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Grupo de Pesquisa da Faculdade de Direito da USP lança nota em apoio à aprovação da Lei João W. Nery

Bruno PortelaSão Paulo

quarta-feira 7 de outubro de 2015 | 00:01

O Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (GPTC), da Faculdade de Direito da USP, composto principalmente por advogados e estudantes de Direito e coordenado pelo professor e juiz do trabalho Jorge Luiz Souto Maior, após sessão de debate no mês passado que discutiu o transfeminismo e a questão trans como parte de uma série de discussões do grupo que nesse semestre está pautando a luta das mulheres com o tema "Feminismos, marxismo e trabalho", lançou nessa última sexta-feira uma nota em apoio à aprovação da Lei de Identidade de Gênero (mais conhecida como Lei João Nery), como forma de posicionamento em favor das pessoas trans e da luta pelos seus direitos.

A nota além do posicionamento político favorável à lei, traz também diversos argumentos jurídicos que contribuem para a discussão da aprovação dessa lei tão importante como forma de avanço na realidade e na vida das pessoas trans.

Reproduzimos a nota na íntegra abaixo:

GPTC pela aprovação da Lei João W. Nery

“Toda norma, regulamentação ou procedimento deverá respeitar o direito humano à identidade de gênero das pessoas”*

O Projeto de Lei nº 5.002/2013, mais conhecido como PL João W. Nery ou PL de Identidade de Gênero, proposto em fevereiro de 2013 pelo deputado Jean Wyllys (PSOL/RJ) e pela deputada Érika Kokay (PT/DF), dispõe sobre o direito à identidade de gênero e altera o artigo 58 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, para possibilitar alteração de prenome nos Registros Públicos. O objetivo do projeto é assegurar o direito ao reconhecimento da identidade de gênero, direito que necessita ser positivado, visto que no Brasil a regra tem sido o constante desrespeito não só à identidade das pessoas trans, como também aos seus direitos mais básicos como saúde, educação, trabalho e consequentes benefícios sociais, e até mesmo o direito à vida.

O texto do PL, em seu artigo 2º, conceitua identidade de gênero: “a vivência interna e individual do gênero tal como cada pessoa o sente, a qual pode corresponder ou não com o sexo atribuído após o nascimento, incluindo a vivência pessoal do corpo”. Simplificando, ainda que superficialmente, pessoas trans não se identificam com a correlação imposta socialmente entre o sexo biológico e a identidade de gênero (masculino-homem, feminino-mulher), independentemente do fato de desejarem ou não fazer modificações em seu corpo. Em oposição, pessoas chamadas cissexuais são aquelas que se identificam com o padrão sexo-gênero normativizado.

Estima-se que 90% da “população T” (que é composta por homens trans, mulheres transexuais, travestis e outras pessoas trans não-binárias) esteja na prostituição compulsória, já que essas pessoas têm extrema dificuldade em adentrar nas profissões do mercado de trabalho formal por conta do intenso preconceito que sofrem: a transfobia. Dentre os graves problemas enfrentados por pessoas trans, o não respeito ao nome social, inclusive no ambiente de trabalho, causa intenso sofrimento moral, já que as obriga a passar grande parte do dia tendo a sua identidade desrespeitada. Ademais, a expectativa de vida dessa população é de apenas 35 anos, metade da expectativa da população cissexual.

O PL João W. Nery poderá, nesse sentido, melhorar significativamente a qualidade de vida das pessoas trans, tendo sido inspirado na Lei de Identidade de Gênero argentina (Ley 26.743, de 2012), considerada a legislação sobre identidade de gênero mais avançada do mundo. É necessário que o Brasil também se sensibilize e respeite os direitos humanos da população T, com base em compromissos internacionais firmados pelo Estado brasileiro e no respeito às garantias previstas em nosso ordenamento jurídico interno.

Em termos internacionais, o Brasil é signatário de diversos Tratados de Direitos Humanos que têm como suas principais previsões o respeito à dignidade humana. Especificamente, enquanto Estado-membro das Nações Unidas, nosso país deve basear suas obrigações de respeito e proteção dos direitos humanos nos Princípios de Yogyakarta, sobre aplicação da legislação internacional em relação à orientação sexual e identidade de gênero, publicados em 2007 e endossados pelo Comissariado de Direitos Humanos da ONU. Merece destaque o terceiro princípio de Yogyakarta, segundo o qual “toda pessoa tem direito de ser reconhecida, em qualquer lugar, como pessoa perante a lei. (…) A orientação sexual e identidade de gênero autodefinidas por uma pessoa constituem parte essencial de sua personalidade e um dos aspectos mais básicos de sua autodeterminação, dignidade e liberdade. Nenhuma pessoa deverá ser forçada a se submeter a procedimentos médicos, inclusive cirurgia de mudança de sexo, esterilização ou terapia hormonal, como requisito para o reconhecimento legal de sua identidade de gênero (…)”.

Com relação à normativa nacional, a Constituição de 1988 prevê a proteção da dignidade de todos os seres humanos e o respeito às diferenças individuais, consagrando o princípio da igualdade (art. 5º) e da não-discriminação (art. 3º, inciso IV). Com relação ao nome, o Código Civil determina, no artigo 16, que “toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome” e que “o pseudônimo adotado para atividades lícitas goza da proteção que se dá ao nome” (art. 19), o que demonstra não haver obstáculos legais à inclusão do nome social como registrável nos cartórios, equiparado ao nome civil.

Assim, a aprovação do PL João W. Nery pode representar um começo para o avanço do Direito nacional em direção ao respeito da dignidade humana das pessoas trans. A retificação do prenome, sexo e imagem nos documentos pessoais (previsto no artigo 3º do projeto), por exemplo, é essencial para que a identidade de gênero seja respeitada, e que isso seja feito sem burocracias desnecessárias e manobras jurídicas como hoje se verifica. Outro artigo importante do projeto é o 9º, que prevê que o SUS deverá fornecer os tratamentos necessários para a modificação corporal da pessoa maior de 18 anos que assim o desejar, sem necessidade de diagnóstico psiquiátrico.

É importante que a questão da inserção social da população T esteja, com cada vez mais intensidade, na pauta de lutas dos grupos de esquerda. Tal compromisso, aliás, é histórico: desde a ditadura civil-militar, cuja repressão dirigida à comunidade LGBT gerou movimentos de resistência desta população, é crescente a mobilização de grupos de combate à opressão e ao preconceito contra a população T, em defesa do reconhecimento de sua identidade e de seus direitos.

Nos dias de hoje a discriminação persiste, baseada em pretextos como a proteção à família e seus valores morais. Logo, a questão da visibilidade para a comunidade LGBT é de importância capital. Fruto da intolerância às diferenças sexuais e de gênero, ela é sentida, principalmente, na ausência de direitos sociais básicos, na falta de oportunidades no mercado de trabalho, no repúdio às expressões de afeto em público ou, ainda, no discurso de ódio do qual são vítimas as pessoas trans, vistas como “anormais”, “aberrações”, perigosas ou doentes mentais.

A tradicional divisão sexual em homem e mulher não representa todas as possibilidades de construção de identidade de que os seres humanos dispõem. Disso decorre que, para eliminar a desigualdade social em relação ao sexo e ao gênero, deve necessariamente ser adotada uma nova ordenação social desses fatores, afastando-se a determinação de natureza biológica ou cultural. Só assim será possível desafiar as noções dominantes e conservadoras, abrindo novas possibilidades de expressão e afirmação da população T.

Por todas essas razões, o Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (GPTC) se posiciona no sentido de apoiar a aprovação do Projeto de Lei João W. Nery, para que todos e todas possam ser respeitados e respeitadas como seres humanos, livres para expressarem suas identidades e para viverem suas vidas com dignidade.

*Artigo 11 do PL João W. Nery




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