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Lula na Argentina e a decadência dos reformismos latino-americanos

Caio Reis

imagem: Macaco do Sul

Lula na Argentina e a decadência dos reformismos latino-americanos

Caio Reis

Em clima celebrativo, o governo da Argentina organizou um ato pelo Dia da Democracia e dos Direitos Humanos, com direito a discursos de Cristina Kirchner, Alberto Fernández, Pepe Mujica e Lula – a estrela do palco. Campanha eleitoral petista e relatos abstratos sobre tempos idos e impossíveis de retornar dividiram o palco com promessas progressistas contraditoriamente acompanhadas pela certeza da submissão aos ditames do FMI e dos capitalistas. Os reformismos latino-americanos unidos na incoerente campanha de que podem ser gestores humanos de um capitalismo em crise. O que antecipou para a Argentina e para o Brasil essa data emblemática?

Na sexta-feira do 10 de dezembro, o governismo argentino, em crise por protagonizar uma série de reformas anti-populares, políticas repressivas e buscar religiosamente honrar a dívida contraída por Macri com o FMI, festejou, na Praça de Maio, o Dia da Democracia e dos Direitos Humanos (aos 38 anos do fim da ditadura no país). O evento incluiu discursos de Pepe Mujica, Cristina Kirchner, Alberto Fernández e de Lula como uma espécie de convidado de honra e em claro tom de campanha eleitoral. Em uma festividade que em nada condiz com a crise econômica e social que atravessa a Argentina, o ato dividiu as telas de TV com a brutal repressão que o governismo desatava contra uma manifestação que denunciava mais um assassinato de um jovem pelas armas da polícia, em uma semana que também presenciou ações policiais contra lutas operárias e ocupações por moradia no país.

Horas antes da cerimônia, a atenção política do país se concentrava em um comunicado emitido pelo FMI após reuniões com uma delegação do governo argentino. No comunicado, considerado pela Frente de Todos como “um avanço nas negociações”, o Fundo Monetário Internacional recomendou uma série de medidas de ajuste e deixou evidente que não há possibilidade de um acordo para honrar a dívida que não implique em fortes ataques contra as condições de vida dos trabalhadores e das massas argentinas, que sofrem com um índice de pobreza que chega a 43%. A tônica “soberanista” do peronismo e de Lula no “dia da democracia” já iniciou com o futuro dos argentinos sendo decidido na capital dos Estados Unidos, com o FMI recomendando o fim dos subsídios à energia e aos transportes, novas reformas na previdência, redução do déficit fiscal (cortes) e reajustes salariais abaixo da inflação.

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Alberto Fernández e Cristina Kirchner vêm atravessando uma série de crises internas na Frente de Todos, e trocaram momentos de tensão no ato. Kirchner fez algumas acusações ao FMI, defendeu o crescimento econômico e políticas de “inclusão social”, pressionando Alberto com o custo político dos ataques que um acordo com o Fundo implica. O presidente, por sua vez, contra todas as tendências da realidade, respondeu afirmando que a Argentina dos ajustes ficou para trás.

Mas a demagogia de ambas alas do governo no palco, sobre um acordo com o Fundo que “não comprometa a recuperação”, se escancarou na semana seguinte, com a apresentação do Orçamento 2022 do Ministro da Economia, Martín Guzmán. A proposta, que vem tendo dificuldade de aprovação, estipulava o corte de 10% nos gastos primários (afetando a saúde, a educação e políticas como o combate à violência de gênero), elevação do dólar para $131 pesos e uma inflação anual de 33% – embora a expectativa do índice para 2021 seja atingir 50%, muito além dos 29% previstos no último Orçamento.

Apesar das promessas, a situação atual e os dois anos de governo peronista após Macri já deixam claro que não existe espaço na economia Argentina e latino-americana para governos reformistas capazes de realizar concessões milagrosas às massas. O cenário de alta inflação, desemprego, precarização e crises sociais, com uma série de ataques aplicados nos últimos anos e a demanda capitalista por mais reformas ajustadoras, cortes orçamentários e privatizações, traz uma espessa neblina a qualquer perspectiva de reprodução da bonança do início do século através do retorno de fenômenos políticos “pós-neoliberais”, como o petismo e o kirchnerismo/peronismo.

Talvez buscando ser o mais sincero dos reformistas nos limites que a etiqueta política e as palavras abstratas lhe permitem, Mujica abriu o palco com um discurso breve e pessimista, que exortou a “defender a democracia” capitalista, “a única que temos” – e consequentemente à incapacidade de enxergar qualquer possibilidade para além da miséria do presente – e pareceu justificar décadas de ataques de governos ditos democráticos e progressistas contra as massas com o argumento de que “nós humanos não somos perfeitos”. E nesse tom mal-menorista passou a palavra para Lula, de pronto condecorando-o como futuro presidente do Brasil.

Em seu discurso, Lula reivindicou ter sido presidente ao mesmo tempo que Néstor Kirchner e Cristina, que Chávez, Evo Morales, Tabaré Vázquez, Mujica, Lagos e Michelle Bachelet, e disse aos jovens que naqueles anos se viveram tempos muito melhores. Buscou embelezar, diante da catástrofe atual, governos que mantiveram a passividade na luta de classes por meio da cooptação das organizações sindicais, estudantis e movimentos sociais, que garantiram concessões limitadas, mantendo intactos e até mesmo desenvolvendo os pilares do neoliberalismo, como a precarização do trabalho, as privatizações, a primarização exportadora de commodities, o peso das multinacionais e do capital financeiro. Experiências que utilizaram das margens de manobra econômicas daquele momento para fazer populismo, ao passo que administraram o capitalismo latino-americano para as grandes burguesias imperialistas e nacionais.

A crise econômica mundial atual nos coloca muito distantes do cenário internacional que deu margens aos governos pós-neoliberais da década de 2000 – quando o superciclo das matérias primas e o comércio mundial impulsionados por uma China em decolagem jorravam dólares em nosso subcontinente exportador de commodities. Uma crise estrutural que se arrasta desde 2008, agudizada pela pandemia do coronavírus, alta inflacionária e crises como a nas cadeias produtivas e no setor imobiliário chinês marcam um outro período da economia mundial, com dificuldades profundas para as economias dependentes latino-americanas. Questiona-se inclusive se o esgotamento dos motores da economia mundial pode de fato ser enfrentado por planos como o projeto de infraestruturas de Biden ou a tão falada transição verde, cuja aplicação não seria isenta de contradições até mesmo ambientais.

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O tom da fala de Lula, celebrativo de uma América Latina de um passado supostamente progressista, humanista, e até mesmo socialista, contrasta com a trajetória de seu partido e com o conjunto de sua campanha eleitoral atual. É impossível compreender o Brasil de Bolsonaro e do pós golpe de 2016 sem ter claro que foi o PT, em sua conciliação por uma suposta governabilidade ao lado da direita, que abriu o caminho para os setores reacionários que o traíram e que vieram protagonizando a política nacional desde então, como a direita fisiológica do Congresso, o agronegócio, as forças armadas, o judiciário e os evangélicos.

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Agora, se por um lado vende falsas promessas de tornar “o Brasil feliz de novo”, por outro busca rebaixar as expectativas dos seus votantes e apoiadores. Lula não se coloca contra as privatizações nem pela revogação das reformas como a trabalhista e da previdência, buscando deixar claro que vai administrar a obra do golpe institucional e dos anos de governo Bolsonaro através do mesmo tipo de alianças com a direita podre que o PT fez no passado. Algo muito ilustrado em suas caravanas para tecer alianças com o Centrão e direitistas da base de Bolsonaro, em seus apertos de mão com imperialismos europeus e na possibilidade de uma chapa com Alckmin, uma das principais figuras do neoliberalismo no Brasil. É sintomático disso que, logo após a viagem, Lula tenha declarado ter pago o FMI durante seus governos e prometido pagar ainda mais, contra qualquer ruptura com esse mecanismo de escravização imperialista central.

Vemos na Argentina de hoje as tendências que irão marcar um possível retorno do PT ao poder após 2022, de que um governo reformista em situação de capitalismo em crise é incapaz de conceder avanços substanciais para as massas, assumindo a tarefa de atacar a classe trabalhadora e o povo pobre ao lado dos capitalistas.

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Nesse cenário, o reformismo se direciona para assumir o protagonismo dos ataques e há uma oposição de extrema direita que não irá desaparecer mesmo se derrotada nas eleições – ao contrário da ideia que o petismo vem disseminando, de que Bolsonaro terá que aceitar o resultado das urnas – como mostrou a invasão ao Capitólio nos Estados Unidos. Essa extrema direita brasileira se fortaleceu nos últimos anos enquanto força militante, mobilizada com todo seu conservadorismo e política reacionária, e como Bolsonaro o foi em 2018, continuará sendo um recurso dos capitalistas para avançarem em seus projetos e descarregarem a crise em nossas costas.

A esquerda, a classe trabalhadora, a juventude e os setores oprimidos devem se preparar e levantar uma saída alternativa, com uma política que questione de conjunto todos os atores burgueses do regime e com um programa de independência de classe, que dê respostas às questões urgentes que vivemos e para que a crise seja paga pelos capitalistas.

O governo Fernández/Fernández vem tendo que lidar com o descontentamento diante das promessas não cumpridas, das políticas repressivas e da continuidade dos ataques do Macrismo. Nesse cenário, a esquerda anticapitalista e socialista reunida na Frente de Esquerda e dos Trabalhadores - Unidade (FITU) conseguiu se alçar à terceira força nacional e eleger uma bancada no congresso, como resultado de uma atuação sistemática ombro-a-ombro na luta de classes e de um programa pró-operário de ruptura com o capitalismo, destruindo as concepções reformistas de que só o que resta é se adaptar à direita, às regras do jogo e às suas instituições, e fazendo um contraponto antissistêmico pela esquerda, que é o único capaz de enfrentar a extrema direita, nas urnas e nas ruas.

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No dia seguinte ao ato do governo argentino, uma mobilização massiva impulsionada pelos parlamentares da FITU junto a outras 100 organizações tomou as ruas de Buenos Aires e de outras cidades do país pelo não pagamento da dívida com o FMI e contra os novos ataques que vêm sendo preparados. Enquanto os políticos da Frente de Todos declaram que “todos os argentinos devem US$1.000 ao FMI”, as organizações que compõe a FITU vieram levantando a necessidade de unidade nas ruas para enfrentar o FMI, os ataques que se desenham, bem como utilizando seus parlamentares – com destaque para Nicolás del Caño, Myriam Bregmann e Alejandro Vilca, dirigentes do PTS, partido irmão do MRT na Argentina e que encabeça essa frente – para fortalecer e unificar cada luta popular, como a rebelião contra a megamineração em Chubut, e denunciar desde o coração da política burguesa cada projeto pernicioso dos capitalistas, seja das mãos do governo ou da oposição de direita, para derrotá-los na luta de classes e impor um programa para que os capitalistas paguem pela crise.

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É impossível enfrentar Bolsonaro e o projeto econômico da burguesia para o Brasil – que não é uma questão secundária e sim o conteúdo central compartilhado por todas as alas da política burguesa, incluindo a bolsonarista – por meio da passividade eleitoral que o petismo impõe através de seu peso nos sindicatos, centrais, entidades estudantis e movimentos sociais, muito menos através de uma oposição meramente eleitoral. Só a partir da luta de classes é possível construir a força mobilizada capaz de derrotar de fato a extrema direita.

A exemplo das batalhas da FITU na Argentina, a esquerda brasileira deveria estar levantando um programa para que os capitalistas paguem pela crise e lutando pela auto-organização, unidade e solidariedade das fileiras operárias ao lado da juventude, dos povos indígenas, negros, das mulheres e LGBTQIs, contra as burocracias que freiam nossa luta e contra os ataques dos capitalistas, seus representantes políticos, de Bolsonaro, dos governadores, dos bonapartismos institucionais como o judiciário, como também do agronegócio reacionário e destruidor de nossos biomas, bem como contra o conjunto das opressões, que são base de sustentação da exploração capitalista.

Nós do MRT, partido irmão do PTS que encabeça a FITU na Argentina, acreditamos que a construção desse tipo de unidade na luta de classes, com independência política frente à conciliação e a burguesia, deve ser a tarefa primordial da esquerda brasileira no próximo período, como preparação para os conflitos maiores que virão.


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Porto Alegre (RS).
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