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CULTURA | Indústria cultural e patrulha ideológica

Consagrado pelos pensadores Adorno e Horkheimer na obra Dialética do Esclarecimento, o conceito de indústria cultural passou a fazer parte do vocabulário dos marxistas interessados em questões estéticas, nos meios de comunicação de massa e no conjunto dos fenômenos culturais do capitalismo avançado. Ainda que seja dose concordar com as conclusões pessimistas (e idealistas) presentes na obra de vários autores da chamada Escola de Frankfurt, o fato é que não podemos ignorar a presença ideológica de uma produção em série de bens culturais cujo objetivo é tornar-se um prolongamento do trabalho alienado, um elogio da rotina na sociedade capitalista.

quinta-feira 22 de setembro de 2016 | Edição do dia

O processo de homogeneização estética na indústria cultural seria um poderoso laço do sistema que asseguraria sofisticadas formas de dominação, exprimindo na esfera da cultura o poder político dos economicamente mais fortes. Não haveria saída: toda e qualquer forma de rebelião expressa na política ou na arte estaria fadada ao fracasso, à neutralização, à assimilação numa sociedade de massas, em que a classe operária não seria mais revolucionária. Alto lá! A história não é uma avenida fechada! Se o capitalismo migrou (em parte) da fábrica para o coração/mente dos homens, as contradições econômicas e políticas que regem a realidade não garantem que a cultura da alienação seja intocável. Não apenas o edifício balança quando o alicerce é abalado, como o próprio movimento dialético se faz presente na industrialização da cultura; permitindo inclusive nas brechas da realidade a presença das experiências artísticas de caráter subversivo.

Não somente a luta de classes existe como as práticas políticas e culturais em torno da classe trabalhadora podem colocar em cheque o sistema. Não compreender este dado histórico é se fechar para o pensamento revolucionário e logo negar o marxismo. Seria de uma grande irresponsabilidade política ficar trancado nas alturas do pensamento crítico, não enxergando as possibilidades comunicativas das novas tecnologias e sendo negligente com o campo da luta cultural: esta é uma esfera necessária no combate anticapitalista. Quem disse que Adorno possui a última palavra sobre indústria cultural? Um marxista tem certamente muito mais a ganhar com as reflexões de Walter Benjamin, contemporâneo de Adorno. Diferentemente daqueles que enxergam na cultura atual um pesadelo sem saída, Benjamin já observava nos anos 30 que as mudanças tecnológicas aproximam a obra de arte das massas. Séculos de elitismo caem por terra com o desenvolvimento da reprodutibilidade técnica: a imagem e a palavra escrita estão historicamente mais próximas da vida dos trabalhadores, o que contribui com a possibilidade de transformações na consciência. Benjamin situa as questões estéticas e políticas presentes na industrialização da cultura, através da luta de classes: se o capital controla a cultura disseminada pelos meios de comunicação de massa, cabe aos comunistas fazerem um uso progressista dos aparelhos de produção cultural (é preciso utilizar meios de produção culturais independentes).

Olhando para os nossos dias, Benjamin chega a ser profético: enquanto que o rádio e a televisão contribuem, pelo seu funcionamento/mecanismo, com uma atitude passiva do ouvinte/espectador, possibilitando assim a manipulação de massa exercida pelo grosso da indústria cultural(confirmando assim o entendimento que Adorno tinha do assunto), as novas tecnologias digitais permitem que o público seja autor e portanto criador de uma produção cultural de contestação: pela internet o poema, a canção e o filme podem cumprir um papel político revolucionário. Benjamin olhou para frente: encarou sem medo os olhos Mickey Mouse, vislumbrou as possibilidades revolucionárias do cinema e do rádio, ouviu a música do jazz, caminhou pelas galerias da cidade grande, embriagou-se e constatou que dentro da pança do monstro capitalista uma cultura revolucionária é possível e necessária: o teatro de Brecht e o desbunde dos surrealistas seriam partes desta subversão cultural. A posição de Benjamin é a de um livre pensador. A liberdade e a mobilidade mental de Benjamin precisam ser usadas para combater carolinhas da esquerda, ou seja, os patrulheiros ideológicos que não sabem olhar para a cultura do nosso tempo.

Nota-se historicamente em alguns militantes de esquerda, um puritanismo que vira e mexe acarreta numa atitude de vigilância, de regulação do comportamento de muitos trabalhadores e estudantes. Este é um problema histórico que não apenas afugenta as pessoas da luta anticapitalista, como revela um sentimento sectário entre aqueles que julgam estar acima da alienação na cultura. Reconhecer os mecanismos de manipulação da indústria cultural, não coloca um marxista como alguém que não vive neste planeta; pelo contrário: além de ser alguém que vai ao banheiro, sorri, chora e sente tesão, o comunista vive num mundo em que a indústria cultural se faz presente; inclusive na sua própria vida e na vida das pessoas com as quais ele se relaciona. Assistir novela/seriado, ir ao cinema para assistir alguma bobagem hollywoodiana, ser atingido nos olhos e nos ouvidos por anúncios e propagandas, beber refrigerante, mastigar um hambúrguer, devorar batatinha frita, fazem parte da rotina nas cidades capitalistas.

Para um comunista isso tudo seria uma contradição ideológica? Não, contraditório é não assumir, viver, compreender e encarar o modo de vida capitalista que causa danos não apenas econômicos (a exploração e a miséria) mas espirituais. É vivendo, experimentando e conhecendo este mundo, que o militante age/pensa na contramão, inserindo dialeticamente a informação revolucionária. Concessão significa aceitar e não vislumbrar a possibilidade de superação histórica deste sistema. Lutar não significa se comportar como um santo que não se deixa tocar pelas tentações da indústria cultural: é somente conhecendo as formas de alienação da indústria cultural que podemos combate-la.

Uma atitude crítica deve nascer da práxis. Olhando concretamente para aquilo que atrai as massas, o militante socialista (que possui a cuca aberta) não deve ser nem patrulheiro e nem morador da torre de marfim: este militante concentra as energias artísticas revolucionárias no movimento dialético da industrialização da cultura.


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