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O Poeta Karl Marx

Afonso Machado

O Poeta Karl Marx

Afonso Machado

Em homenagem aos 140 anos da morte de Karl Marx, resgatamos aqui este texto de Afonso Machado originalmente publicado no Esquerda Diário em 05/05/2017.

Aos olhos daqueles que situam o nome de Karl Marx no corredor de uma biblioteca, pode parecer impróprio colocar a obra deste pensador comunista no setor da literatura. Aparentemente não se trata de um poeta, de um autor ligado à criação literária; seria mais "apropriado" inserir seus trabalhos nos setores da filosofia, da História, da sociologia e da Economia. Obviamente os livros de Marx ocupam um lugar privilegiado nas prateleiras referentes a estas áreas do conhecimento. Porem, além da obra de Marx não caber na tradicional divisão do conhecimento (a ciência histórica serve aos mais variados ramos do saber, indo muito além das divisões acadêmicas tão ao gosto da burguesia) encontramos em seus textos passagens recheadas de poesia, de sensibilidade estética, de imagens poderosas que potencializam seu legado intelectual.

Marx não lega uma obra poética no sentido convencional. É verdade que qualquer biografia do autor, quando refere-se particularmente à sua juventude, faz menções a um poeta de inclinação romântica, que dedica versos a Jenny Von Westphalen. Mas não é por aí que a presente reflexão se inclina: a questão que talvez passe despercebida para alguns, é que Marx desenvolve em seus trabalhos de caráter filosófico, histórico e econômico, uma espécie de poética revolucionária. Deve-se levar em conta que as imagens arrebatadoras presentes nos trabalhos do autor, não consistem em valores estilísticos a serem obrigatoriamente seguidos por escritores de esquerda. Uma possível poética na obra de Marx envolve uma contribuição ainda mais profunda: pensar como o econômico revela o estético, como a narrativa histórica tece imagens que traduzem poeticamente os dramas e as lutas entre as classes sociais.

Se a poesia não se deixa prender por nenhuma regra literária, a escrita de Marx implode os limites entre as áreas do conhecimento para se chegar a uma crítica radical da história. Neste sentido, Marx serve-se de imagens poéticas que nascem das entranhas do real, da realidade áspera que exige uma escrita igualmente áspera: entre seus poemas juvenis e seus densos trabalhos teóricos, cujo ápice deu-se com a obra O Capital (1867), verificamos uma escrita em que o poético não é refúgio mas um recurso necessário para ilustrar os conflitos históricos. A intensão política contida nesta escrita, faz com que Marx encontre seu hábitat literário no terreno da sátira. Aliás, a sátira é a temperatura mais adequada para o texto dos escritores que desejam realizar a crítica social: a ironia e a capacidade de ridicularizar situações sociais, expondo o que existe de trágico e absurdo na realidade, são armas que um autor engajado se serve para tocar o humor do leitor e instigar sua inteligência, sua capacidade de interpretação. Gostem ou não os pensadores e professores reacionários, Marx fez isso muito bem.

É o caráter satírico que permitiu a Marx saltar com ferocidade sobre o corpo do burguês. Não é de se espantar que ele tenha sido um excelente jornalista. Quando tornou-se redator chefe do jornal Rheinische Zeitung em 1842, Marx investigou o roubo de lenha realizado por camponeses na Alemanha. Marx escreveu com uma ironia demolidora que o governo comprometido com a propriedade privada, atacava o direito do camponês de pegar lenha, acabando por beneficiar as árvores. Esta habilidade com a pena, em que a imaginação serve à crítica política, encaminharia Marx (em parceria com Engels) na direção de uma análise que compreende as contradições fundamentais do processo histórico. É o que observamos por exemplo no Manifesto Comunista (1848) , quando a figura de um motor é usada para representar o papel da luta de classes no movimento da história, sendo que aos olhos dessa tudo que é solido se desmancha no ar. A atenção que Marx deu à complexa maneira como as roupagens/as formas/a linguagem do passado influem sobre o presente, revela aos escritores de qualquer época que o homem é o autor da sua própria história (tal ideia é apresentada por Marx na obra O 18 Brumário de Luís Bonaparte).

Ainda que Marx não tenha apresentado um projeto estético específico, sua obra atribuiu um novo papel à força estética na interpretação e ação sobre a realidade. Já nos Manuscritos Econômicos Filosóficos (1844), Marx nos mostra que a fonte do estético não se encontra nem no espírito/ideia e nem nos objetos em si. É a partir da complexa relação dialética entre sujeito e objeto que a experiência estética se dá (arte é trabalho!), sendo que as leis da beleza, tal como Marx define, não são determinadas pelas qualidades físicas dos objetos mas sim pelo seu conteúdo histórico. Assim sendo, a experiência poética e a roupagem literária contidas numa obra não podem fugir da história. Um poeta só pode referir-se a uma época passada ou ao atual momento levando em conta os níveis de desenvolvimento histórico. A liberdade que um artista possui para tratar de determinados conflitos históricos, deve ser total: a crítica revolucionária deve zelar para que o escritor escolha e desenvolva a proposta estética que lhe der na telha . Porém, o risco de idealizar a realidade pode levar ao anacronismo, comprometendo a exposição de uma situação histórica (o que é particularmente perigoso para um autor que possui intenções políticas progressistas). Portanto, a maneira como as imagens utilizadas por Marx surge para tratar de circunstâncias históricas específicas, torna-se uma referência importante para aqueles que desejam problematizar os conflitos sociais pelo tecido da poesia. Ainda que as imagens de Marx não provenham de obras de arte mas sim de trabalhos de caráter científico, elas são uteis para pensarmos uma poesia revolucionária: a experiência poética não pode nascer da cabeça do poeta mas sim da realidade concreta em que o poeta vive.

As qualidades poéticas da escrita de Marx não acarretam em nenhum prejuízo científico. Ao expor com precisão histórica os mecanismos de exploração do capital, Marx desenvolve uma sátira em que o dinheiro apresenta-se como a metáfora da desumanização, num mundo em que os crimes do capitalismo apresentam-se como legítimos. É um mundo anti-poético, no qual os objetos criados pelo homem dominam o próprio homem. É com extrema sensibilidade literária que Marx nos fala de uma realidade fantasmagórica em que a mercadoria enfeitiça os seres humanos explorados. As imagens contidas nos textos de Marx, possibilitam entender o processo econômico não como uma abstração(o que é recorrente na linguagem de muitos economistas que vomitam valores financeiros, nomeiam mercadorias, fazem cálculos mas se esquecem de mencionar ou simplesmente ocultam a exploração e a fome enquanto elementos intrínsecos à economia capitalista). Marx nos mostra com sua veia poética aquilo que todo poeta deveria saber: o trabalho alienado é o maior inimigo da poesia.


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