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Lucro, Preço e Arroz

Caio Silva Melo

Lucro, Preço e Arroz

Caio Silva Melo

A alta no preço dos alimentos, com impacto substancial no Arroz, foi alvo de elogios por parte de Paulo Guedes [1] e do General Mourão [2]. Nesses elogios cínicos, apoiados pelos grandes empresários de supermercados e latinfundiários, como João Sanzovo Neto [3] e a Ministra da Agricultura, Tereza Cristina [4], se expressa um debate econômico de séculos. Karl Marx, o fundador do socialismo científico, já enfrentava discursos semelhantes sobre a alta dos alimentos e respondeu com um método que nos permite até hoje analisar os elementos por detrás da elevação dos preços dos alimentos.

Salário, Preço e Lucro [5]

Em 1865, em um debate do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores, a I Internacional, Karl Marx expôs sucintamente as recentes conclusões que dois anos depois estariam na sua obra-prima O Capital. Em um debate se a posição da Internacional deveria ser a favor dos aumentos salariais, Karl Marx já tem que se enfrentar com posições eminentemente liberais que associam os preços somente à situação da Oferta e Demanda. Realizar esse debate nas instâncias internas da Internacional demonstram que não é só agora que a ideologia burguesa busca influenciar os trabalhadores e seus dirigentes sindicais, desde o início da organização dos trabalhadores em sindicatos a ideologia burguesa dominante, que no campo da economia é associado ao liberalismo, já precisava ser combatida e Marx dedicou uma intensa e brilhante obra a esse propósito.

Começando pela questão do aumento dos preços de itens de primeira necessidade, Marx questiona:

“É inteiramente certo que a classe operária, considerada em conjunto, gasta e será forçosamente obrigada a gastar a sua receita em artigos de primeira necessidade. Uma alta geral na taxa de salários provocaria, portanto, um aumento da procura de artigos de primeira necessidade e, consequentemente, um aumento de seus preços no mercado. Os capitalistas que produzem estes artigos de primeira necessidade compensariam o aumento de salários por meio da alta dos preços dessas mercadorias. Mas que sucederia com os demais capitalistas que não produzem artigos de primeira necessidade?”

Um aumento na renda, seja salarial, seja em benefícios, para a classe operária, forçaria logo de início a um aumento na procura dos itens de itens alimentícios, e consequentemente dos preços desses itens e dos lucros dos capitalistas detentores desses itens, mas como se comportaria o restante dos capitalistas?

“Não poderiam compensar a queda na taxa de lucro, após uma alta geral de salários, elevando os preços de suas mercadorias visto que a procura destas não teria aumentado. A sua renda diminuiria; e com esta renda diminuída teriam de pagar mais pela mesma quantidade de artigos de primeira necessidade que subiriam de preço. Mas a coisa não pararia aí. Diminuída a sua renda, menos teriam para gastar em artigos de luxo, com o que também se reduziria a procura recíproca de suas respectivas mercadorias. E como consequência desta diminuição da procura, cairiam os preços das suas mercadorias. Portanto nestes ramos da indústria, a taxa de lucros cairia, não só em proporção simplesmente ao aumento geral da taxa de salários, como, também, essa queda seria proporcional à ação conjunta da alta geral de salários, do aumento de preços dos artigos de primeira necessidade e da baixa de preços dos artigos de luxo.”

Esse deslocamento de mercado causaria um deslocamento de capitais e trabalho.

“Qual seria a consequência desta diferença entre as taxas de lucro dos capitais colocados nos diversos ramos da indústria? Ora, a mesma que se produz sempre que, seja qual for a causa, se verificam diferenças nas taxas médias de lucro dos diversos ramos da produção. O capital e o trabalho se deslocariam dos ramos menos remunerativos para os que o fossem mais; e este processo de deslocamento iria durar até que a oferta em um ramo industrial aumentasse a ponto de se nivelar com a maior procura e nos demais ramos industriais diminuísse proporcionalmente à menor procura. (...) Isto quer dizer que, depois de transtornar temporariamente os preços do mercado, a alta geral da taxa de salários só conduziria a uma baixa geral da taxa de lucro, sem introduzir nenhuma alteração permanente nos preços das mercadorias.”

Marx capta o movimento geral da relação, considerando somente oferta, demanda, preço, salário e lucro. Esse movimento é fundamental para compreendermos que um aumento real dos salários pressiona o lucro, nos exemplos trabalhados por Marx são relatadas situações de aumento salarial de 20% ou 100%, algo inimaginável para nossos dias, mas relativamente frequentes para uma Europa convulsionada em meados do século XIX e que não inviabilizam que pensemos esses elementos para os dias atuais.

A primeira pergunta que temos que fazer é: houve aumento salarial para os trabalhadores brasileiros? Segundo o IBGE, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, é estimada uma redução média dos rendimentos recebidos em 13%, sendo que antes da pandemia os rendimentos médios giravam em torno de R$2300,00 e agora estão em torno de R$2000,00. Esse dado é apenas a média de todos os rendimentos de todos os trabalhadores, mas nesse quesito houve uma redução clara. [6]

Mesmo com a queda dos rendimentos que tanto Paulo Guedes quanto o General Mourão sabem que ocorreu, ainda poderíamos considerar a hipótese do vice-presidente de que o culpado seria o auxílio-emergencial. Embora não tenhamos um levantamento real que analise o impacto desse auxílio em relação à renda que as pessoas obtinham antes da pandemia, se olharmos sob o prisma que Marx narra acima, os alimentos básicos em geral teriam sido impactados pelo aumento no consumo e consequente aumento nos preços, entretanto, arroz e outros cereais acumulam alta de quase 20% em um ano enquanto farinhas, açúcares, pescados e carnes sequer chegam a um aumento de 5%, a desculpa agora seria de que o “vírus chinês” dá maior fome de arroz? [7]

A metodologia estabelecida por Marx nos dá vazão para também olhar sob o ângulo da demanda: se a produção de arroz estiver caindo, talvez se justifique o aumento nos preços. Nos últimos 20 anos a produção tem se mantido estável, acima de 10 milhões de toneladas, alternando entre picos de 13 milhões e vales de 11,5 milhões nos últimos 10 anos. Mesmo se considerarmos que a população cresceu nesse período, por que o arroz não subiu antes? [8]

Se nem o salário e nem o consumo de arroz subiram, ou até mesmo houve uma queda na produção, o que justifica o aumento no preço do arroz? Diversos elementos colaboraram para a alta no preço do arroz: o dólar alto, o que traz maiores ganhos para a exportação do grão; o desmantelamento dos estoques públicos de regulação de alimentos, através da CONAB; e uma política de franco incentivo à expansão latifundiária sem precedentes, que inclusive é parte da sanha pelo desmatamento sem limites.

Todos esses elementos são discutidos mais profundamente no podcast Peão 4.0 – Arroz sobe, salário desce: por quê?

Nesse sentido, a relação estabelecida por Marx se inverteu. Se ao invés do aumento de preços ter sido ocasionado por um aumento salarial que pressionou a taxa de lucro para baixo, foi a taxa de lucro que aumentou com a desregulamentação do mercado de alimentos e o dólar disparado, fazendo com que haja um “equilíbrio de mercado” do preço daqui com o do arroz vendido em dólar. Numa hipótese 2010 do quilo do arroz no exterior ficou estagnado em 1 dólar, os ganhos de um produtor que exporta 1 tonelada de arroz passaram de R$2 000,00 em 2010 para R$5 000,00 2020, sem que o produtor tenha produzido mais ou menos que antes. Praticamente os exemplos dados por Marx sobre aumentos salariais de 100% no século XIX se inverteram para um aumento dos ganhos dos produtores de arroz de 150% em 10 anos, e quem perde é o trabalhador do século XXI, que não tem o salário reajustado e até perde seu emprego.

O debate sobre a inflação, ou o aumento dos preços para os trabalhadores em contraposição ao lucro dos capitalistas, estavam claros desde os primórdios do capitalismo. Muito embora os Estados Capitalistas tenham criados mecanismos (capitalistas) de controle de preços e do abastecimento, o fantasma dos trabalhadores com fome já estampa notícias na mídia burguesa, não sem motivo. Se em 2018 já se constatava o aumento do risco alimentar, na pandemia esse risco aumentou devido à queda na renda e no acesso à escola, sendo coroado agora com o significativo aumento de vários alimentos, incluindo o arroz.

A explicação de Marx sobre a relação entre salário e preços não é válida somente em seu referencial metodológico, a conclusão do texto “Salário, Preço e Lucro” dá uma orientação clara e precisa sobre a tarefa da classe trabalhadora e de seus representantes sindicais para que as lutas do passado, do presente e do futuro não se limitem ao estreito horizonte das conquistas possíveis no capitalismo:
“ Os sindicatos trabalham bem como centro de resistência contra as usurpações do capital. Falham em alguns casos, por usar pouco inteligentemente a sua força. Mas, são deficientes, de modo geral, por se limitarem a uma luta de guerrilhas contra os efeitos do sistema existente, em lugar de ao mesmo tempo se esforçarem para mudá-lo, em lugar de empregarem suas forças organizadas como alavanca para a emancipação final da classe operária, isto é, para a abolição definitiva do sistema de trabalho assalariado.”


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Caio Silva Melo

Economista, estudante de direito e técnico do IBGE.
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