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ENTREVISTA | João Nery: "Respeitar a diversidade sexual tem que ser um exercício diário"

João W. Nery, 65 anos, considerado o primeiro homem transexual a ser operado no Brasil, é também conhecido por seu livro autobiográfico Viagem Solitária – Memórias de um transexual trinta anos depois, da editora Leya. Um grande lutador que deu nome a PL que defende o reconhecimento ao direito da identidade de gênero, nos concedeu a entrevista a seguir.

segunda-feira 6 de abril de 2015 | 00:02

Esquerda Diário: Seu livro chamado Viagem Solitária conta sua trajetória de vida, demonstrando as profundas dificuldades para se construir sua identidade de gênero. Como foi escrever essa história? Qual a importância que você vê nessa publicação?

João Nery: Viagem Solitária é uma releitura mais completa do meu primeiro livro, Erro de Pessoa, publicado em 1984 quando eu tinha somente 27 anos. Minha identidade de gênero foi construída desde os 4 anos de idade quando me identifiquei com o gênero masculino.
Escrever uma autobiografia é sempre doloroso, onde exige memória e desprendimento de pudores que poderiam falsear o que se viveu. Não foi um ato catártico, mas premeditado, com a finalidade de não só esclarecer o que um transexual vive, como também poder ajudar outras pessoas.

ED: No final do mês de Fevereiro, você participou do I Encontro Nacional de Homens Trans (ENAHT). Quais foram suas impressões do Encontro? Quais os desafios para o movimento de homens trans?

João Nery: O encontro promovido pelo IBRAT – Instituto Brasileiro de Transmasculinidades, foi altamente positivo no sentido de não só dar maior visibilidade aos homens trans, como tomar deliberações importantes. Incluímos também os não-binários que se identificam com o gênero masculino. Nossa luta é por cidadania, pela aprovação da lei de identidade de gênero – projeto de lei João W Nery, pela despatologização das identidades trans, por maior oferta de trabalho, por ampliação do número de SUS que atende trans ( hoje só tem 5 em todo Brasil) entre outras.

ED: O projeto de Lei apresentado pelo deputado do Rio de Janeiro, Jean Wyllys, carrega o seu nome (PL 5002/13 João Nery). O que propõem esta lei e qual sua situação atual para aprovação?

João Nery: O projeto de lei garante o direito do reconhecimento à identidade de gênero de todas as pessoas trans no Brasil (mudança de prenome e gênero), sem necessidade de autorização judicial, laudos médicos ou psicológicos, cirurgias ou hormonioterapias. Garante a exclusão de problemas ao indivíduo no processo de mudança, preservando todo o histórico de vida, assegurando o acesso à saúde no processo de transexualização e despatologizando as transindentidades para a assistência médica. Também preserva o direito à família frente às mudanças registrais.
No momento se encontra no Congresso para ser submetido à aprovação de comissões, e depois ir a plenário.

ED: A Parada Gay está se aproximando. O tema deste ano foi muito polêmico "Eu nasci assim, eu cresci assim, vou ser sempre assim: respeita-me!". Você participará da Parada deste ano? Qual sua visão sobre o papel da Parada Gay hoje para o Movimento LGBT?

João Nery: A Parada é do Orgulho LGBT, não é somente Gay. E é isso uma das coisas que precisa ser mais trabalhada, dando visibilidade às outras letras da sigla. Outra questão é torná-la mais política, no sentido de propor uma maior conscientização dos próprios participantes do que eles precisam reivindicar.
Não sei se irei à parada, pois devo evitar multidões, já que tenho problemas de locomoção.
A Parada, sobretudo a de São Paulo é o acontecimento popular principal no país, pela quantidade de pessoas que participam, pela veiculação da mídia, alcançando um grande público cisgênero e heterossexual.

ED: No final do ano passado foi lançado um importante livro chamado Ditadura e Homossexualidade: repressão, resistência e busca da verdade. Você vivenciou as dificuldades de construir sua identidade em meio ao regime ditatorial. Como você vê a transfobia naquela época e o que se mantém na democracia de hoje?

João Nery: Na minha época a sigla LGBT nem a palavra transfobia ou gay não existiam, embora sempre houve a prática discriminatória, talvez mais dissimulada. A censura na mídia impedia que o tema fosse falado, o que fazia com que muitxs travestis e transexuais nem se identificassem como tal, por desconhecerem essas identidades, como foi o meu caso. Todo mundo era classificado como “homossexual” ou “entendido” (expressão usada entre nós). Éramos vistos como pervertidos, degenerados, doutrinados por “comunistas” e perigosos porque poderíamos “contaminar” outros jovens. Depois surgiu o termo “transformista” para se referi aos atores que se “transformavam em mulher” em alguns poucos teatros marginais.
Em nome da moralidade cristã e das tradicionais famílias, promoviam uma higienização (os esportes eram incentivados para se ter um corpo são) em todos os estados, uma verdadeira caça, sobretudo às travestis, que trabalhavam na pista, o que pode ser comprovado no relatório da Comissão Nacional da Verdade – CNV, no capítulo sobre a violência contra os LGBTs. As passeatas existentes de rebeldia eram somente contra à ditadura.
Por outro lado, os movimentos de “esquerda” também eram altamente machistas e sexistas. Não permitiam que um guerrilheiro fosse homossexual. O único que se assumiu na época foi o meu amigo Hebert Daniel, que morreu jovem por ser soropositivo. A possibilidade de sair do armário era muito remota. A transfobia permanece, só que agora, mais denunciada e enfrentada. Respeitar a diversidade sexual tem que ser um exercício diário trabalhando com todas as instituições, inclusive educando também a mídia.
O Brasil é hoje o país que mais mata no mundo pessoas trans e homossexuais, numa média de quase um por dia. O que se constata e a repetição de uma ideologia cristã evangélica ortodoxa, que continua perseguindo os “desviados”, impedindo que sejam criadas leis que punam a homo/transfobia.




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