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HISTÓRIA DOS NEGROS | O Museu das Civilizações Negras e a memória como instrumento de poder

Allan CostaMilitante do Grupo de Negros Quilombo Vermelho - Luta negra anticapitalista

quarta-feira 3 de fevereiro de 2016 | 00:30

Apesar de viver no berço da raça humana, a história do continente africano, das civilizações e da enorme expressividade de sua cultura, não garantiu aos negros que encontrassem o merecido espaço nos grandes salões de museus pelo mundo ocidental. A inauguração do Museu das Civilizações Negras, em Dacar, Senegal, prevista para novembro deste ano, é um importante passo para o resgate da identidade histórica do povo negro. Uma tentativa de trazer a tona memórias antes planejadas para serem meras coadjuvantes.

Com mais de 14.000m² de área e ampla infra estrutura de exposição e recursos, o museu que se destaca como um dos maiores da África e foi construído com o apoio do governo chinês através do "Instituto Pequim", está sendo considerado como uma realização idealizada nos anos 60 por milhares de artistas negros no Festival Mundial de Artes Negras.

A construção do museu com apoio do governo chinês evidência, porém, problemas históricos que se arrastam atualmente no continente: o avanço dos interesses chineses em obras de parceria com governos africanos. Assim o museu que pretende contar a história dos povos negros se ergue, da histórica iniciativa e interesses de outros países sobre o povo africano.

Pelo mundo, os museus parecem conhecer apenas a história do povo negro a partir do contato com o europeu, diminui-se a história da África a apenas poucos séculos atrás, como o território distante, selvagem e misterioso que foi desbravado por corajosos viajantes europeus que se tornaram verdadeiros heróis nacionais, escondendo seletivamente o papel devastador da rapinagem européia. Nenhuma referência aos desenvolvidos povos que ali viviam e suas culturas constam nos museus; Nenhum espaço para a versão do próprio povo negro sobre os mesmos fatos, que ao invés de heroísmo e coragem dos europeus, descreveria histórias de saques, sequestros, sofrimento e acima de tudo, resistência.

O Egito antigo, um dos alvos preferidos da rapinagem histórica, foi estranhamente apartado pela historiografia europeia do restante da África, se tornando a única grande civilização antiga africana que mereceu algum interesse dos historiadores, Mas também aqui o fascínio sobre esta civilização que durou milênios e ergueu monumentos incomparáveis se limita à história de como os povos europeus conseguiram, saque após saque, dominar esta enorme civilização. Ainda hoje frequentemente o Egito antigo tem seus habitantes representados estranhamente como brancos em filmes de Hollywood e seus historiadores lutam pela restituição de seus artefatos históricos espalhados por museus e coleções (legais e ilegais) de todo o mundo ocidental por séculos de ação saqueadora.

A luta pelo controle de sua própria história é uma demanda antiga do movimento negro. Museus são espaços para preservação e divulgação da memória e da história dos homens mas suas concepções não se dão ao acaso, sua construção atende antes a interesses políticos e sociais, pois se trata, na maioria das vezes de reforçar a criação de uma identidade nacional escolhida, selecionada para servir um projeto de poder. Como nos lembra o historiador francês Jacques le Goff em sua obra "História e memória": "Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva

No limite, em História, dominar um povo ou um "inimigo" muitas vezes significa apagar sua memória, sua identidade, sua existência, ou assimilar características de outros povos como se sempre tivessem sido suas, apropriando-se e falsificando a história. No Egito antigo eram comuns faraós que apagavam nomes e imagens de seus antecessores em monumentos substituindo pelos seus próprios. Na URSS da degeneração stalinista, a prática da falsificação da história é amplamente reconhecida através da forja de documentos, fotografias e teorias que pretendiam apagar da história o revolucionário Leon Trotski, o maior opositor ao processo de burocratização de Stalin.

Vale lembrar que os museus como conhecemos hoje são produtos de uma ainda jovem sociedade capitalista dos séculos XVIII e XIX. Sociedade essa, que já era estruturalmente pautada no racismo contra os povos negros através da escravidão, mais um dos sintomas da estreita ligação entre capitalismo e racismo. No Brasil Temos o Museu Nacional do RJ, com seu acervo que enaltece a coroa portuguesa ou o Museu do Ipiranga, em São Paulo, com seu acervo que busca ressaltar o caráter desbravador do Bandeirante Paulista, do Brasil Império e dos primeiros passos do Brasil República, onde a história do negro é posta em segundo plano frente progresso representado pelos europeus.

Recorrendo mais uma vez à le Goff na mesma obra já citada: “A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia”.

Fica claro que a ausência do povo negro como ator principal nos grandes museus é uma escolha política, uma forma de se reafirmar o poder e a importância do imperialismo europeu sobre aqueles os quais julgavam "atrasados povos negros", um instrumento que visa antes de mais nada legitimar a exploração e a segregação burguesa sobre a classe trabalhadora, A criação de museus que expressem a história das civilizações negras é, assim, um importante passo para se resgatar a identidade dos povos de origem africana que hoje se encontram espalhados pelo mundo e que compõe imensa parte da classe trabalhadora mais explorada e precarizada pelos interesses racistas do capitalismo.


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Cultura    Negr@s



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