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VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA | Medo da violência obstétrica fez grávida levar revolver à maternidade

A notícia, divulgada pela jornalista Rita Lisaukas no Estadão no início do mês, traz à tona a necessidade de se lutar pelo direito pleno à maternidade e combater a violência obstétrica.

Patricia GalvãoDiretora do Sintusp e coordenadora da Secretaria de Mulheres. Pão e Rosas Brasil

segunda-feira 28 de agosto de 2017 | Edição do dia

A história de Paula

Paula de Oliveira Pereira, de 28 anos, é mãe de quatro crianças, todas nascidas de parto natural em hospitais públicos na grande São Paulo. Em todos eles sofreu violência obstétrica. No parto do terceiro filho, que durou 14 horas, teve negado o seu direito a um acompanhante. Com muita dor, não lhe deram qualquer anestesia. Enquanto agonizava, caiu da maca e bateu com a barriga no chão. Além de ouvir ofensas sobre como era “fraca” por não conseguir fazer a força exigida pelos médicos, passou pela manobra de Kristeller (quando o profissional, em cima da parturiente, pressiona a parte superior do útero para acelerar a saída do bebê), o que resultou em hematomas e lesões. Tal prática é considerada violência obstétrica, pois além de ineficiente causa lesões profundas nas mulheres em trabalho de parto.

“Daí a enfermeira subiu em cima de mim, para empurrar o bebê. Fiquei sem ar, minha barriga ficou toda roxa”

O trauma foi tão grande que, ao saber da nova gravidez, Paula tentou juntar dinheiro para realizar o parto, queria uma cesárea, em um hospital privado, na esperança de não sofrer mais nenhum tipo de violência obstétrica. Porém os partos em hospitais privados são caríssimos e, sem conseguir juntar o dinheiro necessário, Paula decidiu por comprar uma pistola. Seu desespero era tão grande que estava decidida a se suicidar caso sofresse nova violência.

“Eu planejava chegar na maternidade e pedir por uma cesárea. Se não fosse atendida, ia me matar. Sabia que não ia aguentar tudo aquilo de novo”

Paula não conseguiu a cesárea. Teve que ouvir do médico que quem mandava ali era ele. Não tinha escolha. A polícia foi avisada da arma e Paula foi presa após o parto. Ficou 21 dias na prisão, sem poder ver o filho ou amamenta-lo. Teve o direito ao próprio corpo e a maternidade negados. Sua história é mais um capítulo do machismo que oprime mulheres no mundo todo, grávidas ou não, nas escolas, nas fábricas, nos hospitais.

As estatísticas da violência obstétrica

Cerca de 25% das gestantes são vítimas de algum tipo de violência obstétrica no pré-natal ou na hora do parto. O direito a um acompanhante nem sempre é obedecido. Xingamentos, piadas durante o parto também são relatados. Exames dolorosos, muitas vezes desnecessários também são um tipo de violência obstétrica. O uso indiscriminado da ocitocina sintética que acelera o parto causando fortes dores na mãe e risco para o feto está na lista das violências que as gestantes estão sujeitas. Além disso, o uso indiscriminado da cesárea, desrespeitando inclusive o direito de escolha das mulheres também é violência.

Embora 1 em cada 4 mulheres afirmam que sofreram violência obstétrica, um número muito maior não teve o atendimento devido na hora do parto. Cerca de 71% das gestantes não puderam ter acompanhante na hora do parto, direito assegurado por lei. Procedimentos não medicamentosos, como banho quente para aliviar a dor, não foram oferecidos para cerca de 73% das mulheres.

“Pare de gritar, na hora de fazer você não gritou!”

Outra estatística que assusta é o altíssimo número de cesarianas nos hospitais brasileiros. O Brasil é o país campeão mundial em número de cesáreas. Com 55,5% de taxa de cesáreas e apenas 44,5% de partos normais, é o único com mais da metade dos partos realizados pela via cirúrgica, segundo dados da OMS de 2017. Ainda segundo a entidade, a porcentagem ideal de partos tipo cesárea seria em torno de 15%.

O objetivo da cirurgia cesariana deveria ser salvar a vida da mãe e do bebe em caso de gravidez de risco. Porém, a maioria das cesarianas são marcadas muito antes da mulher entrar em trabalho de parto. Essa cirurgia traz todos os riscos de uma cirurgia comum acrescida do aumento do risco de morte da mulher em 3 vezes e em 120 vezes o risco de problemas respiratórios para o recém-nascido.

Embora toda mulher tenha o direito de escolher o tipo de parto que deseja, isso está longe de ser uma realidade na vida das mulheres. Casos como o de Paula comprovam isso. A comodidade e o custo levam muitos médicos a indicarem a cirurgia cesariana como “melhor” para a gestante. Ainda que iniciem sua gestação desejando o parto normal, muitas mulheres são desestimuladas e acabam optando pela cesariana. O medo de um parto doloroso é o principal argumento. No Brasil o uso indiscriminado de medicamentos para acelerar o parto que provocam reações em cadeia de dor e sofrimento, como o uso da ocitocina, a manobra de Kristeller, o recurso da episiotomia (corte feito no períneo – entre o órgão genital e o ânus) e os xingamentos para que a mulher pare de gritar são alguns dos exemplos que justificam o medo.

Leia mais: Vamos falar sobre parto e sobre respeito às mães e bebês?

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A violência obstétrica também tem cor

De acordo com uma pesquisa publicada pela Fundação Oswaldo Cruz de 2014, 65,9% das mulheres submetidas a algum tipo de violência obstétrica no Brasil também são pretas ou pardas. A violência obstétrica também vê cor.

A ideia racista de que a mulher negra são mais fortes e aguentam mais a dor traz também consequências cruéis para sua gestação e parto. Deixam muitas vezes de receber o pré-natal adequado, recebem menos ou nenhum anestésico em trabalho de parto. Também são maioria entre as mortes maternas, são 62,8% do total de mulheres mortas durante o parto.

Simone G. Diniz e Alessandra S. Chacham em sua pesquisa intitulada O “corte por cima” e o “corte por baixo”: o abuso de cesáreas e episiotomias em São Paulo colocam também a seguinte reflexão:

“No caso brasileiro, a cesárea e a episiotomia desnecessárias são também um problema racial e de classe social. Mulheres brancas de classe média, atendidas por serviços do setor privado, tendem a receber “o corte por cima” (cesárea), enquanto a mulher negra e pobre que recorre ao SUS (70% das mulheres do país) tende a receber “o corte por baixo” (episiotomia). Como as mulheres negras apresentam características diferenciadas quanto à cicatrização, com maior tendência a problemas cicatriciais e formação de quelóides, elas poderão estar mais expostas a complicações na cicatrização da episiotomia.”

Leia mais: Saúde e mulher negra: Quando a cor da pele determina o atendimento

Episiotomia e o “ponto do marido”

Episiotomia é um corte feito na região do períneo (área muscular entre a vagina e o ânus) para ampliar o canal de parto. Não existe um protocolo específico para a indicação da episiotomia e o assunto é polêmico. A OMS defende que em geral deveria ocorrer somente quando há risco para o feto (quando o bebê está sentado, ou prematuro) ou rigidez do períneo, ou seja cerca de 10% dos partos normais necessitariam de uma intervenção como a episiotomia. No Brasil de acordo com a Fiocruz (2015), no Brasil, 53,5% dos partos normais são realizados com o uso da episiotomia. O uso rotineiro do procedimento traz consequências graves a saúde física e sexual da mulher.

Estudos da Biblioteca Cochrane (Rede internacional independente que revisa procedimentos e pesquisas médicas) contestam a eficácia da intervenção e diversos grupos feministas acusam a prática de mutilação genital. Além de ser uma intervenção cirúrgica polêmica, tanto em relação à sua eficácia quanto aos riscos para a mulher, muitas mulheres sequer são consultadas a respeito da intervenção.

Em 2015, a revista Época, em uma matéria sobre a violência obstétrica, ouviu relatos de mulheres sobre o uso da episiotomia. Uma delas relatou que além de não ter sido consultada sobre o corte cirúrgico, na sutura ainda teve o “ponto do marido” para “continuar casada”. É um ponto a mais na sutura que deixaria a vagina mais apertada para que o homem tenha mais prazer na relação sexual. Rita Lisaukas também havia coletado em seu blog relatos de mulheres submetidas contra a sua vontade a episitomia e o “ponto do marido”. Um dos relatos denuncia que sequer anestesia local para o corte e posteriormente para sutura foi feita.

De acordo com a Biblioteca Cochrane As consequências da episiotomia são muitas. Fibrose, dor prolongada, dificuldade de cicatrização e perda da sensibilidade na região, laceração e frouxidão na região perineal, que, por sua vez, levam a problemas intestinais (caso de Amy Herbst) ou, até mesmo, na contenção de órgãos como o intestino. A cantora norte-americana de ópera Amy Herbst processou o governo americano após sofrer uma episiotomia sem seu consentimento que causou danos intestinais, constante flatulência e incontinência urinária, dificultando o exercício de sua profissão e prejudicando sua carreira.

Por conta do “ponto do marido” as mulheres relataram profundos danos às suas vidas sexuais. Dor durante o ato sexual, dificuldade de abaixar são relatos frequentes. O machismo explícito na decisão do médico de apertar mais a vagina da mulher para garantir o prazer masculino custa à essas mulheres mais dor que prazer nas suas relações sexuais.

O direito ao próprio corpo

No Brasil o direito ao aborto é negado às mulheres. Isso resulta em milhares de mulheres mortas por abortos clandestinos todos os anos. Estima-se que por dia 4 mulheres morrem por complicações decorrentes de abortos no Brasil. Mais de 200 mil são internadas todo ano com complicações decorrente de abortos. As principais vítimas são as mulheres pobres e negras que sem dinheiro recorrem à clínicas precárias e métodos perigosos. Uma em cada cinco brasileiras com mais de 40 anos já realizou pelo menos um aborto na vida. São mais de 7 milhões de mulheres obrigadas a recorrer a clínicas clandestinas porque o direito ao seu próprio corpo lhe é negado. As vítimas de complicações quando não morrem (o aborto clandestino é a 5ª causa de morte materna) são presas, como foi relatado pelo Esquerda Diário: Quando não é a morte, é a prisão: mulher é presa por tentativa de aborto em Goiás.

Contraditoriamente, o direito à maternidade também é negado às mulheres brasileiras. Uma em cada quatro sofre violência obstétrica. A cirurgia cesariana, que deveria ser exceção, é rotina nos hospitais. O pique, como é chamada a episiotomia, também. Os tristes relatos de violência sofridos pela mulher na hora de dar a luz mostram que tampouco a maternidade é valorizada no país que proíbe os abortos. Nem quando escolhe ser mãe o direito ao próprio corpo é respeitado, como mostra a história de Paula e os casos de episiotomia.

Nascida a criança, não existe qualquer garantia de creches. Só em São Paulo são milhares de crianças na fila por uma vaga em creches públicas municipais. Mais recentemente até o direito à merenda nas escolas está sendo negado às crianças.

O machismo pune a mulher cotidianamente por sua vida sexual, seja porque escolheram abortar, seja porque escolheram ser mães. Aliado ao capitalismo, o resultado é, por exemplo, o parto ser tratado como uma linha de montagem fabril. Para ser mais rápido e garantir a “produtividade” vale cesárea desnecessária, manobra de Kristeller, episitomia, o que for. E no dia das mães a maternidade é nicho de mercado. Vale tudo em nome do lucro e nada vale a vontade e a liberdade das mulheres. No capitalismo a vida das mulheres pouco importa.




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