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Marxismo como guia para ação: reflexões sobre teoria e prática

Diana Assunção

Marxismo como guia para ação: reflexões sobre teoria e prática

Diana Assunção

Imagem - reprodução do quadro de Joan Miro

Dentro do marxismo - em seu sentido amplo -, sempre houve uma enorme preocupação com qual a relação correta entre teoria e a prática. A maneira como cada organização política encarou esta relação deixou marcas inquestionáveis. Neste artigo buscamos elucidar a compreensão dialética a respeito da teoria (a generalização da prática do passado) com a prática imediata e das tarefas históricas de nossa época.

É comum se ouvir repetir a frase, talvez a mais popular do marxismo sobre teoria, de Lenin na sua obra "Que fazer?": “sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário”. Mas qual o seu sentido profundo? Há outra frase, dessa vez de Trotsky, que diz que se deve encarar a “teoria como guia pra ação”. Para tentar compreender o significado e a relação entre ambas frases - para que não sejam apenas frases bonitas, mas efêmeras - é necessário voltar em alguns aspectos fundamentais sobre materialismo histórico e materialismo dialético. Em primeiro lugar retomar os preceitos básicos da necessidade de um tipo de pensamento que pudesse ser distinto da lógica formal. Como dizia Trotsky sobre Marx:

“Ao basear-se no conjunto da filosofia materialista anterior e no materialismo inconsciente das ciências naturais, Marx tirou a dialética das superfícies do idealismo e a fez olhar até a matéria, sua mãe. (...) Neste sentido que a dialética, havendo encontrado novamente seus direitos através de Marx e materializada por ele, constitui o fundamento da concepção marxista do mundo, e o método fundamental da análise marxista” [1]

Essa dialética, que vem do pensamento de Hegel, foi “liberada” por Marx de seu cativeiro idealista[2], segundo Trotsky, pois “sem um pensamento que permita captar as contradições, mudanças bruscas e novidades que apresenta a história, difícil será enfrentar os desafios da luta de classes”[3]. 

Justamente a teoria marxista vai se construindo da necessidade de analisar a realidade, por isso o mais elementar da análise de Marx parte do método “do concreto ao abstrato voltando ao concreto”, onde o concreto é ponto de partida e também resultado, uma vez que o pensamento, as ideias e as teorias não podem ser “pura abstração”. 

Aqui quero ressaltar que entendo que a dialética e o materialismo, ambos, se desenvolvem no sentido da importância da natureza e da vida material, e de suas mudanças bruscas e contradições, ou seja, um pensamento que está diretamente relacionado com a realidade (depois veremos qual), e o aporte feito pelos revolucionários russos foi conseguir aplicar esta corrente de pensamento em chave revolucionária.

Para desenvolver a teoria marxista, havia outros componentes além da dialética. Por exemplo, o materialismo:

“O segundo componente mais importante do marxismo é o materialismo histórico, ou seja, a aplicação da dialética materialista à estrutura da sociedade humana e a seu desenvolvimento histórico. Seria equivocado dissolver o materialismo histórico no materialismo dialético, do qual não é mais que uma aplicação. (...) Pode-se dizer com total justificação que o darwinismo é uma aplicação brilhante – ainda que não tenha sido elaborado filosoficamente até o final – da dialética materialista à questão do desenvolvimento do mundo orgânico em toda sua diversidade e multiplicidade. O materialismo histórico cai dentro da mesma categoria. É uma aplicação da dialética materialista a uma parte distinta, ainda que enorme, do universo. A importância prática imediata do materialismo histórico é neste momento incomparavelmente maior, já que, pela primeira vez, dá a classe de vanguarda a ocasião de abordar a questão do destino humano de maneira plenamente consciente”. [4]

E no campo da economia capitalista:

“O terceiro componente do marxismo é sua sistematização das leis da economia capitalista. O Capital de Marx é uma aplicação do materialismo histórico ao plano da economia humana numa etapa particular de seu desenvolvimento, exatamente como o materialismo histórico em seu conjunto é uma aplicação da dialética materialista ao plano da história humana”. [5]

Então se o pensamento dialético é aquele que, como diria Trotsky, diferentemente do pensamento vulgar, não trata-se de uma “fotografia”, mas sim de um “filme” (que não ignora as fotografias, mas busca combiná-las)[6], ou seja, busca dar conta do “movimento” na realidade, chamamos este pensamento de materialista por que “na nossa dialética as raízes não estão no céu, nem nas profundezas do ‘livre-arbítrio’, senão na realidade objetiva, na natureza”[7]. 

O materialismo histórico é, então, a aplicação deste pensamento ao campo da história da humanidade, de suas mudanças bruscas. Estes componentes vão delineando o marxismo como uma teoria, como uma doutrina.

A relação entre a teoria marxista e a prática

Desenvolvido estes aspectos citando Trotsky, reafirma-se as raízes da teoria marxista e como isso esteve ligado com a análise de sua relação com a prática. A teoria marxista surge da necessidade de tomar correntes de pensamento em referência direta com a realidade, em seu método e conteúdo, criando assim uma teoria que pudesse transcender sua própria época. O marxismo então é também em si mesmo “um produto histórico”[8]. 

Para avançar um pouco, vejamos o que diz Trotsky sobre a “realidade” e a “experiência”, em última instância, a prática:

“O materialismo que Trotsky defende não se refere ao mero manejo dos dados observados: a experiência é o definitivo se ‘não se entende a experiência no sentido de testemunho direto de nossos cinco sentidos individuais. Se reduzimos a questão à experiência no estreito sentido empírico, então nos é possível chegar a nenhum julgamento sobre a origem das espécies (...) A experiência é a inter-relação ativa entre o sujeito e o objeto’” [9]

Aqui está uma importante passagem onde se verifica, também, que não se trata de manejar dados observados e que a experiência é definitiva para o materialismo, desde que não se entenda como “experiência” o sentido de “testemunho direto” como fazem os empiristas. Trotsky mostrará mais adiante que, ao contrário, a teoria é “generalização da prática histórica” e portanto, não necessariamente é necessário viver determinada prática para teorizar sobre a mesma, seja no passado ou no futuro – ainda que, obviamente, será na prática futura que a teoria irá se comprovar e se enriquecer. 

Os empiristas achavam que eram materialistas históricos dialéticos porque a partir da prática iam pensando o que deveriam fazer. Sempre foi uma grande polêmica, que serviu de polêmica também com a forma como Stalin enxergava a teoria, que rendeu um importante debate no texto “Tendências filosóficas do burocratismo”. Na introdução do livro “Escritos Filosóficos”, a camarada Ariane aponta que:

“Outra interessante discussão com o empirismo, presente até hoje em muitas escolas, argumenta contra o marxismo que, como bom materialismo, devia aceitar que a teoria se verificava em última instância na prática, isto é, em sua pretendida especialidade. Trotsky já havia encarado antes discussões similares. Os mesmos argumentos dirigidos nos anos 1940 contra o pragmatismo, em ‘As tendências...’ haviam sido dirigidos à Stalin por sua vulgarização do papel de Lênin. Ali havia aceitado que a teoria surge da prática e se comprova nela, mas isso não significa pedir-lhe somente que seja aplicável numa situação imediata, senão que em todo caso é comprovável na prática histórica, à que a teoria justamente deveria contribuir para a previsão do futuro e portanto, à preparação de uma prática mais adequada. A teoria é então, uma ‘generalização da prática’, e uma ‘ponte’ da prática presente à prática futura”

Acredito que esta citação acima começa a ordenar melhor o pensamento sobre o tema da teoria e desde onde encará-lo. Se dizemos que não há movimento revolucionário sem teoria revolucionária, e, portanto, que a teoria revolucionária é guia para ação, de qual ação estamos falando? De uma ação imediata? Como coloca Ariane “a teoria surge da prática e se comprova nela”, entretanto “não significa pedir-lhe somente que seja aplicável numa situação imediata”. Aqui se trata de pensar que a “ação” ou o “movimento revolucionário” estão tratados no sentido histórico, ainda que no imediato também – uma vez que não separamos as tarefas imediatas (táticas) de nossa estratégia. Mas se não há movimento revolucionário sem teoria revolucionária, o contrário também seria verdadeiro? 

Vejamos o que diz Trotsky:

“Ser guiado pela teoria é ser guiado por generalizações baseadas em toda a experiência prática anterior da humanidade, com o fim de poder pautar, com o maior êxito possível, um ou outro problema prático de hoje. Desse modo, através da teoria, descobrimos precisamente a superioridade da prática em seu conjunto sobre os aspectos particulares da prática”[10]

Respondendo à pergunta anterior, sim, o contrário também seria verdadeiro. Sem a prática não há teoria revolucionária. Mas de que prática estamos falando? Da prática atual? Mais uma vez não necessariamente. Como apontou Trotsky a teoria só pode existir porque é baseada em toda a experiência prática anterior da humanidade. Os empíricos se orientam pela prática direta, mas justamente não são materialistas (ou são uma caricatura da mesma) porque esta orientação prática e imediata não se transforma em generalização da prática para se transformar em teoria, e a partir daí, guiar a ação futura. Trotsky vai afirmar a relação de valor entre teoria e prática:

“É necessário dizer que a prática tem a mesma superioridade sobre a teoria como o ser sobre a consciência, a matéria sobre o espírito e o todo sobre as partes. Já que a teoria nasce da prática, está engendrada pelas necessidades práticas, e constitui uma generalização mais ou menos incompleta ou imperfeita da prática”[11]

Ou seja, se a teoria é prática generalizada, não se pode rechaçar a teoria ou considerá-la inferior, e o contrário também é certo. Trata-se de entender exatamente a relação entre ambas. Sem uma análise da realidade prática não é possível que o pensamento abstrato se transforme em teoria, porque não há sobre o que teorizar. Sem teoria baseada na experiência prática anterior, não é possível uma experiência prática posterior que não seja empírica, pois os revolucionários não atuam de “improviso”, senão que buscam a teoria para “poder pautar, com o maior êxito possível, um ou outro problema tático dos dias de hoje”. Trotsky faz uma comparação interessante com Bakunin:

“Ao afirmar a superioridade da economia sobre a política, Bakunin rechaçava a luta política. Não compreendia que a política é economia generalizada e que, consequentemente, é impossível resolver os problemas econômicos mais importantes, ou seja, os mais gerais, evitando generalizá-los pela política”[12]

Porque a prática é superior a teoria? Por que temos que ter uma teoria que sirva pra ação imediata? Não. Porque a teoria só pode existir a partir da prática, ou seja, a partir da análise da prática, da generalização mais ou menos incompleta ou imperfeita da prática. É a partir daí que a teoria “retorna” pra prática, ou seja, é aplicada como guia pra ação. É esse o exercício feito desde que Marx desenvolve a dialética de Hegel e o método mais elementar de partir do concreto para ao abstrato e voltar ao concreto (o primeiro concreto é ponto de partida e o segundo é resultado). Então a prática é tão importante não simplesmente porque é necessário “agir”, mas porque somente através da experiência anterior é possível teorizar (generalizar a prática) para levantar hipóteses (“prever o futuro”) utilizando-se de todas as ferramentas do marxismo para pensar as vias que se darão, por exemplo, a recomposição do movimento operário, as lutas entre as classes, o desenvolvimento da crise capitalista internacional. Como a luta de classes é anterior a nós, não serve apenas estudar e exercitar a prática atual, mas a apropriação profunda da prática anterior, ou seja, da história da luta de classes já com um olhar crítico (teorizando) sobre suas lições – mesmo que não tenhamos sido “testemunhas oculares” de toda a história, por isso a importância, também, dos “fios de continuidade” da tradição revolucionária.

Tudo isso deve nos levar a pensar porque a teoria é guia para ação, sendo ela “ação generalizada” ou melhor “generalização da prática”. A ação nem sempre é luta ou nem sempre é imediata, pois a ação deve ser encarada em seu sentido histórico mais profundo. Um dos componentes centrais da “ação” em seu sentido histórico é a construção de partido. Afinal, se não há luta, não é necessário haver uma teoria (generalização da prática) para guiar os revolucionários? Sempre é necessária uma teoria para nos guiar, na nossa ação estratégica de construir um partido revolucionário internacionalista para a tomada do poder impondo a ditadura do proletariado rumo ao comunismo (nossa estratégia). Essa teoria deve existir em momentos em que não há “ação imediata”, por isso a ação está sendo tratada em seu sentido histórico. Aí Trotsky vai aprofundar esta ideia, dialeticamente, de que a teoria não está “diretamente relacionada” com a ação prática imediata:

 “A teoria – a teoria autêntica ou fundamental – não toma forma em relação direta com as tarefas práticas do presente. A teoria é na verdade a consolidação e a generalização de toda a atividade prática e da experiência humana, que engloba períodos históricos diferentes em sua sucessão materialmente determinada. É somente porque a teoria não está indissoluvelmente ligada com as tarefas práticas que lhe são contemporâneas, senão que se eleva por cima delas, que tem o dom de ver com antecipação, ou seja, que é capaz de preparar-se para vincular-se com a atividade prática futura e formar gente que estará à altura das tarefas práticas do porvir”[13]

Ou seja, da “superioridade” da prática sobre a teoria, e de que a teoria é “generalização da prática”, Trotsky desenvolve agora que a teoria não está “indissoluvelmente ligada com as tarefas práticas que lhe são contemporâneas”, ou seja, voltamos aqui à definição de “ação” e qual o seu sentido. A teoria não está guiando, necessariamente, a ação imediata, mas a ação em seu sentido histórico – que de alguma forma engloba a ação imediata a depender da etapa histórica – porque é este o que define os rumos da revolução proletária internacional. Para isso, Trotsky exemplifica com a teoria e a ação prática de Marx:

“A teoria de Marx foi uma gigantesca torre por cima das tarefas práticas revolucionárias dos contemporâneos lasalleanos de Marx, exatamente como o fez por cima da atividade prática de todas as organizações da Primeira Internacional. (...) Não é mais que na época das catástrofes históricas que se estendem no conjunto do sistema capitalista que se abre a possibilidade de colocar em prática as conclusões fundamentais do marxismo. (...) Marx fez muito como dirigente da Primeira Internacional. Mas isto não foi a principal realização de sua vida. Marx continuaria sendo Marx, inclusive sem a Liga Comunista e a Primeira Internacional, e seu elevado trabalho teórico não coincide de nenhum modo com sua atividade prática revolucionária. Foi muitíssimo mais além, pelo fato de haver criado a base teórica para toda a atividade prática posterior de Lênin e de um certo número de gerações que ainda estava por vir”[14]

Aqui é a maior demonstração de que é equivocado dizer, simplesmente, que a teoria está ligada à prática ou deve estar ligada a prática, em seu sentido imediato – ainda que depois veremos o que significa quando a teoria se colocava à prova em determinados momentos históricos. Trotsky utiliza o termo “torre” pra demonstrar que a teoria desenvolvida por Marx, se apropriando de várias correntes de pensamento (filosófico, econômico, biológico) foi fundamental para ação revolucionária não dele, não a imediata, mas para a ação revolucionária de “um certo número de gerações que ainda estava por vir”, uma delas era a geração de Lenin: os bolcheviques.

Entre tantas coisas que poderíamos marcar para diferenciar os bolcheviques de todos os autoproclamados marxistas de sua época, seria a relação profunda que estes revolucionários profissionais tinham com a teoria. Sua admiração e dedicação, os tornavam não apenas bons lutadores, mas verdadeiros revolucionários.

“Vários autores relatam o assombro dos camaradas de Trotsky quando sua primeira pergunta foi, recém chegado ao México em meio da perseguição stalinista, qual era o nível de estudo da dialética no SWP”. [15]

Esta era a seriedade de Trotsky com a teoria. E por isso é tão interessante compreender o que ele dizia: "o leninismo é o marxismo em ação". Mas aqui para compreender de forma profunda esta frase, é necessário voltar à definição de “teoria como guia pra ação” uma vez que, à diferença de Marx, já vivemos em um período de “crises, guerras e revoluções”, como aponta Trotsky quando diz que “é na época das catástrofes históricas que se estendem no conjunto do sistema capitalista que se abre a possibilidade de colocar em prática as conclusões fundamentais do marxismo”. 

Então se por um lado é necessário entender o sentido da “ação” como histórica, por outro é necessário entender e debater exaustivamente, a partir da época em que vivemos, e particularmente a partir do período – que definimos como “fim da restauração burguesa”[16] – quais são as tarefas teóricas e práticas de uma organização revolucionária no século XXI. 

Voltando à Trotsky, vemos que ele aponta a discussão de teoria e prática também na atividade de Lênin, já demonstrando as diferenças de época com Marx:

“O trabalho teórico de Lênin teve um caráter essencialmente auxiliar em relação a sua própria atividade prática revolucionária. A dimensão de seu trabalho teórico correspondeu à importância histórica mundial de sua prática. Mas Lênin não criou uma teoria do leninismo. O que fez foi aplicar a teoria do marxismo às tarefas revolucionárias da nova época histórica. A partir do III Congresso do Partido onde se colocaram os primeiros fundamentos do Partido Bolchevique, Lênin dizia que considerava mais justo que o considerassem um publicista (propagandista) mais do que um teórico da social democracia. É um pouco mais que a ‘modéstia’ de um jovem dirigente, que já havia produzido bons trabalhos de grande valor. Se recordamos que há vários tipos de ‘publicistas’, Lênin definiu com justeza o significado histórico destas palavras. O trabalho de um publicista, segundo sua concepção, é a aplicação teórica e política da teoria já existente para abrir o caminho a um movimento revolucionário vivo”

Quando trata de Lênin tenta mostrar, também, que a relação entre teoria e prática não é uma relação necessariamente direta, ainda que depois vai demonstrar que o que liga a teoria à prática é a tática (concentrada de estratégia). Mas o que me parece interessante de analisar aqui é, por um lado, o apontamento inicial de como Marx havia criado uma teoria que se alçou como uma “enorme torre” que olhava “pra além” das tarefas imediatas como se manejar na atividade prática, o que permitiu então que as gerações futuras se apropriassem disso, e por outro lado como o próprio Lênin não se considera fundador de uma nova “teoria” (algo que Stalin fazia questão de fazer, separando o leninismo do marxismo), se considerava na verdade um “publicista” – ainda que, obviamente, foi parte da geração futura capaz de, diante dos grandes acontecimentos históricos, aportar para a teoria marxista. Na concepção de Lênin, o trabalho de um publicista seria aplicar a teoria já existente para abrir o caminho a um movimento revolucionário.

Teoria, tática e estratégia

Sobre a aplicação imediata da teoria, Trotsky vai dizer:

“A tática é a aplicação prática da teoria às condições específicas da luta de classes. O laço entre a teoria e a prática corrente se faz através da tática. A teoria, ao contrário do que diz Stalin, não toma forma na aliança inseparável com a prática imediata. Se eleva por cima dela e não é mais que por isso que tem a capacidade de dirigir uma tática indicando, ademais das tarefas atuais, os pontos de referência no passado e as perspectivas para o porvir”

Essa é a maior definição de que a tática concentra a estratégia, ou seja, a tática é o laço entre a teoria e a prática corrente – ao contrário de dizer que a teoria “toma forma” na prática corrente. A teoria se eleva sobre a prática corrente e, por isso, tem a capacidade de dirigir tal tática indicando, ademais das tarefas atuais, os pontos de referência no passado e as perspectivas para o porvir. Ou seja, a tática não é um fragmento no presente, ela é aplicação da “generalização da prática histórica anterior” e aponta para a “prática histórica posterior” buscando não permitir, portanto, que a tática se desvincule das tarefas históricas, ou seja, da estratégia:

“A linha complexa da tática no presente – tática marxista, ou seja, não tática de seguidismo – não está determinada por um ponto único, mas sim por uma multiplicidade de pontos no passado e no futuro”

Essa reflexão me parece importante porque aponta para entender a relação entre teoria, prática, tática e estratégia. No prólogo escrito por Trotsky da edição polaca de “Esquerdismo, doença infantil do comunismo” de Lênin, Trotsky em uma frase demonstra a relação entre estes fatores dizendo que a estratégia sem seu correspondente tático será sempre uma abstração teórica inerte. 

Por que uma abstração teórica, e não apenas uma abstração? Entendo que justamente por que o laço entre a teoria e a prática é a tática, mas a tática não está determinada por um ponto único, mas sim por uma multiplicidade de pontos no passado (generalização da prática anterior) e no futuro (tarefas históricas estratégicas) concentrando desta forma a estratégia que temos. Aqui pra mim aprofunda-se outro aspecto de toda essa reflexão, que é o que a própria prática revolucionária de Lenin e Trotsky vão demonstrar ao longo dos anos. Se por um lado 1905 não foi possível sem o estudo das revoluções e processos revolucionários anteriores, como Revolução Francesa e a Comuna de Paris, por outro lado 1917 também não seria possível sem a experiência prática de 1905, que enriqueceu a teoria marxista. 

Trotsky vai também, durante mais de 20 anos, atuando como parte do “leninismo” e portanto “aplicando o marxismo” e enriquecendo-o, elaborando a partir daí uma “teoria-programa” da revolução internacional. Então se por um lado Trotsky afirma que a teoria não “toma forma na aliança inseparável com a prática imediata”, senão que se eleva por cima dela, por outro lado somente pode “tomar carne e sangue” (ser aplicada em forma de tática, concentrando estratégia) se está relacionada com o passado e com o futuro, e se está utilizando todas as ferramentas do marxismo para levar isso adiante:

“A teoria é a generalização de todas as práticas anteriores e tem um caráter auxiliar em relação a todas as práticas posteriores. Já esclarecemos o ponto segundo o qual a teoria não toma forma em uma dependência direta da atividade prática corrente, e não é, tampouco, de uma importância auxiliar em relação a uma atividade prática ou a atividade prática em geral. ‘Isto depende’. Para a prática stalinista de zig-zags sem princípios, o que é ‘necessário e suficiente’ é uma mescla eclética de fragmentos mal digeridos de marxismo, de menchevismo, de populismo. A prática de Lênin utilizou tudo o que há na teoria de Marx pela primeira vez na história.”

Ainda que Trotsky vá dizer que o “leninismo é o marxismo em ação”, também explicita, obviamente, os aportes da aplicação prática do marxismo através de Lênin, ou melhor, através do Partido Bolchevique, que foi o que permitiu que a teoria se comprovasse na realidade (como uma teoria do movimento) e se aprimorasse diante dos novos acontecimentos e das mudanças da luta de classes internacional:

 “O Partido Bolchevique pôde realizar sua magnífica obra ‘prática’ porque iluminou todos os seus passos com a teoria. O bolchevismo não criou a teoria: o marxismo lhe proporcionou. Mas o marxismo é a teoria do movimento, não do estancamento. Somente os acontecimentos de grande envergadura histórica poderiam enriquecer a própria teoria. O bolchevismo fez aportes inestimáveis ao marxismo: a análise da época imperialista como época de guerras e revoluções; da democracia burguesa na era da decadência capitalista; da relação recíproca entre greve geral e insurreição; do papel do partido, dos sovietes e dos sindicatos na revolução proletária; a teoria do estado soviético, a economia de transição; o fascismo e o bonapartismo na época de decadência capitalista; e por último, a análise da degeneração do próprio Partido Bolchevique e do estado soviético. Nomeie-se alguma tendência que tenha agregado algum aporte essencial às conclusões e generalizações do bolchevismo”[17]

Nesta “comparação” entre Lênin e Marx, ou melhor, nesta polêmica que Trotsky levou adiante com Stalin sobre sua tentativa de comparar Lênin e Marx para distanciá-los, Trotsky sintetiza da seguinte forma:

“Se bem o marxismo, que apareceu em um período pré-revolucionário não é de nenhum modo uma teoria pré-revolucionária senão, ao contrário, se elevou por cima de sua própria época para converter-se numa teoria da revolução proletária, então a tática – ou seja, a aplicação do marxismo às condições específicas do combate – por sua própria essência, não pode elevar-se por cima da maturidade das condições objetivas. Desde o ponto de vista da tática – seria mais exato dizer, desde o ponto de vista da estratégia revolucionária -, a atividade de Lênin difere enormemente da de Marx e dos primeiros discípulos de Marx, exatamente como a época de Lênin difere da de Marx. (...) O dirigente revolucionário Marx viveu e morreu como conselheiro teórico dos jovens partidos do proletariado e como heraldo[2] que anunciava as batalhas decisivas que viriam. Lênin conduziu o proletariado até a tomada do poder, a assegurar sua vitória através de sua direção, e a dar-lhe uma direção ao primeiro Estado Operário da história da humanidade e a uma Internacional cuja tarefa imediata era a de estabelecer uma ditadura mundial do proletariado. O trabalho titânico desta suprema estratégia revolucionária pode, com total justiça, estar localizado no mesmo nível que o trabalho de titán supremo da teoria proletária”[18]

Estas passagens lançam bastante luz sobre a reflexão em torno da teoria e da prática, e sobre como a tradição revolucionária, de Marx aos trotskistas que buscaram restaurar o marxismo revolucionário contra toda degeneração stalinista buscavam compreender em síntese essa relação. Também nos permite olhar as conhecidas frases que são repetidas formalmente como referência como “sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário” e “teoria como guia para ação”, em seu sentido profundo e compreender que são essencialmente complementares entre si.

4 perigos de uma má compreensão da relação dialética entre teoria e prática:

Ao olharmos para a esquerda internacionalmente, podemos identificar 4 grandes problemas decorrentes de uma má compreensão desta relação dialética entre teoria e prática.

O primeiro perigo seria achar que a teoria é pra responder aos problemas imediatos de qualquer luta, e somente pra isso. Ou seja, que se a teoria não diz respeito a uma luta específica, não serve, está “descolada da prática”. 

O segundo perigo é achar que a teoria é uma propaganda em geral, ou seja, que não diz respeito à prática, porque na prática se vai construindo a justificação da ação (empiricamente). 

Um terceiro perigo é entender “abstratamente” a ideia de que a teoria é guia pra ação, mas não conseguir implementar na realidade essa ideia, fazendo com que, principalmente nos momentos de luta se crie uma dualidade entre teoria e prática, mantendo por exemplo um tipo de divisão social do trabalho no partido, entre “trabalho intelectual” e “trabalho manual”. 

Um último perigo seria se apropriar dessa leitura de Trotsky sobre a ação histórica pra justificar uma “não ação” presente e corrente, que levaria ao teoricismo e portanto ao não marxismo.  

O primeiro leva sempre a um desvio porque desdenha a teoria, não vê importância na generalização das experiências passadas e a trata como acessório da ação imediata, ou seja, considera que a teoria está indissoluvelmente ligada à prática corrente, ignorando desta forma a prática anterior e a preparação para o futuro, e considerando como “prática corrente” apenas as lutas. A experiência, aqui, é sempre “in lócus” (depende dos 5 sentidos individuais) e não a experiência de décadas e séculos da luta de classes. 

O segundo, que é o desvio mais comum do centrismo, é o que podemos chamar de “propaganda socialista + sindicalismo”, porque vai desenvolvendo a teoria não para se “preparar para a ação futura” e “sem tirar lições da ação passada”, e portanto, a tática corrente, ou seja, a prática atual não tem referência no passado e nem um horizonte no futuro, ficando em geral nos marcos do sindicalismo ou outros desvios do tipo. Neste caso os centristas ou consideram que a teoria já está “totalmente pronta” e não vêem a necessidade por exemplo de um rigor teórico enorme com as novas mudanças da sociedade capitalista e os novos embates internacionais da luta de classes, e/ou por outro lado consideram que a teoria só é para ser aplicada em “momentos revolucionários”. Como diria Trotsky:
“No terreno da teoria, o centrismo é amorfo e eclético; no possível evita as obrigações teóricas e tende (de palavra) a privilegiar a ‘prática revolucionária’ sobre a teoria, sem compreender que somente a teoria marxista pode apresentar uma orientação revolucionária à prática”[19]

O último perigo que aponto, que justificaria uma “não ação presente” já que a “ação é histórica” levaria diretamente a degeneração, porque não permitiria que um pequeno grupo pudesse atuar e “exercitar seus músculos” em pequenas intervenções da luta de classes, ou ter experiências em greves como “escolas de guerras” ou até mesmo ter relação direta com a realidade para permitir refletir sobre a própria teoria. Significaria separar um momento de “acumulação” sem relação com a realidade. Significaria não encarar a construção de um partido da revolução social “como ação”.

Portanto, o que podemos concluir é que se a teoria é um guia para ação, e se a ação é em sentido estratégico, e se parte da estratégia revolucionária é construir um partido da classe trabalhadora pela revolução socialista internacional, grande parte desta “ação” é, então, construção de partido. Então se intervimos numa luta ou numa greve, qual é a ação (referenciada no passado e apontando para o futuro) que deve se “elevar” sobre todas as outras? A construção de um partido revolucionário enraizado na classe operária com um programa da revolução social. Para construir um partido sólido, é necessário uma base teórica sólida, para formar gente à altura de enfrentar os acontecimentos do porvir. É desde este prisma que é necessário encarar a relação entre teoria, prática, tática, estratégia e construção do partido. 

Notas do autor:

[1] “As tendências filosóficas do burocratismo”, Leon Trotsky no livro “Escritos Filosóficos” [http://www.ceip.org.ar/Escritos_Filosoficos.pdf].  

[2] Idem a nota 1.

[3] Introdução de Ariane Diaz aos “Escritos Filosóficos” de Leon Trotsky [http://www.ceip.org.ar/160307/index.php?option=com_content&task=view&id=48&Itemid=56]

[4] Idem a nota 1.

[5] Idem a nota 1.

[6] “O ABC da dialética materialista”, Leon Trotsky [http://revistaiskra.wordpress.com/2010/10/18/especial-iskra-abc-da-dialetica-materialista/]

[7] Idem a nota 6

[8] “O marxismo como ciência”, Leon Trotsky [Escritos de Trotsky].  

[9] “A dialética e a imutabilidade do silogismo”, Leon Trotsky em “Escritos Filosóficos” [http://www.ceip.org.ar/Escritos_Filosoficos.pdf]  

[10] Idem a nota 1

[11] Idem a nota 1

[12] Idem a nota 1

[13] Idem a nota 1

[14] Idem a nota 1

[15] Introdução de Ariane Diaz aos “Escritos Filosóficos” de Leon Trotsky [http://www.ceip.org.ar/160307/index.php?option=com_content&task=view&id=48&Itemid=56]

[16] Fim da restauração burguesa. - Emilio Albamonte e Matias Maielo

[17] “Stalinismo e Bolchevismo”, de Leon Trotsky.

[18] “As tendências filosóficas do burocratismo”, Leon Trotsky no livro “Escritos Filosóficos” [http://www.ceip.org.ar/Escritos_Filosoficos.pdf].  

[19] “O centrismo e a IV internacional”, Leon Trotsky.


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Diana Assunção

São Paulo | @dianaassuncaoED
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