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MALCOLM X | Há 50 anos do assassinato de Malcolm X

Daniel AlfonsoSão Paulo

quinta-feira 28 de maio de 2015 | 00:05

Malcolm Little nasceu em 1925, filho do casal Louise e Earl Little. Seu pai já havia se casado com Daisy Mason na cidade de Reynolds. Porém, logo abandonou a cidade, deixando os filhos aos cuidados da mãe, entre os quais Ella Little, que terá um papel de destaque na vida de Malcolm. Em Montreal, Canadá, conheceu Louise, e deram início a uma vida dedicada a UNIA (Associação Universal para o Progresso do Negro, em português), organização de Marcus Garvey. Imigrante da Jamaica, Garvey chegou aos Estados Unidos em 1917 e rapidamente ganhou espaço na comunidade negra. As ideias que defendia não eram contestadoras do ponto de vista político, ou mesmo social. Ao contrário, advogava posições conservadoras em relação à sociedade capitalista norte-americana. Porém, nessa esteira, transmitia a todo momento um ideal que, de maneira geral, pode ser resumido na necessidade da população negra dos Estados Unidos fortalecer-se econômica e socialmente, realizando negócios entre si e buscando maior nível educacional,o que seria conquistado com profundo senso de orgulho de si e disciplina. Seu arcabouço político o aproximou do fascismo italiano e do que considerava uma enorme capacidade de organização do Japão imperialista antes da segunda guerra mundial.

Os pais de Malcolm mudaram-se várias vezes de cidade, no esforço por abrir trabalho político. Sofreram as consequências econômicas de uma vida errante, e o peso das organizações de supremacia branca. Quando Malcolm era pequeno, em um evento que ele mesmo relata em sua autobiografia, a casa de seus pais foi incendiada pela Klu Klux Klan (KKK). A vida errante da família Little, nos anos 1920, coincidiu com o aumento das fileiras da KKK. Expressão mais aguda do racismo imperialista entranhado nos Estados Unidos, a KKK contava então com 2 a 3 milhões de membros: “Até 1923, de 2 a 3 milhões de brancos americanos - incluindo políticos em ascensão como Hugo Black, do Alabama, e, mais tarde, Robert Byrd da Virgínia Ocidental – tinham ingressado na Klan, que se tornara uma força na política nacional. A organização secreta tinha membros tanto no Partido Democrata como no Republicano, mantendo o equilíbrio de poder em muitos legislativos estaduais e em centenas de câmaras municipais.” (1)

Por fim a família Little se instalou em Lansing, nos arredores de Detroit. A indústria metalúrgica de Detroit se encontrava em plena expansão naqueles anos. A cidade, na parte norte dos EUA, era um dos destinos preferidos de grande parte dos negros que emigravam do sul em busca de uma vida melhor, mais distante da brutalidade da KKK, da polícia e dos governos sulistas. Era alta a concentração de negros na cidade, mas ocupavam os piores postos de trabalho, as piores condições de moradia. Embora não houvesse segregação racial por lei no estado de Michigan, a opressão racial era parte integrante da vida de todo e qualquer negro.

No final dos anos 1920, a UNIA - e o movimento garveyista - tinha entrado em declínio, do qual não se recuperaria. Entretanto, nem a crise na cúpula do movimento (que incluía disputas em torno da Star Black Line, o negócio mais lucrativo da UNIA), nem a prisão e consequente exílio de Garvey arrefeceram os ânimos dos Little. Louise e Earl continuaram a dedicar suas energias ao que consideravam o melhor caminho para a conquista de direitos por parte dos negros nos Estados Unidos. A atividade política de Earl, asssim como de todos os negros que resistiam à opressão racista, chamou a atenção e incomodou supremacistas brancos, no caso uma organização chamada Legião Negra. No dia 8 de setembro de 1931, Earl Little foi assassinado. Uma tática usada por essas organizações defensoras da supremacia branca era assassinar negros perto de ferrovias a fim de fazer parecer acidentes. Uma tática parecida foi usada com Earl: um bonde passou por seu corpo, causando danos irreparáveis. Morreu no Hospital; “o médico legista declarou que a morte de Earl foi acidental, e assim contaram os jornais de Lansing” (2) . A polícia tampouco investigou.

O assassinato de Earl Little impôs uma situação financeira bastante difícil para a família. Assim que Roosevelt assumiu a presidência, buscou maneiras de equilibrar as contas internamente, com uma economia arruinada pela crise de 1929, e amenizar potenciais focos de resistência operária e popular. Uma série de medidas foram tomadas, que compõem o chamado New Deal. A família de Malcolm, porém, assim como as famílias negras em geral, foi das menos beneficiadas pelas poucas medidas de ajuda à população pobre. Louise administrava a vida familiar com 1,75 dólar por semana, costurando para complementar a renda. O grupo garveyista no qual trabalhava se extinguiu durante a Depressão. Aos poucos, o peso da situação se acumulou sobre Louise. Depois de dar à luz ao oitavo filho, cujo pai a abandonara, Louise entrou em depressão profunda; “Dias antes do Natal, policiais a encontraram andando descalça na estrada coberta de neve, a criança apertada contra o peito.” Foi internada no hospital de Kalamazoo (uma das piores instituições de saúde mental dos EUA à época) no começo de 1939, onde permaneceu por 24 anos - Malcolm quase nunca a visitava, tampouco mencionava sua mãe às relações que ia estabelecendo.
Ella Little, filha do primeiro casamento de Earl Little, entrou em contato com a família e decidiu ajudá-la como podia. Malcolm visitou Boston, onde Ella morava, no verão de 1940. Seu contato com a cidade grande o impactaria profundamente. De forma inédita, sentiu com força a distância que o separava dos meninos brancos de Lansing, tantos nos pequenos gestos quanto em relação à expectativas sobre si: “Um professor de inglês, Richard Kaminska, argumentou duramente com ele para que não se tornasse advogado. ‘Você precisa ser realista sobre a condição de negro. Por que não se decide por carpintaria?’ As notas de Malcolm caíram drasticamente, e sua truculência aumentou. Meses depois, foi expulso.” (3)

Em fevereiro de 1941, aos 15 anos, Malcolm foi morar com Ella, em Boston. A casa de sua irmã ficava em um bairro conhecido por Hill. Era um bairro que abrigava uma nascente classe média negra, à qual Ella buscava se integrar. Uma das formas que encontrou foi cometendo uma série de pequenos crimes. Segundo Marable, autor da mais recente e completa biografia de Malcolm X, “Num período de vinte anos, Ella foi presa o espantoso número de 21 vezes, apesar de condenada apenas uma vez.” (4)
Os Estados Unidos ingressaram na Segunda Guerra Mundial em dezembro de 1941. A participação dos EUA na guerra marcou profundamente sua população negra. Em primeiro lugar abriu as portas de empregos aos quais até então somente brancos tinham acesso. Em outro plano, deixou ainda mais evidente que o governo dos Estados Unidos não tinha interesse algum em buscar o fim das leis de segregação racial. Ao mesmo tempo em que milhares de negros arriscavam suas vidas no front, sofriam segregação racial em seu país. Um importante escritor negro norte-americano retrata essa inflexão: “O tratamento dispensado aos negros durante a Segunda Guerra Mundial assinala, para mim, um momento decisivo nas relações dos negros com os Estados Unidos… Certa esperança morreu, certo respeito pelos americanos brancos desvaneceu-se.” (5) A essa altura Malcolm já tinha ido morar com Ella em Boston. Nessa época conhece “Shorty”, um músico que o introduziu à vida noturna da cidade. Malcolm não permanecia por muito tempo no mesmo emprego, e em Boston (e em seguida em Nova York) começou a cometer pequenos crimes, de forma intermitente. É em Boston também que conhece Bea Cargullian, uma mulher branca mais velha, com quem terá uma importante relação até sua prisão.

Depois de passar por alguns empregos, conseguiu uma vaga na indústria ferroviária. Foi trabalhando na linha Boston-Nova York que conheceu o Harlem, o principal bairro negro dos Estados Unidos, um caldeirão das artes ao mesmo tempo que representava os limites que os Estados Unidos impunham à vida aos negros, mesmo em uma cidade sem lei de segregação racial vigente. Os anos 30, o New Deal, a entrada dos EUA na II Guerra, o impacto da migração de negros do sul para Nova York, tudo afetou o Harlem. Assim: “o Harlem negro, apesar de todas as reformas do New Deal, permaneceu como era. Ali viviam 350.000 pessoas, 233 pessoas por acre comparado com 133 do resto de Manhattan. Em vinte e cinco anos, sua população havia aumentado seis vezes. Dez mil famílias viviam em porões e sótãos infestados de ratos. A tuberculose era comum. Talvez metade das mulheres casadas trabalhasse como empregadas domésticas. Elas iam ao Bronx [bairro próximo ao Harlem] e se aglutinavam nas esquinas – que eram chamadas de ’mercados de escravos’ – a fim de serem contratadas. A prostituição se alastrava. (...) No Harlem Hospital em 1932, proporcionalmente o dobro de pessoas morriam em relação ao Bellevue Hospital, na parte branca do centro.” (6) Mesmo morando oficialmente em Boston, o Harlem entrou de forma rampante em sua vida, para nunca mais sair; Malcolm adotou o Harlem como seu bairro, e uniu seu destino a ele. Depois da prisão, já Malcolm X, logo depois de se tornar ministro da Nação do Islã, abriria e dirigiria o Templo n. 7, em Harlem. Antes, porém, passou alguns anos na prisão – um momento decisivo em sua vida.

Em Boston, depois de ser demitido por insubordinação, Malcolm juntou-se a “Shorty”, Bea Gargullian e uma amiga; os quatro assaltaram algumas casas. As mulheres ficavam de espreita enquanto os dois amigos pegavam o que consideravam que renderia algum dinheiro. Foram bem-sucedidos algumas vezes, mas um erro amador (usar um casaco roubado na rua) os tornou presas da polícia. A justiça norte-americana, como todas as leis dos tribunais capitalistas, não é imparcial. São os negros que recebem as piores penas, e são a maioria dos condenados. A principal pena de Malcolm foi de seis a oito anos de prisão. “Dificilmente o tribunal poderia ter imposto penas maiores”. Bea, a pedido do promotor, testemunhou contra Malcolm e Shorty, afirmando ser vítima de coação criminosa. O desprezo por Malcolm por ter se relacionado com uma mulher branca era expresso até por seu advogado: “Quando Malcolm comentou com um advogado de defesa: ‘parece que estamos sendo condenados por causa daquelas meninas’, o advogado respondeu, furioso: ‘Vocês não tinham que se meter com mulheres brancas!’” (7)

Em 1946, aos 20 anos,Malcolm foi enviado à Charlestown State Prison, “naquela época as instalações penais em uso contínuo mais antigas do mundo. (...) [suas] condições físicas eram lamentáveis: as células, infestadas de ratos, eram minúsculas – 2,10 por 2,40 metros – sem instalações sanitárias e água corrente.”(8). Em Charlestown conheceu John Elton Bembry, 20 anos mais velho, uma influência decisiva em sua vida. Bembry incentivou e estimulou Malcolm a direcionar sua energia aos estudos. Encorajamento que também recebia da família, na figura de sua irmã mais velha Hilda. Malcolm sabia que os estudos também poderiam lhe valer uma transferência para uma prisão em melhores condições. Em meados de 1946, Malcolm desenvolve um senso de disciplina para os estudos que o acompanhou por toda a vida. Fez curso de extensão universitária, aprendeu latim, aprimorou sua caligrafia e devorou os livros da biblioteca. Depois de passar pelo Reformatório de Massachusetts, Malcolm é transferido para a Colônia Penal de Norfolk. A vida em Norfolk era bastante diferente. Havia muito mais socialização entre os presos. Malcolm continuou a estudar com dedicação e aproveitou uma biblioteca um pouco maior. “Uma vez que ele começou a reeducar-se, não havia limites para a busca de fatos [históricos, sociais, políticos, culturais] e inspiração. Na biblioteca de Norfolk (...) estudou a história do comércio transatlântico de escravos, o impacto da ‘peculiar instituição’ da escravidão de propriedade privada nos Estados Unidos e as revoltas afro-americanas” (9).

Havia sessões de debates entre os presos aos finais de semana. Nas palavras de Malcolm, “Ali mesmo na prisão, debater, falar para uma multidão, foi tão estimulante como a descoberta do conhecimento por intermédio da leitura (...) Ali de pé, aqueles rostos voltados para mim, palavras saindo da minha cabeça para a boca, enquanto o cérebro procurava o que havia de melhor para dizer em seguida, e se pudesse trazê-los para o meu lado fazendo tudo corretamente, então eu ganhava o debate – quando senti o gostinho daquilo, continuei debatendo.” (10)

Em 1948, já na prisão de Norfolk, seu irmão mais próximo, Philbert, o introduz à Nação do Islã (NOI). Na verdade, vários de seus irmãos em Lansing já faziam parte da NOI há algum tempo. Depois de certa resistência, Malcolm começou uma troca de cartas com ninguém menos que o líder supremo da NOI, Elijah Mohammad. A Nação do Islã, que não tem nenhuma relação histórica com o atual “Estado Islâmico” (ISIS), era uma seita islâmica não-ortodoxa, que até então contava com cerca de mil membros. Parte periférica do Islã nos Estados Unidos, a NOI havia tido como principal líder Fard, profeta auto-proclamado, de inspiração divina, assim como Maomé. Entre as várias interpretações particulares que a NOI tinha do Islamismo a mais importante para Malcolm, sem dúvida, era a maneira como a NOI enxergava a relação racial entre brancos e o restante dos povos. Fard entendia que os brancos eram demônios, e os negros americanos e o povo asiático, os povos originais. Afirmava que os negros haviam sido roubados de sua história, estavam em estado dormente e era responsabilidade da NOI despertá-los para a “verdade”. Símbolo da ruptura com o mundo branco era a destituição do sobrenome dos adeptos, pois seriam nada mais do que uma forma de esconder a origem dos negros – estes, portanto, adotavam novos nomes, muitos com alguma variante de X. Ancorada em Detroit (perto de Lansing, onde os Little moravam), a NOI cresceu bastante no início dos anos 1930, período no qual Elijah Poole (depois Elijah Mohammad) ingressou em suas fileiras. Fard desaparece em 1934, e após uma série de crises entre sucessores, a NOI praticamente desapareceu. Elijah, porém, continuou a pregar – mesmo em condições muito adversas. Elijah foi preso em 1942 “sob a acusação de não comparecer para alistar-se e aconselhar seus adeptos a resistir ao serviço militar”(11). Saiu em 1946, quando revelou a seus seguidores que Fard havia lhe confessado que era o próprio Deus. Assim, Elijah alçou-se à posição de Mensageiro de Alá.

Inspirada pela satanização da raça branca, a NOI orientava seus adeptos a se retirarem da vida civil de todas as formas possíveis. Defendia, assim, a criação de um Estado negro separado. Entretanto, a NOI não adotava posição política que orientasse seus adeptos. Seu nacionalismo era de conteúdo religioso, evangelizador. O próprio Mohammad entendia que as leis de segregação racial jamais seriam extintas, e assim, não fazia sentido tomar parte dos acontecimentos nacionais.

Malcolm X foi solto em 1952. Menos de dois anos depois já era um dos principais ministros da NOI e em 1954 foi enviado a Nova York para abrir o Templo n 7, em Harlem. É quase impossível subestimar a importância de Malcolm X para o crescimento da NOI: “Entre 1953 e 1955, a Nação do Islã mais do que quadruplicou em tamanho, passando de cerca de 1200 para quase 6 mil membros. De 1956 a 1961, cresceria e mais de dez vezes, para algo entre 50 mil e 75 mil membros” (12). Malcolm X esteve no centro desse crescimento, sendo responsável pela abertura da maioria dos novos templos, assumindo responsabilidades administrativas e organizativas nacionalmente. Rapidamente se tornou a principal figura pública da NOI.
Os Estados Unidos viviam um período fundamental na luta pelos direitos civis, no combate às leis de segregação racial. Malcolm Little, agora Malcolm X, encontrou na NOI lugar onde canalizar suas energias e sua frustração com as instituições norte-americanas e com as injustiças contra o povo negro. Como ficará claro na segunda parte deste artigo, quando entre outras questões veremos a ruptura de Malcolm X com a NOI, não há dúvida de que a NOI foi um profundo entrave ao seu desenvolvimento político e pessoal. Mas a força de Malcolm X, mesmo dentro da NOI, estava em sua capacidade de desvendar e escancarar o racismo norte-americano. Nos anos 50, que foram os do “sonho americano” para grande parte da população branca dos EUA, a oratória magnética de Malcolm X deixava claro a todos os que queriam ouvir que a realidade do povo negro nos EUA se parecia a um pesadelo. Malcolm X relacionava com eficácia impressionante o passado escravista dos Estados Unidos com a condição dos negros de então, recuperando parte de sua história e, com uma posição que influenciaria toda uma geração depois, valorizava sua tradição e sua cultura, rejeitando a influência da cultura e dos valores brancos dominantes.

Com o tempo as posições de Malcolm X se tornaram cada vez mais políticas e agudas, ultrapassando a retórica que desmascarava o racismo norte-americano. Influenciado por acontecimentos envolvendo membros da própria NOI, como o assassinato de um membro do Templo de Los Angeles e a reposta passiva da direção da NOI, assim como pela radicalização da luta pelos direitos civis no final da década de 50 e começo dos anos 60, Malcolm X ingressará em um caminho de choque com a NOI e Elijah Mohammad. Eventualmente, esse choque levará a seu assassinato pelas mãos da NOI com a participação, ou no mínimo conivência, do FBI. Esses, porém, são temas do próximo artigo.

Notas
1- Manning Marable. Malcolm X – uma vida de reinvenções. Companhia das Letras, 2013, p. 32.
2- Idem.
3- Idem, p. 50.
4- Idem, p.54.
5- Idem, p. 71.
6- Howard Zinn. A People’s History of the United States.
7- Manning Marable. Malcolm X – uma vida de reinvenções.
8- Idem, p. 86.
9- Idem, p. 108.
10- Idem, p. 108.
11- Idem, p.104, 105.
12- Idem, p. 142.


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