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Mulheres Negras e o Marxismo: “Esse livro também é uma ferramenta de combate”

Redação

Mulheres Negras e o Marxismo: “Esse livro também é uma ferramenta de combate”

Redação

A explosão do movimento Black Lives Matter no coração do imperialismo mundial colocou a luta antirracista no centro dos debates. Com evidente protagonismo das mulheres, essa luta multiracial contra a violência policial trouxe inúmeros questionamentos sobre a situação da população negra e os impactos da crise capitalista mundial. No Brasil, maior país negro fora do continente Africano, a história da luta negra e da classe trabalhadora se entrecruza de diversas formas. Sob o comando do governo negacionista de extrema direita de Bolsonaro e no regime do golpe institucional o país passa pelo pior momento da pandemia, uma situação dramática para o conjunto da população, o que a cada dia deixa mais evidente o papel que as mulheres negras podem ter como vanguarda na luta de classes. Para debater um pouco mais sobre esses temas e o papel do marxismo revolucionário como uma ferramenta de combate para as mulheres e a classe trabalhadora conversamos com Letícia Parks, Odete Assis e Carolina Cacau, militantes do Pão e Rosas Brasil e organizadoras do livro que será lançado no próximo dia 26 de março.

Ideias de Esquerda: Em primeiro lugar, vocês podem contar para a gente um pouco mais sobre a temática do livro e como surgiu a ideia dessa publicação?

Letícia Parks: Então, a gente costuma falar que esse livro é uma ideia construída com muitas mãos. Porque se trata de uma coletânea de textos escritos por diversas companheiras do Pão e Rosas, em sua maioria militantes negras, além de um artigo do nosso companheiro Marcello Pablito, fundador do Quilombo Vermelho, e com nossa companheira Diana Assunção coordenando esse projeto editorial. A ideia do livro veio porque a pandemia do coronavírus fez com que milhões de pessoas em todo mundo passassem por um drama comum, a catástrofe sanitária mostrou a irracionalidade de todos os governos capitalistas que mal conseguem se articular para responder a uma pandemia, porque o lucro sempre vai estar na frente de qualquer outro interesse. E a vida das mulheres negras condensam muito desses dramas vividos por todos os que são explorados e oprimidos dentro desse sistema.

Carolina Cacau: É por isso que no livro buscamos debater a luz de conceitos marxistas como exploração e opressão, para mostrar que a luta negra é parte da luta de classes, em combate direto contra todos os setores neoliberais que tentam desviar a explosiva revolta negra. Foi muito evidente a enorme operação que a classe dominante de todos os países tiveram que fazer para buscar desviar o enorme potencial da luta negra quando explodiu o Black Lives Matter nos EUA. Só que colocar uma policial negra, como Kamala Harris, para ser vice-presidente do principal país imperialista do mundo, não mudou nada na vida das milhares de mulheres e meninas que são 70% entre os mais pobres do planeta. E como a crise pandêmica reatualiza as condições estruturais da debilidade capitalista em responder a esses problemas mesmo com os desvios e tentativas de cooptação, o que vemos em todo mundo é que as mulheres negras estão na vanguarda de diversos processos.

IdE: E como essa luta das mulheres negras se relaciona com o marxismo revolucionário?

Odete Assis: No Capital, Marx e Engels, ao desvendar o funcionamento do sistema capitalista também nos mostram como a escravidão negra foi um pilar do processo de acumulação primitiva do capital. Essa conclusão é essencial porque permite vermos a relação entre racismo e capitalismo.O revolucionário norte-americano George Breitman discute que o racismo surge com o capitalismo e que pela sua função essencial na dominação capitalista continua existindo mesmo depois do fim da escravidão. Esse é um grande aporte para a luta negra internacional porque nos permite ver como o capitalismo precisa da opressão racista para seguir existindo. Mulheres negras e o Marxismo busca mostrar como os aportes do marxismo para a luta negra são inúmeros, apontando como a teoria também deve ser uma guia para atuação prática. Por isso, abordamos processos em que os negros, em particular as mulheres negras, cumpriram um papel central na luta de classes e contamos a história de algumas importantes lutadoras negras.

Letícia: Outro tema abordado no livro é sobre as mulheres negras e o mundo do trabalho. A pandemia deixou claro como são os trabalhadores que movem o mundo, fez cair por terra aqueles discursos pós-modernos que diziam que não existia mais classe operária. No entanto, ainda sobrevivem diversas teorias, que também tem suas expressões políticas, cujo sentido de existência é desqualificar o marxismo revolucionário como se ele não respondesse às necessidades da luta negra ou das mulheres. Um dos argumentos é que a classe operária do século XIX é muito diferente da classe operária atual. É claro que as transformações do capitalismo e o próprio embate entre as classes foram provocando muitas mudanças no mundo do trabalho, o nível de precarização e as tentativas de fragmentação que vemos hoje é gritante. No entanto, no Brasil a maioria da classe trabalhadora é feminina e negra, uma realidade que também se estende a outros países do mundo. Ou seja, as mulheres negras são parte essencial da classe trabalhadora, e justamente porque em suas vidas se conectam profundamente o racismo, patriarcado e capitalismo é que elas podem ser vanguarda dos processos de luta contra esse sistema e levar junto o conjunto da nossa classe. Uma luta que passa pela unidade entre negros, brancos, indígenas e todas as outras etnias.

IdE: Outro debate muito forte é a discussão sobre qual a estratégia para a emancipação das mulheres negras, vocês podem nos falar um pouco sobre como isso é abordado no livro?

Cacau: Como eu tinha comentado antes, a explosão da luta negra nos EUA provocou uma tentativa de cooptação muito forte. No Brasil o fato de Bolsonaro ser tão abertamente racista e machista faz com que milhões de pessoas sintam na pele todos os dias a necessidade de combatê-lo, inclusive meninas muito jovens de 12, 13, 14 anos querendo conhecer o feminismo socialista como vimos na plenária nacional do Pão e Rosas, em que reuniu mais de mil mulheres e LGBTs de todas as regiões do país. No entanto, em meio às disputas políticas que perpassam o regime do golpe institucional vemos como alguns políticos diretamente burgueses, ou instituições racistas, como o judiciário e a mídia buscam se apropriar de algumas das demandas da nossa luta, para criar uma ilusão de representatividade, de que o feminismo e o antirracismo podem avançar sem que isso necessariamente entre em rota de coalizão com as políticas neoliberais, como as reformas, as privatizações e todo legado do golpe institucional. Acontece que entre aqueles que sentem mais profundamente esses impactos, estão milhares de mulheres negras que sofrem todos os dias com a realidade de que ter mais negros na televisão ou mais mulheres e negros ocupando os espaços institucionais como o congresso, não muda o fato de que suas vidas seguem sendo dilaceradas pelos impactos da crise economica, pela precarização do trabalho. Não muda a dor que elas sentem por terem seus filhos, irmãos e maridos assassinados pela violência policial. E isso abre espaço para um grande debate sobre qual a estratégia para conseguirmos a emancipação das mulheres negras, não só no Brasil, mas em todo mundo.

Odete: Outra questão muito importante é que estamos a três anos sem saber quem mandou matar Marielle. Essa é uma das feridas abertas que o golpe deixou e ela sangra todos os dias. Ao contrário de perdoar os golpistas como Lula falou, o que move milhares em todo país é o desejo de justiça. Porque sabemos que esse Estado capitalista é responsável pelo assassinato brutal da Marielle e do Anderson, e que isso se deu em meio ao golpe institucional e a intervenção federal no Rio de Janeiro. Por isso, também dedicamos o livro como uma homenagem e um compromisso de seguir a luta por Marielle. Mas buscamos aprofundar nele um debate com outras estratégias que buscam desviar nossa luta, como o feminismo neoliberal e as teorias pós-modernas, que acabam nos dividindo ainda mais, com ideias como colorismo, lugar de fala, representatividade no vazio, entre outras. Também dialogamos com a interseccionalidade e com feministas negras como Angela Davis, Lélia Gonzalez, Patrícia Hill Collins. E nos apoiamos nas contribuições de grandes revolucionários que aportaram muito para a luta das mulheres, como Rosa Luxemburgo, Karl Marx, Friedrich Engels, Vladimir Lenin, Leon Trótski e dezenas de outros que são responsáveis por manter viva a conexão entre o marxismo revolucionário e os desafios da nossa época.

Letícia: A gente acredita que esse livro é uma pequena contribuição da nossa organização para a luta negra, das mulheres e da classe trabalhadora em nosso país. Ver a profundidade da conexão entre racismo, capitalismo e patriarcado nos permite também entender como é possível nos organizar para combater a raiz desses problemas. Nesse livro temos uma entrevista com Mirtes Renata, uma trabalhadora doméstica que sem direito a quarentena foi obrigada a levar seu filho para o trabalho no início da pandemia e por conta do descaso dos patrões perdeu seu filho Miguel, de apenas 5 anos. Nessa entrevista Mirtes nos disse “que esse livro possa chegar a várias pessoas, que elas possam se ver dentro desse livro”. E nós queremos muito isso, porque esse livro também é uma ferramenta de combate. É um instrumento para que as mulheres negras, os trabalhadores, as lutadoras feministas e antirracistas, para que todos aqueles que queiram lutar contra esse sistema que só nos reserva misérias possam estar armados com a teoria e a estratégia revolucionária. Pois como dizia Leon Trotski, para ser um revolucionário é preciso enxergar a vida com o olhar das mulheres, e para nós do Pão e Rosas isso significa em especial ver a vida com o olhar das mulheres negras, imigrantes e indígenas, que de forma mais cruel sentem o peso da ganância capitalista sobre seus ombros. Mas ao invés de vítimas impotentes elas podem se colocar na vanguarda, como sujeitas da sua própria história, como protagonistas de uma luta revolucionária que lado a lado com a classe trabalhadora pode nos permitir conquistar a emancipação de toda a humanidade.


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