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#SOSAMAPÁ | No Amapá “Se a gente não morre de sede, fome ou Covid, a polícia termina o serviço”, diz entrevistada

No Amapá, a população está há pelo menos uma semana sem fornecimento de energia em 13 dos 16 municípios do estado. O Esquerda Diário conversou com Ana Tereza, que mora na cidade de Macapá, e aceitou a entrevista para denunciar as situações que os amapaenses estão passando nesses sete dias. Confira a entrevista.

terça-feira 10 de novembro de 2020 | Edição do dia

Foto: Rudja Santos/Amazônia Real

No Amapá, a população está há pelo menos uma semana sem fornecimento de energia em 13 dos 16 municípios do estado. A falta de energia interrompeu também o fornecimento de água, os alimentos estragaram, são filas enormes para comprar mantimentos e abastecer os carros, o preço da água explodiu. Nos hospitais o banco de sangue está zerado, os leites nas maternidades estragaram. Enquanto isso, os números de covid-19 só aumentam no estado. A baixa cobertura da mídia tradicional sobre o caso é chocante. Nos últimos três dias os amapaenses realizaram diversas manifestações nas cidades para que pudessem ser ouvidos e aparecessem na mídia, a resposta do governo foi uma brutal repressão com balas de borracha à população.

O apagão no estado ocorreu devido a um incêndio num dos transformadores da estação de energia, controlada pela empresa privada Isolux, que operava com um dos equipamentos reserva com falha desde o ano passado. O estado que possui quatro hidrelétricas e fornece energia para todo o país, está no escuro. O governador do estado do Amapá, Góes (PDT), diz que a responsabilidade é do governo federal. Enquanto, o governo Bolsonaro vai ao twitter dizer que 76% da energia está reestabelecida. Mas a realidade é que o rodízio de energia não chegou nos bairros mais periféricos e, mesmo naqueles em que chegou, não está sendo de 6h.

O Esquerda Diário conversou com Ana Tereza Suassuarana, 22 anos, estudante de psicologia, que mora da capital do Amapá, na cidade Macapá, e aceitou a entrevista para denunciar as situações que os amapaenses estão passando nesses sete dias. Confira a entrevista.

Esquerda Diário: Você pode contar como foram esses dias sem energia? Quais foram os impactos para toda a população?

Ana Tereza: Eu moro em Macapá, na capital do estado do Amapá. Dos 16 municípios que a gente tem no estado, 13 estão com falta de energia e estão sofrendo com o impacto da queima dos geradores. Esses dias foram dias muito difíceis. É muito difícil dormir, por várias situações... O clima daqui é muito quente, apesar de bater vento. E foram noites de muito calor e de muita agonia, porque com a cidade totalmente no escuro a gente também tinha medo de invadirem as casas, de terem ataques, enfim... E muito mosquito também. Como a gente está na Amazônia é bem frequente. Estamos no nosso inverno amazônico e começaram as chuvas, então os mosquitos estão vindo visitar a gente.

E teve impactos enormes esses dias sem energia, principalmente em relação a perda de alimentos. Como a gente não tinha energia, também não teve água. Foi cortado o fornecimento. Tivemos que jogar fora muitos alimentos... Filas enormes para abastecer o carro. Galera saindo no soco por um pedaço de franco, por gelo... por água! A gente mora na frente do rio Amazonas e a gente não tinha água! E ainda está sem água em alguns pontos da cidade, sem água e sem energia. Apesar do governo Bolsonaro ir lá no Twitter falar que 80 - 70% da população já está com energia e as coisas estão normalizando, não estão. A gente ainda sofre! Estamos desde ontem com racionamento de energia, só que ainda assim isso está acontecendo em bairros específicos. Por exemplo, nos bairros mais periféricos ainda não chegou energia. E ainda assim, nos bairros em que está acontecendo, que voltou a energia, esse revezamento nem sempre está ficando 6 horas. Em alguns bairros acontece das pessoas ficarem duas horas com energia e o resto do dia sem. Está acontecendo de uma forma muito desordenada. Essa questão do revezamento de energia.

ED: Essa falta de energia impactou em muitas outras questões como, por exemplo, o abastecimento de água. Como foi a ação dos governos estadual e federal?

Sim, tiveram muitos impactos. Cada relato é um relato mais horrível que o outro. Tem um amigo da minha tia que acabou falecendo porque ele precisava de respirador para continuar respirando e, com a falta de energia extremamente demorada, ele não teve como ligar esse respirador e acabou vindo a óbito. Há muitas casas com as chuvas nesses dias - que foram chuvas muito fortes- muitas casas vieram a ficar debaixo d’agua mesmo porque são áreas de ressaca. São relatos horríveis mesmo, um cenário de caos e de desespero.

A prefeitura mandou alguns carros pipas para uns conjuntos habitacionais daqui, só que a água não foi suficiente e era uma água extremamente suja, não deu para quem precisou e não era boa para consumo. Então assim, o governo do estado fala que a culpa e a responsabilidade é o governo federal e que quem tem que se haver com isso, quem tem que dar explicações é o governo federal sobre essa queda de energia que atingiu o estado todo praticamente: dos dezesseis munícipios, treze estão sem energia e a gente fornece energia no estado pra quase o Brasil todo!

A gente tem quatro hidrelétricas aqui que impactaram o nosso território, que tem comunidades ribeirinhas que sofrem até hoje com o impacto dessas hidrelétricas e hoje a gente não tem nada de energia! O que temos é esse revezamento que não está acontecendo da forma como deveria acontecer, no cronograma. Não tem uma previsão exata para que as coisas se normalizam. E assim, é um cenário de caos mesmo. Está faltando mantimento nas cidades. Está faltando água boa para consumo. E nossa, eu não sei nem como filtrar e mensurar o tamanho do desastre. É uma crise humanitária que a gente está vivendo.

ED: E a mídia tradicional está noticiando muito pouco o que está acontecendo no Amapá. Como está sendo isso?

É um sentimento comum com todas as pessoas que eu converso e vejo nas redes sociais também daqui... o silenciamento da mídia com o que está acontecendo com a gente. As notícias porcas que a gente está vendo de menos de 2 minutos no Fantástico, por exemplo. A sensação que a gente tem é que a gente é invisibilizado e é só a gente pela gente mesmo. Porque não falam da gente.

Eu lembro que logo depois que a energia voltou em casa, depois desses cinco dias e a gente tava tentando contato com os nossos amigos pra saber como eles estavam... Eu lembro que eu liguei a televisão e não absolutamente nada! Fora o jornal local e depois veio outros jornais da televisão e não tinha nada. A sensação é como se a gente tivesse aumentando algo... e se não estavam falando da gente, então não deve ser tão grave. E é grave! Porque é o estado todo sem energia! E a sensação de que a gente é invisível. E de que a nossas terras, nosso território só é explorado e nosso povo que vive aqui não é valorizado, não é visto, não é falado. É uma sensação de muita dor e muito sofrimento mesmo.

Quando a gente conversa com as pessoas, geralmente a gente fala assim “estamos sobrevivendo”. A gente está sobrevivendo. Fisicamente estamos bem e emocionalmente estamos profundamente abalados e com muito ódio, com muita raiva. Como é que é que vocês vem, exploram o nosso território, outras ativistas falam tanto da Amazônia... e quando a gente precisa não falam da gente! Quando a gente precisa de apoio, não dão apoio pra gente! Quando a gente precisa que noticie, que denunciem porque a gente não tinha como fazer isso... Mesmo assim não fizeram sabe? Ficaram calados. Isso é extremamente revoltante, porque a gente é um povo extremamente acolhedor com todo mundo que chega aqui. E agora simplesmente não tem, não ecoam, não falam. A gente percebe o quanto é a gente pela gente mesmo. E a gente é pela gente. Como a gente percebeu que é a gente pela gente mesmo e que não adiante esperar pelas grandes mídias, as jornalistas independentes daqui começaram a noticiar o que a gente está vivenciando e o que de fato está acontecendo.

ED: No fim de semana houve diversas manifestações. Elas seguem acontecendo nesse momento?

Os protestos nas ruas estão acontecendo, até hoje de manhã quando eu entrei no Whatsapp de novo, por volta de meio dia, a gente tinha relatos que, de uns dois dias pra cá, já tinham sido 43 manifestações em bairros da capital Macapá. Em várias cidades da galera pedindo por agua, por energia... E assim, uma violência policial extremamente, extremamente horrível e violenta! Sem necessidade eles estão fazendo uma repressão pesada, atirando com bala de borracha e ontem a gente teve notícias de um menino de cinco anos que foi baleado nos olhos e ficou cego por causa de tiros de borracha da polícia militar. Quando a gente tava com energia elétrica, já tinha a polícia que mais mata. Agora que a gente não tem energia, eles estão caindo para matar mais ainda. Se a gente não morre de sede, fome ou covid, a polícia termina o serviço. Por ora eu só consigo expressar a minha tremenda indignação e dor pelo povo, por tudo, por tudo!

ED: E em meio a todo esse cenário terrível que você está relatando, de fome, de sede, descaso dos governantes, repressão policial e nada disso noticiado pela mídia tradicional. Como vocês está a questão dos hospitais e da pandemia pelo Covid-19?

Está faltando muita coisa. O banco de sangue está zerado aqui porque com a falta de energia, não teve mais como armazenar. Também está faltando leite materno humano na maternidade, porque eles estão sem conseguir refrigerar com tudo sem energia. Acabou não dando pra refrigerar os leites que tinham lá e tem muitas mães precisando. E assim, com tudo isso, o Covid se tornou algo um problema secundário. A gente já vinha -antes desse apocalipse acontecer- enfrentando uma alta dos números de Covid e nos números de mortes. E agora, com essa pandemia, virou uma luta pela sobrevivência de algo que é visível que é a fome, é o desespero. E enfim... o Covid acabou se tornando algo secundário.

Nas filas quilométricas que a gente encontra pra tudo, pra comprar água, pra comprar mantimentos, não estão usando máscara, a gente não está conseguindo ter esses cuidados. Todos os centros de Covid já estão lotados. Ontem, a gente teve notícias de um enfermeiro que relatou o quanto está extremamente difícil trabalhar, porque são muitas pessoas em estados graves, em estados quase irreversíveis. E o desespero dos profissionais de saúde, fazendo apelos... e a dificuldade da gente acatar esses apelos também!

A energia não foi estabelecida em todos os lugares, tem comunidades mais afastadas, comunidades quilombolas, que nem o revezamento de energia de pelo menos 2h com energia durante o dia chegou, sabe? A gente tem alguns mantimentos para levar até eles, só que está difícil levar porque está difícil a locomoção por conta da gasolina nos carros, porque está em falta. Está difícil de ligar pra eles, porque o celular também está sem bateria. Está um caso anunciado.




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