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"O Teatro do Oprimido foi uma busca constante do uso da arte teatral para a libertação" - entrevista com Silvia Balestreri Nunes

Luno P.

"O Teatro do Oprimido foi uma busca constante do uso da arte teatral para a libertação" - entrevista com Silvia Balestreri Nunes

Luno P.

Neste último dia 16 de março se comemorou o dia Mundial do Teatro do Oprimido e, não por uma coincidência, também o aniversário de seu criador, o teatrólogo Augusto Boal. Nós do Carcará - Semanário de Arte e Cultura do Esquerda Diário conversamos com Silvia Balestreri Nunes, Profa. Dra. do Departamento de Arte Dramática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul cuja dissertação de mestrado e tese de doutorado se centram na pesquisa em relação ao Teatro do Oprimido de Augusto Boal, os discursos e temas que o atravessam, sobre a relevância e atualidade do método do Teatro do Oprimido.

Falar do Teatro do Oprimido é, antes de tudo, falar sobre a busca e os esforços pela criação de um teatro genuinamente brasileiro e latino americano. É falar sobre a construção de uma linguagem teatral alicerçada na concepção do teatro enquanto arma de transformação social. Cada um desses elementos são também constitutivos da obra e vida de seu criador, Augusto Pinto Boal, cuja atuação seja como um dos principais nomes do Teatro de Arena ao longo dos anos 1960, junto de Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho, José Renato e tantos outros nomes que marcam a história do teatro brasileiro, seja na criação do método do Teatro do Oprimido em 1986, é marcada pela inerente relação do teatro com a política, ou como o mesmo dizia “todo teatro é necessariamente político, porque políticas são todas as atividades do homem, e o teatro é uma delas” [1]. Essa perspectiva tem forte presença na própria forma como Boal definia o Teatro do Oprimido, como aponta Silvia:

“Usando algumas definições do Boal, inicialmente ele dizia que o Teatro do Oprimido era um ensaio para revolução e o que ele buscava era um modo de socialização dos meios de produção do teatro, onde todas as pessoas pudessem usar e aprender os modos de produção do teatro para transformar a própria realidade, para mudar situações de opressão, para buscar meios de saída opressão [...]”

Boal trata a ideia de meios de produção do teatro inserindo-a nas transformações fundamentais do teatro na história, passando do povo que cantava livremente nos cantos ditirâmbicos daquilo que se condicionou como a gênese do teatro grego até o estabelecimento de divisões no fazer teatral por parte da aristocracia, da divisão entre palco e plateia, ator e espectador, protagonistas (os aristocratas) e o coro (a massa), para que no espetáculo pudesse se refletir eficientemente a ideologia dominante, o que se transforma com a chegada da burguesia transformando os protagonistas em “sujeitos multidimensionais, indivíduos excepcionais, igualmente afastados do povo”. É na mudança de perspectiva com o teatro dialético proposto por Brecht que Boal vai responder essas transformações com a entrada do povo em cena e com a destruição das barreiras entre atores e espectadores em um primeiro momento (todos devem representar, todos devem protagonizar as necessárias transformações da sociedade) e num segundo na destruição das barreiras entre os protagonistas e o coro (todos devem ser , ao mesmo tempo, coro e protagonistas) - eis aí o nascimento do Sistema Coringa, parte fundamental do que virá a ser o Teatro do Oprimido, cuja primeira experiência se fez na montagem de Arena Conta Zumbi, pelo Teatro de Arena, em 1965.

Sendo assim, o Teatro do Oprimido nasce da necessidade de transformar o espectador, com o recurso da quarta parede, em sujeito atuante do processo de transformação social da realidade ao qual está inserido. Seu desenvolvimento se dá em meio a processos de profunda convulsão política no cenário internacional, marcado principalmente por ditaduras militares na América Latina, como no Brasil de 64, na Argentina de 66 e 76 e no Chile de 73, mas também por fortes levantes da juventude e da classe trabalhadora, o que garantiu que tal método fosse forjado sob o peso da luta de classes. Boal definia que o Teatro Jornal, técnica apropriada e inspirada no teatro de Agitação e Propaganda dos grupos soviéticos conhecidos como Blusas Azuis e do Living Newspaper Theater nos Estados Unidos da década de 30, foi parte do ponto de partida para a existência do Teatro do Oprimido. Esta técnica teve a primeira aparição na apresentação da peça Teatro Jornal – Primeira Edição em setembro de 1970, na sede do Teatro de Arena, em São Paulo, sendo usada para driblar o crivo dos censores ao encenar as notícias publicadas nos grandes jornais da época. O Teatro Jornal acabou se configurando como uma primeira resposta na busca de Boal e dos artistas que o acompanhavam por um teatro político que correspondesse ao momento que viviam. O Teatro do Oprimido se configurou como uma segunda resposta para essa mesma questão, esticando ao máximo as barreiras entre teatro e vida real com as técnicas do Teatro Fórum, Teatro Imagem, Teatro Invisível, Teatro Legislativo e o Arco-Íris do Desejo. Silvia exemplifica algumas das técnicas que formam esse método profundamente subversivo:

“Em 1986 quando ele voltou do exílio e fez o plano piloto da fábrica de Teatro Popular no Rio de Janeiro ele considerava as seguintes modalidades do teatro do oprimido: o teatro imagem que era um modo de visualizar as opressões suprimindo a palavra falada, sendo geralmente uma preparação para o uso das outras modalidades, mas sendo também possível utilizá-lo num teatro fórum apenas com imagens. Ele (Boal) desenvolveu bastante esta técnica quando participou de uma experiência de alfabetização popular no Peru para trabalhar com pessoas que falavam a língua quíchua, então a ideia de trabalhar por imagens as opressões é de também poder se libertar das barreiras da língua. Uma outra modalidade é o teatro invisível que ele (Boal) conta que criou na Argentina no momento em que se iniciava o processo de ditadura lá onde estava exilado depois de ser torturado no Brasil. Segundo o que conta Boal a proposta era fazer teatro em espaços públicos de forma a denunciar situações de opressão sem dizer que era teatro, então o teatro invisível não se mostra como teatro, não aguarda os aplausos da plateia, mas ele se mistura na vida cotidiana e mostra determinadas situações de opressão sem se revelar em nenhum momento [...] a ideia é de que as pessoas nos lugares públicos que assistem a cena que possam tomar parte das questões que são apresentadas, e para isso tem, além das pessoas que fazem parte da cena principal, tem os atores aquecedores [...] outra modalidade do Teatro do Oprimido como o Boal concebia em 1986, que foi quando eu trabalhei com ele, é o teatro fórum, que é a modalidade mais difundida e utilizada do teatro do oprimido no mundo [...] o teatro fórum é uma cena que um grupo faz de uma situação de opressão que não é resolvida, que acaba com o personagem principal sendo oprimido, e onde se convida a plateia a entrar em cena no lugar desse personagem oprimido para buscar alternativas de resolução daquela opressão. A ideia não é achar a solução, até porque a solução em cena não necessariamente vai servir para qualquer situação, mas explicitar os próprios mecanismos de opressão e ativar na plateia modos de buscar sair desses mecanismos [...] depois o Boal criou o arco-íris do desejo junto com um grupo francês, que está publicado num livro chamado Arco-íris do Desejo: o método Boal de teatro e terapia. A ideia é trabalhar com opressões internalizadas a partir de situações vividas pessoalmente e certas barreiras [...] essa técnica também pode ser usada, e o próprio Boal usou, para a preparação de espetáculos [...] esse livro com essas técnicas foi publicado em 1990, embora ele tivesse no final dos anos 80 já desenvolvendo essa modalidade. Depois quando o Boal se tornou vereador em 1993, onde assumiu o cargo de vereador na Câmara Municipal de Vereadores do Rio de Janeiro, ele e o grupo que o acompanhava criaram o teatro legislativo [...] que é uma mistura de teatro fórum mais direcionada a levantar problemas que são vividos pelos grupos oprimidos para criar e sugerir projetos de lei a partir daquelas opressões. Então se faz uma grande sessão de teatro legislativo que começa com uma sessão de teatro fórum mas que tem todo um acompanhamento e desdobramento após. O Boal como vereador aprovou alguns projetos de lei que surgiram dessa modalidade.”

Silvia também destaca algumas mudanças em relação ao método do Teatro do Oprimido que ocorreram ao longo de sua prática e desenvolvimento. Uma delas é o momento onde Boal passa a considerar o teatro jornal como parte do método do Teatro do Oprimido, e não só como a gênese do método. Esses momentos ficam envoltos nas lembranças de seus marcantes momentos como colega e aluna de Boal

“Em 1990, quando eu trabalhei no Teatro do Oprimido com um grupo de ambientalistas, eu me lembro que ele se interessaram pelo teatro jornal que na época o Boal não considerava como uma modalidade de Teatro do Oprimido, que foi feito e desenvolvido pelo elenco jovem do Teatro de Arena a partir de notícias de jornal [...] no livro Técnicas Latino-americanas de Teatro Popular ele (Boal) explica vários tipos de técnicas de teatro jornal como formas de revelar aquilo que a mídia esconde, de revelar alguma situação de injustiça que está ocorrendo e que a mídia camufla [...] tem várias técnicas que foram desenvolvidas mas que o Boal não considerava, ele via como um pré Teatro do Oprimido, mas depois, eu acho que lá em 2004 se não me engano, ele começa a considerar que o teatro jornal faz parte do Teatro do Oprimido”.

Parte fundamental do desenvolvimento do Teatro do Oprimido era, em certo sentido, a total radicalização da interação do público com o espetáculo, o que permitia que o espectador rompesse com uma postura passiva e se envolvesse diretamente com a resolução do problema. Silvia aponta essa visão de Boal como parte de uma superação do teatro de agitação e propaganda feito no produzido no período anterior por Boal.

“Já nos últimos anos de vida ele trabalhou intensamente com o Centro de Teatro do Oprimido num livro que foi publicado postumamente chamado Estética do Oprimido onde ele amplia seu trabalho para outras manifestações artísticas [...] a ideia sempre foi em termos de transformação social, às vezes de um modo mais radical pensando realmente numa uma revolução, e a oposição ao capitalismo e suas ideologias, essa é a base. E o principal é uma diferença em relação a época de agitprop que ele fazia nos Centros Populares de Cultura da UNE é que as próprias pessoas, os próprios grupos, não usem o teatro para simplesmente passar mensagens, mas que os próprios grupos que sofrem as opressões se apropriem dos meios de fazer teatro para buscar uma transformação dessas situações”.

Cada um desses elementos apontados por Silvia ajudam a entender a relevância e atualidade do método do Teatro do Oprimido, principalmente quando localizado em meio aos processos históricos que acompanharam seu desenvolvimento e na concepção do teatro como uma arma social para responder a esses processos históricos.

“O que eu acho mais subversivo no Teatro do Oprimido são duas coisas: é esse convite e essa incitação as plateias para elas entrarem em cena, seja uma cena na rua que elas não sabem que é teatro, seja uma cena de teatro fórum, por exemplo. E mais que isso é que os grupos tomem para si como essa frase do Boal importantíssima - qualquer pessoa pode fazer teatro, até os atores, em qualquer lugar, até mesmo nos teatros - então essa socialização dos meios de produção do teatro eu acho fortíssimo, é um convite que ele levou muito a sério a vida toda, aí tem um poder subversivo bem forte. E outra é uma inconformidade (sempre!), uma inconformidade com as opressões, uma inconformidade com o modo capitalista de existir opressivos, sempre uma inconformidade, sempre um convite à transformação. Isso é para mim extremamente subversivo! Não tem submissão aceitável de nenhum a opressão. O Teatro do Oprimido foi uma busca constante, uma busca constante de modos de sair da opressão se utilizando da arte, principalmente da arte teatral para isso, para a libertação.”

Em tempos marcados pela guerra que atestam a decadência capitalista, a emergência por um teatro que tome partido reatualiza a importância do método do Teatro do Oprimido. Sua história é marcada pelo ferro da luta de classes, pela censura das ditaduras, por greves e piquetes. Não só no combate às opressões, mas também da exploração capitalista que nos impõe mais e mais miséria, é onde o Teatro do Oprimido ganha seus contornos mais subversivos. É uma tarefa dos artistas de hoje a apropriação crítica dos métodos e de suas histórias para que se possa trilhar os caminhos onde a arte poderá servir conscientemente como arma social da juventude, dos trabalhadores e dos oprimidos e explorados de todo o mundo.


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FOOTNOTES

[1Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas. 6 ed. Rio de Janeiro. Editora Civilização Brasileira: 1991.
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Luno P.

Professor de Teatro e estudante de História da UFRGS
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