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CRÔNICA | O Capitalismo Matou meu Tio

sexta-feira 27 de janeiro de 2017 | Edição do dia

Ele tinha 40 anos e teve um infarto. É assim que noticiaram a morte dele, e é assim também que os familiares respondem quando perguntam como ele morreu. "Um infarto aos 40 anos"... "tão novo"... " deixou uma filha adolescente"... " a esposa tão nova e já viuva"...

Morreu de infarto... acontece que todo infarto tem uma história, e a história desse é que quem de fato matou meu tio foi o capitalismo. E não matou acidentalmente, foi assassinato, um ato pensado, calculado e executado a sangue frio.

Voltarei ao começo da história desse infarto para que compreendam de que maneira o capitalismo desenvolveu o seu plano até chegar na morte do meu tio.

Ele era negro, jovem, de família pobre, mãe dona de casa e pai caminhoneiro, o irmão caçula de três filhos. Herdeiro de uma família que veio lá de Barriguda, interior da Bahia, cidadezinha que hoje já nem se encontra mais no mapa e da qual a família foi obrigada, assim como tantas outras, a abandonar por causa da fome. Era o capitalismo empurrando uma família inteira pra fora de seu lar. A esperança de vida melhor levando-os a migrar para o sudeste, passando por várias cidades até decidir criar raízes no interior de São Paulo, onde por fim, depois de tanto fugir acabou por perder seus entes queridos, mortos, pelo mesmo capitalismo que os empurrou do nordeste com discurso de que aqui ele não os mataria.

Era mentira. Matou e não foi apenas meu tio, já antes, outros parentes haviam sido assassinados pelo capitalismo.

Mas voltando ao momento da história em que o capitalismo se fingia de amigo para depois apunhalar pelas costas da maneira mais cruel possível. Esse jovem, negro e de família pobre trabalhava na linha de produção de uma grande indústria da cidade. Sempre foi aquilo que se pode chamar de "bom trabalhador". Não faltava ao trabalho, não se atrasava, não deixava nunca de cumprir suas funções, não tinha uma única conta atrasada. Via dia após dia seu corpo sendo confundido com as máquinas e continuava dando o máximo que podia para enriquecer os donos da empresa, porque acreditava, e acreditava de verdade e com todas as forças, que um dia seu esforço seria recompensado.

Certo dia a empresa propôs que ele fizesse faculdade de administração, a empresa iria ajudar a pagar sua graduação. A felicidade era tão grande que não cabia em si, todo seu esforço começa a ser recompensado, é como lhe ensinaram, só não consegue quem não quer.

Após se formar havia a promessa informal - ao menos era o que ele pensava - de uma promoção que viria junto com um aumento de salário, no momento mais propício possível para isso, já que estava pensando em se casar. Com a certeza de que seria promovido não mediu esforços para terminar a faculdade e se formar, mesmo trabalhando o dia inteiro na linha de produção de uma indústria, não faltava nas aulas um dia que fosse.

E se formou. O primeiro de toda a família a se formar. Vocês sabem o que isso significa? Um jovem, negro e pobre sendo o primeiro da família a se formar! Estava chegando lá, como o capitalismo lhe havia prometido.
Com o diploma na mão ficou ansioso esperando a promoção. Promoção essa que nunca veio.

É mais barato se utilizar do racismo através de um discurso disfarçado de democracia racial para mantê-lo no mesmo cargo sendo explorado duplamente, pois agora que ele tinha conhecimento da parte administrativa e sempre foi um trabalhador tão comprometido, poderia dar uma "mãozinha" pra empresa, né? Afinal, não se esqueça que foram eles que ajudaram a pagar sua graduação.

Deram uma desculpa qualquer utilizando argumentos burocráticos para justificar o fato de que não seria promovido, e para a empresa a vida seguia normalmente. Para ele não.

Depois de tudo o que dedicou para o trabalho, depois de todo o esforço que teve de fazer pra se formar, agora percebe que não será recompensado. Que o capitalismo estava mentido desde o começo e só se mostrou seu amigo em alguns momentos para conseguir convence-lo de ser mais explorado pelo mesmo preço. Tudo o que ele aprendeu durante sua vida que era o certo a fazer, naquele momento se despedaça na sua frente mostrando a verdadeira face do capitalismo. Ele não aguentou a decepção de perceber que viveu enganado a vida inteira, que tudo o que fez só serviu para aumentar a mais-valia do patrão, e agora, prestes a casar, com a companheira esperando uma filha, agora o capitalismo ri na sua cara, puxa seu tapete em cima do qual construiu todos seus planos, fazendo desmoronar seus sonhos.

Ele surtou.

Foi diagnosticado com esquizofrenia e ficou afastado do trabalho durante um tempo. A empresa não prestou nenhum tipo de ajuda. O capitalismo lhe virou as costas.

Antes que venham com qualquer explicação rasa e insuficiente como a do infarto, já vou logo dizendo que foi o modo de produção capitalista que fez ele surtar. Foi a meritocracia, foi o racismo, a divisão social do trabalho. Foi o capitalismo que causou o surto. Foi um acidente de trabalho, desses tantos outros acidentes de trabalho que arquitetadamente de maneira acidental mutilam diariamente nossos corpos e nosso emocional.

Quando teve alta e voltou a trabalhar a empresa seguiu a risca a legislação e o demitiu um dia depois de terminar o prazo em que a empresa era obrigada a mantê-lo empregado. Foi descartado como qualquer outra mercadoria que não serve mais aos interesses do patrão, e sem a possibilidade de conseguir qualquer outro emprego registrado, foi aposentado por invalidez.

Mas ele não era invalido, ainda podia fazer muitas coisas, mas o capitalismo, em quem ele sempre depositou toda a sua confiança, agora não confiava mais nele. E como a vida de qualquer outro trabalhador, que só serve até o momento em que é lucrativa, foi jogado na sarjeta.

Rindo, gargalhando na sua cara o capitalismo lhe nega a possibilidade de fazer a única coisa que aprendeu a fazer durante toda a sua vida: trabalhar. Tudo aquilo que ele aprendeu a vida inteira que o tornava homem, agora lhe é negado, a possibilidade de trabalhar para sustentar sua família, pagar suas contas em dia, sendo um bom pai e um bom marido. Com a sua honra ferida e um documento que o considerava inválido, mas não garantia as condições necessárias para manter a família, trabalhou em serviços precários, sem registro, se escondendo do INSS que não iria entender que ele precisava da sua aposentadoria de inválido tanto quanto precisava continuar trabalhando.

O capitalismo seguiu por vários anos pagando sua aposentadoria, como um brinde, uma espécie de divisão de lucros de toda a mais-valia que produziu anteriormente. Mas nos últimos meses ele escuta no rádio que está sendo discutido mudanças na previdência e que muitos aposentados por motivo de doença serão cortados. A notícia o deixou preocupado. Se ele deixa de receber a aposentadoria como será? Como vai sustentar sua família? Como vai conseguir pagar suas contas? Essa desgraça de capitalismo rindo na sua cara novamente, não se importando com nada que possa garantir a sobrevivência dele e de sua família, porque mercadoria descartada não tem valor.

Ele surtou novamente.

Precisou ficar internado, amarrado na maca, sendo medicado durante uma semana. No final da semana teve um infarto e morreu. Segundo os médicos o infarto pode ter sido causado pela quantidade de remédios que tomou na última semana.

Infarto é no mínimo um eufemismo. O que matou meu tio foi o capitalismo que fez ele surtar, foi esse discurso assassino de meritocracia, foi essa casta de políticos corruptos que não cessam um minuto de encontrar maneiras de descarregar os efeitos da crise em nossas costas, foi a indústria farmacêutica que não vai nos curar se nossa doença der mais lucro que nossa saúde, e vai nos matar quando não puderem mais lucrar com nossas vidas, pois para ela, assim como para a indústria, somos mercadorias totalmente descartáveis à partir do momento em que perdemos nosso valor de troca.

Se ele deixa uma esposa e uma filha de 13 anos, não importa. As condições em que o capitalismo as colocou irá permitir intensificar a exploração sobre seus trabalhos e quando não puderem mais dar lucros se tornarão mercadorias descartadas também. O capitalismo também irá as matar pouco a pouco.

Ele matou um outro tio que se enforcou na sua oficina. Matou minha bisavó que morreu sem voltar pra Barriguda, de onde fugiu da fome que o capitalismo impunha, que como toda mulher, pobre e negra, viveu resistindo a vida inteira, que cada minuto que o capitalismo a permitia respirar era fruto de uma enorme força que ela tinha para continuar combatendo essa miséria que a sociedade lhe impunha. Combatendo da maneira que podia, com as ferramentas que encontrava, sem nunca ter conseguido acertar o alvo certo, mas se mantendo resistente, para no final da vida o capitalismo a matar.

Ele vai nos persseguir até matar a família inteira, um por um, uma por uma. Serei eu também seu alvo em algum momento. Ele matou meu tio.




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