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CINEMA | Jogos Vorazes: a revolução como “golpe de efeito”

Depois da Primavera Árabe e as manifestações da juventude e dos trabalhadores que têm ocorrido em vários cantos do globo nos últimos anos, a ideia da revolução volta aos poucos a fazer parte do imaginário popular. O tom do terceiro filme da série “Jogos Vorazes” expressa um pouco esse novo espírito de época, mas como um bom “blockbuster” de Hollywood, sem deixar de lado todo o ranço com o qual a ideologia da classe dominante quer cobrir essa ideia.

quarta-feira 26 de novembro de 2014 | 12:33

Há alguns anos a ideia de revolução cada vez mais deixa de existir apenas em livros de história e entre a esquerda para se tornar algo capaz de suscitar paixões e esperanças em amplos setores de explorados e oprimidos. Depois que as massas tomaram a Praça Tahrir no ápice da Primavera Árabe, e as manifestações da juventude e dos trabalhadores se espalharam como um rastilho de pólvora por todos os cantos do globo, já não é mais tão fácil convencer a todos que é impossível virar esse mundo de cabeça para baixo, tirando os privilegiados e poderosos de nossas costas.

Sem dúvida, o tom do terceiro filme da série “Jogos Vorazes” expressa um pouco desse novo espírito de época. Em Panem, uma sociedade futurista onde a miséria é segregada em diferentes regiões denominadas “distritos”, separados da classe dominante que habita a “capital”, o filme expressa o despertar da ira dos que foram relegados à miséria, oprimidos em uma ditadura sanguinária. Ainda que pertença a essa nova época, “Jogos Vorazes” se inclui em uma já longa tradição de filmes de ficção científica onde “a luta do bem contra o mal” se expressa na luta de dominados e dominadores em sociedades tirânicas. Os exemplares mais famosos dessa tradição são, provavelmente, as duas trilogias de “Guerra nas Estrelas” e a trilogia “Matrix”.

“Jogos Vorazes – A Esperança” é emblemático em relação à forma como a revolução é apropriada por um “blockbuster” de Hollywood, que atingiu já com seu primeiro episódio uma das 65 maiores bilheterias da história do cinema. A luta das massas exploradas dos distritos contra a capital é, logo de cara, tratada como uma questão a ser decidida, em grande medida, nas negociações entre a presidenta do Distrito 13, Coin (Juliane Moore), seu conselheiro Plutarch (Philip Seymour-Hoffman) e a protagonista-heroína Katniss Everdeen (Jennifer Lawrence). Ao abrigar Katniss no Distrito 13 após seu resgate dos Jogos, a presidenta Coin quer convencer a jovem a usar seu prestígio adquirido após sua dupla vitória no cruel “Reality-show” Jogos Vorazes, para incitar a guerra contra a Capital. Mais do que um programa, os Jogos Vorazes foram uma forma dos governantes da Capital imporem seu governo sobre os distritos, dividindo-os e submetendo-os.

Os diálogos entre os mandantes do Distrito 13 e Katniss são bastante ilustrativos do tipo de ideia de revolução que o filme constrói, bem como a tentativa de filmarem uma “propaganda” da luta revolucionária com Katniss em um estúdio. Ao convencer Katniss a encarnar o símbolo da rebelião, o Tordo, Coin e Plutarch esperam ganhar a adesão popular massiva para enfrentar o presidente da capital, Snow. Ao não conseguirem a “espontaneidade” desejada na atuação de Katniss na propaganda, acabam optando por fazer uma gravação “ao vivo” no Distrito 8. A presença de Katniss em um precário hospital de guerra gera grande esperança nos feridos, mas também atrai a atenção do presidente Snow, que manda bombardear o hospital como um exemplo do que ocorrerá com quem se associar a Katniss. Em sua ira contra o bombardeio, Katniss fornece uma gravação mais autêntica para recrutar voluntários para a rebelião; que isso tenha se dado ao custo de centenas de vidas, parece não ser muito relevante para os mandantes do Distrito 13 ou mesmo para a talentosa diretora do vídeo, uma jovem rebelde que voluntariamente fugiu da Capital para se juntar ao exército insurgente.

A ideia de que a vitória de uma insurreição possa se dar pelo sucesso ou não de seu “marketing” parece casar muito bem com uma concepção que se procurou exaustivamente vender às massas após os primeiros levantes da Primavera Árabe: a de que os atos que derrubaram o regime de Mubarak e fizeram façanhas semelhantes em diversos países aconteceu de forma completamente espontânea, e devem sua vitória à organização possível apenas por eventos organizados no Facebook. Assim, se substitui o protagonismo das massas insurretas pelo das mídias digitais, como se elas, por si mesmas, fossem capazes de derrubar ditaduras instauradas há décadas. O acordo entre Coin e Katniss para dar às massas um Tordo que as conduza à vitória, independentemente de qualquer outra questão, reforça a ideia de que não são os explorados os verdadeiros protagonistas de suas lutas, mas sim os artifícios midiáticos de dois ou três “marqueteiros” bem preparados.

Outro ingrediente clássico que é explorado exaustivamente no filme é o do motivo amoroso. Katniss, a princípio, concorda em liderar a rebelião apenas para tentar salvar seu amor, Peeta, que foi levado para a Capital. O tema da relação amorosa e da paixão, que leva Katniss a hesitar em decisões importantes, ou Coin a elaborar um arriscado plano de resgate, é um motivo que motoriza a luta revolucionária no enredo do filme muito mais do que o próprio sofrimento das massas nos distritos (suas greves são apenas citadas, seus rostos – majoritariamente negros – são apenas coadjuvantes).

No centro da trama está o indivíduo, o herói capaz de mudar o destino por suas capacidades singulares. É uma forma burguesa, por excelência, que coloca como sujeito da história o “indivíduo genial”. Nisso, também, “Jogos Vorazes” adere à tradição dos blockbusters de ficção científica à qual pertence: como Neo em “Matrix” ou Luke Skywalker em “Guerra nas Estrelas”. O personagem que, movido pelo amor, toma a causa da luta coletiva em suas mãos, encontra um paralelo em Han Solo, que se junta à luta contra o Império graças à sua paixão pela Princesa Léia. No lado do “mal” e da “tirania” também não são coletivos, mas indivíduos que decidem os rumos: seja o Presidente Snow, Darth Vader e Palpatine ou o vilão Cypher de “Matrix”.

Sendo o filme com a maior estreia em solo nacional, com 1400 salas o exibindo, “Jogos Vorazes – A Esperança” levará o tema da revolução ao imaginário de alguns milhões. Resta saber se estes o tomarão para se colocarem como protagonistas de sua luta, ou, como quer o filme, à espera de algum messias que os liberte.


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