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Crônica escrita por uma trabalhadora da assistência social em meio a crise sanitária nas periferias.

terça-feira 13 de abril de 2021 | Edição do dia

Me preparo para mais um dia de trabalho...máscara, protetor de face, álcool gel que eu mesma comprei para me proteger, como trabalhador da política de Assistência Social, sigo para mais um dia de visita domiciliar.

Já subi e desci muitas vezes aquelas ruas de terra batida abertas na base do facão, onde cortaram os matos, para conseguirem um pequeno espaço para morar e em nenhuma hipótese consigo ver normalidade em não terem uma moradia com saneamento básico e o mínimo de infraestrutura...nunca rei aceitar, nem naturalizar essa realidade!

Hoje, a visita é na casa da D. Maria, lá no alto, trajeto cheio de obstáculos, nenhum maior que a dor de ver a fome estampada no rosto de quem encontro pelo caminho... mas sigo, pois sei meu trabalho nesse sistema falido é uma das formas dessas famílias encontrarem a possibilidade de acessarem direitos, que deveriam ser de primeira ordem para a dignidade humana. E essa conta, a por direitos, já está paga pelos impostos e arrecadação desses governos capitalistas que, ainda, estão hegemônicos.

Depois de 20 minutos árduos, que enfrentei ali, pontualmente por conta da visita social, já imaginei rapidamente como deve ser subir, descer, subir e descer novamente, toda vez que precisar de algo que a vida objetiva e subjetiva necessita, não! Isso não está, e não deve estar nos planos.

Enfim chego à casa da D. Maria, nasceu com deficiência na fala, para compreendê-la é necessário muita atenção, sempre se virou para sobreviver, vendendo sua força vital por trocados, para não passar fome, e agora aos 67 anos de (r)existência, dos quais boa parte viveu em situação de rua, e outra sendo explorada como empregada doméstica, vai me contando das mazelas da sua vida...mora com o filho de 15 anos num cômodo feito com restos de madeira, sem água e sem energia elétrica...
“Eu e o menino desce o morro todo dia para buscar água na lata...aqui nóis é tudo esquecido, dá uma melhorada na época de eleição, depois volta tudo ao normal...”
Penso, fico indignada, e isso reforça aquela ideia... Não! Não tem nada de normal nisso. A ideia de que uns (poucos) mandam, e outros (a maioria) obedecem, tem que ser superada. Trabalhemos para isso.

(...)Lata d’água na cabeça; lá vai Maria, lá vai Maria; sobe o morro e não se cansa; pela mão leva a criança; Maria lava roupa lá no alto; lutando pelo pão de cada dia; sonhando com a vida do asfalto, que acaba onde o morro principia(...)

E como você tem feito para sobreviver? (Embora já esteja vendo que o capitalismo cumpriu seu papel direitinho com essa mãe preta, como ele lhe roubou a saúde e lhe colocou num canto esquecida, só lembrada quando a necessidade a coloca para vender sua força vital, por trocados, esquecida pela Previdência Social brasileira, desassistida por todas as políticas públicas).

Tô indo pedir na rua, eu e meu filho... muitas vezes tenho que me prostituir, me envergonho disso, mas não tem o que fazer, eu e ele precisa comer, não posso morrer e deixar ele sozinho... posso confiar em você né minha filha? Porque se o conselho tutelar sabe disso leva meu menino embora, não quero, não consigo viver sem ele, ele é minha responsabilidade.

Analiso os documentos, conversamos, faço uma pergunta ou outra...mais escuto do que falo...Dona Maria tem muita história para contar...a imensa maioria delas, tristes.

Mas constato que ela tem direito ao benefício assistencial para pessoa idosa ou deficiente que esteja em situação de miserabilidade, e não é de hoje, a maior parte da vida dela foi vivenciada em situação de miserabilidade... ainda que tal benefício não irá suprir todas as necessidades da D. Maria, talvez “aliviem”. Mas esse tipo de alívio, não consigo naturalizar como suficiente.

Aproveito para conversar sobre o que realmente resolveria a situação dela, mudar o seu mundo. “Como isso seria possível, Dona Maria?”
Ela e o filho, em concordância percebida no olhar dos dois, respondem de pronto: “Como, se “os grandão” num querem?”
O menino me interrompe, cantarola baixinho, e fala que a vida tinha que ser igual a uma letra de funk que ele gosta muito.

Pergunto: Ah é? Como é isso?

(...)Sonhei que a favela tava linda; que todas paredes tinha tinta; criançada corria na meio da rua; e o céu tava cheio de pipa; ninguém com barriga vazia; e as dona Maria sorria; tinha até barraco com sacada; virado de frente pra piscina, acredita? Chuva de carro importado os menor desfilava; lá tava tudo na paz, polícia nem passava; preto, pobre, favelado era respeitado; não descriminado; ali ninguém mais via o Sol nascer quadrado(...)

_Mas diz aí tia, como?

E frente a mais um questionamento de um adolescente, porque eles sempre perguntam, tentei como tento sempre, levar aquele adolescente há uma reflexão mais profunda, para além de carros importados e tintas na parede, mas sim como a história foi construída, como chegamos até aqui? Olhando aquele olhar confuso de um adolescente, insisto na ideia de que todo o processo de mudança deve ser organizado, a organização das forças, seja dos trabalhadores, seja da população, na perspectiva de levar uma semente de curiosidade e o ajude a encontrar, mas percebo que com a escassez que há, fica difícil pesquisar... fica difícil ter acesso.
Recordo que se for mais direta, se eu jogar a real para essas famílias, serei demitida, tem que ser sempre nas entrelinhas.... Fecho os meus olhos, respiro e reafirmo... A mudança de toda a realidade que vivo, a realidade das D. Marias esquecidas exploradas nas “casas de família”, dos meninos favelados que são mortos, seja pela polícia racista, seja pela ausência de vitaminas no dia, a resposta?

_É a queda do sistema capitalista.

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