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quinta-feira 28 de junho de 2018 | Edição do dia

O nova-iorquino Harvey Milk, foi reconhecido por ser o primeiro funcionário público a ser abertamente gay, mas, principalmente, por ser uma imagem da luta pela conquista dos direitos LGBT entre os anos 70 e 80 dentro de um Estados Unidos fortemente conservador homofóbico.

Nos anos 60, o assédio policial direcionado ao coletivo LGBTI não foi notado apenas no que resultou violentamente em Stonewall, mas foi uma perseguição sistemática que ocorreu em todo o país, mesmo na grande São Francisco. A particularidade de São Francisco é que não era como outras cidades nos Estados Unidos, ali havia uma grande concentração de pessoas LGBT e não era casual. Muitos gays excluídos do exército preferiram viver lá com aqueles que fugiram de seu ambiente social e familiar porque eram homossexuais.

Seu ritmo de vida era muito agitado, de mudança em mudança, de trabalho em trabalho, de amores para amores, de clandestino para sair do armário. Aos 40 anos ele decide dar um giro em toda a sua vida. Foi quando, em 1972, mudou-se para o estado da Califórnia com seu parceiro Scott Smith e abriu uma loja na Castro Street, que no futuro se tornaria sua sede política. Foi assim que, em 1973, nem mesmo as políticas conservadoras ou a sexualidade constituíam qualquer obstáculo para se candidatar a supervisor da cidade de São Francisco.

Depois de perder três eleições, o sistema eleitoral mudou e as autoridades começaram a ser eleitas pelas seções distritais. Este foi um "eureka" para Harvey, que só tinha que ganhar o distrito de Castro Street.

Muitas pessoas trataram as campanhas de Milk e ele como circo, inclusive foi ameaçado de morte várias vezes. Mas sua personalidade extravagante, refletida em sua luta contra as políticas homofóbicas, conquistou uma parte importante da cidade e da mídia. Desta forma, o então chamado "Prefeito de Castro Street" foi eleito supervisor em 1978.

Foi fácil para Harvey construir relacionamentos e alianças com supervisores, sindicatos e outras organizações. Estas foram Ella Hill Hutch, uma mulher afro-americana, Gordon Lau, uma ativista chinesa americana, Carol Ruth Silver, mãe solteira e o prefeito liberal George Moscone, o sindicato de motoristas, construtores e bombeiros.

Em sua curta carreira política, ele conseguiu promulgar uma das mais importantes ordenanças para a comunidade LGBTI. Foi a que protegeu homens e mulheres homossexuais da discriminação em moradia, emprego e outros espaços públicos, que foi aprovada com apenas um eleitor dissidente, o do supervisor Dan White. Dan White era uma espécie de "anti-Harvey" cuja política não era diferente das de Anita Bryants, outra feroz opositora dos direitos LGBTI.

Bryants promoveu a campanha "Salvemos nossos filhos" que proibia casais homossexuais de adotarem crianças. Por trás dessa campanha nefasta escondia um propósito: revogar a ordenança promulgada por Milk. Assim como o governo de São Francisco outorgava uma concessão à comunidade LGBT, era o mesmo governo que, por pressão da direita católica, os anulava.

Outro funcionário foi o legislador John Briggs, que propôs a "Proposição 6", um projeto de lei apresentado em um referendo no estado. Ele pretendia proibir que todas as pessoas pertencentes ao coletivo LGBTI com cargos de professores, não pudessem trabalhar em escolas públicas e até mesmo apresentava instruções sobre como identificar e provar que o acusado era homossexual. Harvey contava com raiva e indignação entre gays, lésbicas e travestis diante de todos os ataques da direita cristã. Organizou marchas, comícios e eventos públicos, mas também se propôs como mediador para que essa raiva fosse canalizada em negociações com o Estado e não transbordar em ações mais radicais.

A iniciativa Briggs parecia ameaçar com sua aprovação, mas tudo mudou quando Harvey desafiou o legislador para um debate ao vivo, alcançando uma notável vitória em seu discurso. Isso impulsionou organizações como a "Antiproposição 6" a se mobilizar e o repúdio se alastrou graças ao alcance massivo gerado a partir de sua transmissão nos principais meios de comunicação. De repente, o lema "come out! come out! wherever you are!" ("Saia! Saia! Onde quer que você esteja!") ecoou pelas ruas de São Francisco. O produto desse grande movimento foi que o resultado da iniciativa foi rejeitado por mais de um milhão de votos contra.

Depois que o movimento LGBTI obteve tal vitória, o supervisor Dan White renunciou à sua posição. No entanto, após uma semana de sua renúncia, ele pediu para se tornar um membro do Conselho de Supervisores, mas foi rejeitado. Poucas horas antes de George Moscone anunciar à imprensa a substituição de White, este entrou na prefeitura, foi ao escritório de Moscone e efetuou uma série de tiros que mataram o supervisor. Finalmente, ele interceptou Harvey para atirar nele à queima-roupa. Milk foi assassinado aos 48 anos e esse dia ficou conhecido como a "segunda-feira negra". Dan White cumpriu a pena mínima, seus advogados determinaram que era sua "má dieta" que desequilibrou seu juízo, tudo uma expressão de desprezo e zombaria contra a diversidade sexual. Foi um crime de ódio.

A revolta de Stonewall abriu uma nova etapa na luta pela emancipação da diversidade sexual. Em todo Estados Unidos, e também na Europa e em alguns países latino-americanos, se conformaram as Frentes de Libertação Homossexual. As identidades que durante anos foram excluídas e estigmatizadas se levantaram com orgulho pela perspectiva da libertação sexual. Como parte de um processo muito mais amplo, lésbicas, gays e travestis começaram a vincular suas lutas às de mulheres, trabalhadores, imigrantes e negros. Questionaram o sistema capitalista, a Igreja, a família, a escola e a medicina como os principais produtores e reprodutores da homofobia. Uma crítica radical que foi acompanhada pela convicção que estava nas ruas e em união com o resto dos oprimidos o caminho para viver uma vida livre de quaisquer restrições morais e sexuais.

Nesse contexto, a figura de Harvey Milk deve necessariamente ser resinificada. Por um lado, suas contribuições na conquista dos direitos democráticos são inegáveis. Entretanto, antecipando as vicissitudes de organizações LGBTI anos 80, também foi uma expressão política de um processo em que as bordas mais revulsivas daquele movimento que tinha questionado a heterossexualidade seriam gradualmente marginalizadas. Neste marco, e com particular intensidade nos Estados Unidos, o movimento LGBTI foi hegemonizado gradualmente por gays brancos e de classe média que dirigiram numerosas ONGs que surgiram durante esses anos difíceis na luta contra o HIV / SIDA e que se dedicaram ao lobby parlamentar, que aceitaram o convite do neoliberalismo para se integrarem em uma sociedade que deixaram de questionar e a conquista de direitos parciais separados de qualquer perspectiva radical crítica contra um sistema que se utiliza da homofobia e machismo para continuar sua dominação.

A figura de Harvey Milk simboliza em pequeno esse divórcio. O que está em questão hoje é defender qualquer conquista, por mais parcial e fragmentada que seja, mas colocada sob a perspectiva de fortalecer um movimento que questione a ordem repressiva e moral das classes dominantes que invade até o mais privado de nossas vidas.




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