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As primeiras atrizes a denunciar o produtor Harvey Weinstein por assédio sexual questionaram a festa dos Globo de Ouro, onde a campanha #MeToo foi o centro da cerimônia. Na França, 100 mulheres famosas questionaram também alguns aspectos dessa campanha em um manifesto.

Andrea D’Atri@andreadatri

quinta-feira 11 de janeiro de 2018 | Edição do dia

Rose McGowan, Asia Argento e Rosanna Arquette disseram que a festa do Globo de Ourofoi “uma farsa” e que não foram convidadas. Na sua conta no Twitter, Asia escreveu sobre McGowan: “Ninguém deveria esquecer que você foi a primeira a romper o silêncio”, ao que a atriz de Scream respondeu: “E nenhuma dessas estrelas que hoje vestem preto para honrar nossos estupros moveria um dedo se não fosse assim (ter acabado com o tabu). Não tenho tempo para a farsa de Hollywood”.

Passados apenas alguns dias da festa onde Oprah fez um discurso que impactou nos meios e nas redes sociais do mundo todo, hoje se sabe que suas palavras também impactaram em seu bolso: as ações de uma empresa de dietas da qual ela é acionista (um item do qual temos muito para falar se enfrentamos os mandatos patriarcais) dispararam e lhe permitiram embolsar 40 milhões de dólares a mais para sua já volumosa conta.

“#MeToo foi a voz que denunciou algo que “todos sabiam” que acontecia, mas ninguém se atrevia a dizer publicamente. A luta das mulheres contra a violência e por seus direitos fez com que milhares de mulheres já não se calem frente aos abusos. Nem as famosas.”

Simultaneamente, do outro lado do Atlântico se alçaram as vozes de francesas famosas que apoiaram as denúncias contra a violência sexual de suas colegas, mas questionaram alguns aspectos do movimento hollywoodiano: “Desde o caso Weinstein se deu uma tomada de consciência sobre a violência sexual exercida contra as mulheres, especialmente no marco profissional, onde certos homens abusam de seu poder. Isso era necessário. Porém essa liberação da palavra se transforma no contrário: nos é imposto falar de determinada forma e calar o que nos incomoda, e quem se nega a se dobrar frente a essas ordens é vista como traidora ou cúmplice”, sustentaram em seu manifesto. “O estupro é um crime. Mas a sedução insistente ou torpe não é um delito, nem a paquera é uma agressão machista”, afirmam as francesas, entras as quais se encontra a legendária estrela Catherine Deneuve.

Riscos de puritanismo

#MeToo foi a voz que denunciou algo que “todos sabiam” que acontecia, mas ninguém se atrevia a dizer publicamente. A luta das mulheres contra a violência e por seus direitos fez com que milhares de mulheres já não se calem frente aos abusos. Nem as famosas.

Mesmo que as francesas reconheçam a tomada de consciência sobre a violência contra as mulheres e o abuso de poder de certos homens da indústria, seu manifesto foi apresentado, maliciosamente, por alguns meios, como um pronunciamento “contra #MeToo” ou como uma “reação à revolução feminista” de Hollywood. E hoje, muitos o enaltecem, nas redes sociais para criticar o feminismo, para questionar a luta das mulheres contra a violência e zombar das vítimas.

Mas para além das diversas ideologias e adesões políticas das francesas – que acertadamente advertem suas colegas norte-americanas do perigo de dar crédito a uma “moral vitoriana” – , as europeias colocam sobre a mesa um debate necessário que está se desenvolvendo nos âmbitos do ativismo.

Poucos dias antes do Globo de Ouro, na LatFem, Mariana Marash escreveu: “A pergunta incômoda: estamos promovendo mais tabus? (...). Os perigos que corremos são os de confundir a luta por atitudes e direitos com construção de medos. (...). Nada disso dá direito ao assediador, abusador ou estuprador. Mas também não queremos que nossa meta de liberdade sexual se veja minada de terrores expandidos. Uma crise de pânico coletiva – milhares e milhares de botões de pânico soando juntos e ao mesmo tempo – pode nos levar sem escalas à era vitoriana ou a soltar uma petição via change.org”.

A escalada à que fazia referência a jornalista já tem sua expressão no terreno da arte, onde as insólitas consequências da “correção política” vão desde o pedido de que retirem uma pintura de Balthus do Museu Metropolitano de Nova Iorque por ser perturbadora, até a estreia de uma nova versão da clássica ópera Carmen de Bizet, onde a protagonista não morre, porque nessa época “é inconcebível aplaudir o assassinato de uma mulher”.

Certezas de hipocrisia

Mas as denúncias seriais das famosas, ao mesmo tempo que dão notoriedade ao tema da violência contra as mulheres, também correm o risco de banaliza-la. Quando um comportamento machista de um produtor ou diretor de cinema famoso, impedido em tempo por uma atriz milionária, adquire maior dimensão que um feminicídio, um estupro ou um abuso sexual, as que perdem – mais uma vez – são as mulheres anônimas, especialmente as vítimas das formas mais cruéis em que se manifesta a violência machista. Perdemos quando isso permite a instituições como Hollywood, passar um pano e posar escandalizados quando toda sua estrutura se apoia na discriminação das mulheres e os abusos de poder são moeda corrente.

“Numa sociedade como a que vivemos – onde 8 homens possuem uma riqueza equivalente ao que 3,5 bilhões de pessoas tem para sobreviver – , há algumas denúncias contra a violência patriarcal que permitem que subam suas ações na Bolsa e outras denúncias que nunca serão escutadas.”

Perdemos quando as luzes apontam para Hollywood e deixam na penumbra a batalha contra a violência, essa da qual somos vítimas persistente e cotidianamente no âmbito doméstico, no trabalho, nas ruas, nas mãos das relações mais íntimas, de desconhecidos, da patronal que vive às custas de nossa exploração, das instituições do regime político, do Estado.

Numa sociedade como a que vivemos – onde 8 homens possuem uma riqueza equivalente ao que 3,5 bilhões de pessoas tem para sobreviver – , há algumas denúncias contra a violência patriarcal que permitem que subam suas ações na Bolsa e outras denúncias que nunca serão escutadas.

Não terão eco porque nem sequer podem ser pronunciadas por essas mulheres que tem o trabalho precarizados, que recebem menos que seus colegas homens que são despedidas quando denunciam abuso do supervisor ou chefe, que morrem silenciosamente em abortos clandestinos ou em partos complicados sem a mais mínima atenção médica. Mulheres cujas costas foram arqueadas pelas agressões físicas de seus parceiros, mas também pelos ritmos de produção frenético, pelas pesadas tarefas domésticas não pagas e pelas condições insalubres nas quais transcorrem suas vidas cotidianamente.

Esse sofrimento de milhões de mulheres não é lucrativo para Hollywood, nem para a indústria francesa nem para os meios que hoje publicam essas denúncias, mas amanhã voltarão a mercantilizar o corpo das mulheres, a vender produtos de limpeza com donas de casa estereotipadas e gerar milhões de dólares com romances fantasiosos. Nossa batalha contra a violência às mulheres também os encontra do outro lado da trincheira.

Traduzido por Marília Rocha




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