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CRÍTICA | Lukács está por fora

O pensamento lukacsiano, presente no trabalho de vários críticos e teóricos da literatura dos nossos dias, procura fincar os dois pés no terreno estético, fazendo crer que a contribuição marxista para as questões da arte restringe-se ao legado de Lukács.

domingo 31 de maio de 2015 | 00:00

Cercados por teóricos pós modernos de um lado e por liberais do outro, artistas vêm sofrendo um bocado na hora de definir a sua missão revolucionária. Não tenhamos dúvidas de que o marxismo fornece um poderoso arsenal teórico que auxilia o artista no exercício criativo contra o mundo burguês. Mas eis que um esteta amigo da onça surge para romper o cerco e resolver, aparentemente, todas as questões artísticas postas para o marxismo: a estética de Lukács vem em “socorro" da arte e da literatura, fazendo do realismo a solução unitária dos problemas artísticos. O pensamento lukacsiano, presente no trabalho de vários críticos e teóricos da literatura dos nossos dias, procura fincar os dois pés no terreno estético, fazendo crer que a contribuição marxista para as questões da arte restringe-se ao legado de Lukács.

Para muitos, o filósofo húngaro é a espinha dorsal daquilo que classifica-se como “marxismo ocidental". O objetivo aqui não é realizar uma análise filosófica detalhada e mesmo especializada acerca do pensamento de Lukács (e sua contribuição para o pensamento marxista). O nó da questão está em expor o descompasso da estética lukacsiana com as condições técnicas de produção artística e as necessidades expressivas da rapaziada. O realismo maleta de Lukács não é apenas a perpetuação de uma tara reducionista que concebe a arte como mero reflexo da realidade. A busca pela totalidade na obra de arte, defendida por Lukács, acarreta num tipo de idealismo completamente desconectado das forças produtivas da arte.

Os constrangimentos provocados pela estética policialesca do realismo socialista, fizeram com que vários marxistas migrassem para a ilha sem graça da estética lukacsiana. Será que eles obtiveram um horizonte mais amplo? Entre Zdanov e Lukács existem diferenças. Porém, tanto no culto realizado em torno do "herói do trabalho" quanto na estética clássica lukacsiana, a arte é medida pela régua da normatização. Imobilizando os recursos expressivos ocorre, como apontou Thyago Villela, a canonização do realismo enquanto “estética marxista“(aliás, que se leia a interessantíssima série de artigos sobre realismo socialista, de Thyago Villela, publicada neste mesmo jornal).

O entendimento revolucionário da arte para o marxismo nada tem a ver com a mumificação estética. Os revolvimentos formais da arte nos últimos cem anos e suas relações (ainda que inconscientes em muitos casos) com a revolução proletária, nos levam a compreender que não é a arte que deve dançar conforme a música dada pelo marxismo. É o marxismo que deve ser capaz de ler e interpretar com rigor as manifestações artísticas do mundo contemporâneo naquilo que elas apresentam de progressista, de libertador. Para os marxistas interessados nos problemas artísticos, não basta fixar-se na elementar interdependência entre a arte e a vida social. A relativa autonomia da obra de arte pressupõe também a dimensão interna da forma, que por sua vez está enraizada no desenvolvimento técnico e nas contradições históricas de uma época.

A historicidade das formas artísticas e as possibilidades estilísticas são ignoradas por Lukács, que elege um realismo inflexível enquanto único ponto de partida. Para ele a atitude realista é um procedimento que, especialmente no plano literário, está calcado na tipicidade e num método narrativo convencional. Quer dizer, para os lukacsianos a literatura que o marxismo almeja deve ser “a fiel reprodução de personagens típicos em situações típicas". Esta noção de tipicidade Lukács foi buscar nos esparsos comentários que Engels fez sobre literatura. Sim, no tempo de Engels o realismo embasado na tipicidade e na narrativa objetiva, era a coisa mais quente no campo da literatura. Mas acontece que a História da literatura (e da arte em geral) não é uma botina que passa de um pé para o outro: não tem como pegar uma botina do século XIX para calçar o pé do século XX (e o que dirá o pé do século XXI !). Ou seja, enquanto que na época de Engels o realismo envolvia um conjunto de técnicas que respondia às necessidades expressivas, a arte foi virada de ponta cabeça no século XX: monólogo interior, cinema , fotomontagem, collage além de toda uma gama de transformações culturais que não poderiam fazer com que o escritor criasse como Balzac.

O conceito de realismo é bem mais elástico, não nascendo e não petrificando-se na norma lukacsiana. Não se trata de cair naquela conversa de uma suposta “evolução das formas artísticas". O que existem são transformações, variações estilísticas, que alteram o sentido social da arte perante a dinâmica das novas técnicas. Tão incorreto quanto absolutizar um realismo hierárquico que pesa feito feijoada, é supor que as criações artísticas de uma época não possam influenciar períodos históricos posteriores. Todo artista parte de um material existente, e sua relação dialética com o passado não está no xérox mas na capacidade de reler estéticas que são reinventadas de acordo com novas necessidades, em um novo contexto histórico.
A princípio, o pensamento estético de Lukács é convincente: diante da consciência invertida pelo trabalho alienado, a reconstituição da realidade no plano da obra de arte requer a totalidade; o que cairia como uma luva no realismo oitocentista. Porém, a dinâmica histórica da arte em seu sentido progressista não se contenta com lições de casa. As explosões criativas da arte dos últimos cinquenta anos, nas mais variadas esferas, passam longe da pequena lousa lukacsiana. No Brasil por exemplo, gente como Glauber Rocha e José Celso Martinez Correa não se sentiram nem um pouco atraídos pelo pensamento estético de Lukács. Não é pra menos: violência e experimentação, em tempos violentos e experimentais, não geram apenas novas formas. Se forma e conteúdo não podem ser concebidos separadamente, a obra de arte que pode definitivamente contribuir com a revolução social não é feita de gesso mas sim de pólvora.




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