Lutero é o primeiro grande golpe político, que na época só podia se expressar de forma teológica, da luta da burguesia contra a ordem cristã feudal, depois, num segundo momento, seria a Revolução Inglesa de 1688, para culminar num terceiro e definitivo momento: a Revolução Francesa, em 1789.

Calvino e a nova ética econômica: o apoio burguês

A Doutrina do Justo Preço, imposta pela Igreja, estabelecia o teto de lucro nas negociações. Ultrapassá-lo era considerado usura e esta, por sua vez, era tida como pecado. Ora, isso se constituía elemento impeditivo às pretensões burguesas de expansão comercial.

O discurso calvinista, que afirmava não ser pecado a obtenção de lucro nas negociações caiu como uma luva nas pretensões burguesas. Ademais, também afirmava Calvino que a prosperidade era um dos “sinais” da eleição divina. Bem, aí virou festa! Tudo quanto era burguês, ávido por lucrar, passou a abraçar, enquanto credo, o protestantismo calvinista, na sua luta contra a ordem cristã feudal.

Verdade seja dita, a adesão burguesa ao discurso teológico calvinista não ocorreu somente de forma casuística. Houve conversões burguesas à fé cristã encimadas na doutrina calvinista. A Igreja protestante Presbiteriana é exemplo cabal do que aqui se fala.

Um dos ramos calvinistas abraçados pela burguesia foi o calvinismo puritano, que preconizava, enquanto forma de agradecimento pela eleição divina, uma vida ascética, divorciada de qualquer hedonismo, onde trabalhar e poupar se constituíam os verbos a serem conjugados. Foi esse o credo de grande parte dos colonizadores dos chamados Estado Unidos da América. Essa prática de fé foi, de acordo com Max Weber, em A ética protestante e o espírito do capitalismo, elemento significativo no processo de construção e consolidação do capitalismo no chamado, à época, Novo Mundo.

Percebe-se, dessa maneira, que no referente ao discurso calvinista, o apoio burguês se fez maciço e, por conseguinte, o implante das intenções religiosas de Calvino, principalmente em Genebra, na Suíça, onde foi implantado um governo no qual a moral religiosa exercia um peso considerável, encontrou condições materiais favoráveis.

Percebe-se, diante do exposto, que tratar da temática Reforma Protestante, quando se pretende emitir tratamento holístico, é imprescindível sair do trilho exclusivo da religião, que super dimensiona o divino e, à luz da discussão política, também dialogar com Engels, que entende o ocorrido como expressão teológica de interesses materiais.

Ou seja, somente o aporte teológico é insuficiente à existência de entendimento que se pretenda sair da aparência para atingir a essência. Afinal, convém lembrar Karl Marx, nos mostrando a tensão entre estrutura e sujeito, em O 18 Brumário de Luiz Bonaparte: “os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem, não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”.




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