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MULHERES NEGRAS 2016 | GRITARAM-ME NEGRA!

Flávia ToledoSão Paulo

segunda-feira 25 de julho de 2016 | Edição do dia

Gritaram-me negra num sussurro tímido, quase surdo. Me apontaram o cabelo, pequena ainda. Que não aparecesse no portão pra não causar má impressão, que fosse de presilha no dia da foto da escola pra não destoar tanto dos amiguinhos. Sempre suja essa menina, inquieta, bagunceira, alguém dá pra ela alguma atividade pra parar de correr. Parece um macaco.
Foi num sussurro que me disseram pra ficar longe daquela outra criança, mesma idade, mesmo cabelo, mesma roupa suja. Mas era roupa velha, e não o uniforme da escola. Era marca de sujeira da rua e não do parquinho. Eu dentro do carro, ela na janela do lado de fora.

Faltei um dia na escola, e o nome que decidiram pra mim na camisa do time era Medusa, um monstro com seu cabelo de cobra. Não joguei o campeonato. Não fui também na festa porque era chique e não poderia ir se não penteasse o cabelo. Na outra eu não fui porque não quis, mesmo. Alguns lugares são nossos, outros não. Tinha “cara” de corinthiana, olha só. “Cara de maloqueira, né, Flávia?” Por sorte era inteligente, bem articulada, falava bem, lia bastante, era atleta. E gostava de política, tão nova.

Na família, era a “coisa marrom”. Pro babaca de uns 40 anos que me chamava pra entrar no carro dele enquanto eu tentava ler sentada na porta da escola, era “morena”. (Morena, cara? Eu tinha 10 anos!) No meu caderno, um singelo recado de um amigo: “Te amo, negrinha.” E um pau desenhado do lado.
Não vou mentir. No meu discurso, eu não queria seguir a cartilha da boa moça feminina porque era feminista. E era, a ideia de que ser mulher é sofrer uma opressão brutal me veio muito cedo e eu tinha muita convicção de que não podia abaixar a cabeça pra homem. Mas junto com isso tinha o fato de que nenhuma capa da Capricho tinha alguém como eu.

Aprendi muito cedo que era preciso me impor se eu quisesse ser ouvida. Tanto insisti que consegui, me baseando numa paixão enorme por um mundo que viria se a gente se jogasse pra construir. Sabia o que dizer quando minha condição de mulher era atacada e como explicar a desigualdade social que me angustiou anos antes quando aquela criança pedia esmola no sinal. Entendia que existe uma burguesia nojenta que explora e oprime, e que tem uma cara totalmente diferente da classe que tudo produz e a quem tudo pertence.

Mas restava um desconforto na hora de marcar um x no questionário “étnico-racial”. Porque meus pais marcavam “branca” e eu não encontrava argumentos pra dizer que não era ali que eu me encaixava. Porque não me gritaram negra, apenas me sussurraram isso ano após ano. A pele que não é escura o bastante, o cabelo que não faz um black - “mas, Flávia, alisa mais vezes, fica tão lindo, parece até de verdade”.

Parece até piada querer que levem a sério uma “democracia racial” quando a experiência democrática que temos é tão desgraçadamente deturpada. Não existe desigualdade, existe apenas esforço e mérito. Não existe raça, somos todos iguais. Mas existe toda uma árvore genealógica e documentos oficiais e certidões de nascimento e sobrenomes europeus que comprovam que na verdade somos os filhos legítimos do velho continente que tiveram a dura sorte de cair em terras tupiniquins. E de indígena ficou só o nome do bairro, de africano só o samba, a feijoada e a macumba – essa você chuta.

Difícil mesmo se entender qualquer outra coisa que não a menina de família italiana/espanhola/alemã quando só te contam a história desse povo, da sua “bravura” e “coragem” de se jogar no mar pra desbravar o mundo. Contassem a história de Dandara, Zumbi, de toda a resistência do povo negro que só não existe nos livros de História escritos pelos capitalistas e com certeza o interesse pela avó afroindígena seria muito maior.

Sussurraram-me negra pra me colocar no meu lugar, mas me gritaram branca toda vida porque sabem que a opressão e a exploração criam seus próprios coveiros e mais uma engrossando essa fileira é sempre ruim. Porque se o mundo nos molda, também nós podemos – e devemos – moldar o mundo.

Foi depois de 22 anos de sussurros tímidos, longos e insistentes que me ouvi diretamente negra, enfim. “Pra mim, você é negra. Por que você não se diz negra?” Não sei, respondi, eu sou? “O que define se você é negro ou não é se você sofre racismo.” E aí entendi o moleque gritando na minha cara que meu cabelo era ruim na escola, e que o segurança do shopping não me seguiu por conta das minhas tatuagens, e que os enquadros da polícia não foram aleatórios, e sobre os papéis que eu não consegui no teatro.

Com uma escuta acordada, vi que todos percebiam o que só eu não tinha entendido ainda. Eu sou negra. E de repente percebi que aquela pergunta do meu camarada despertou em mim outra coisa, um entendimento de outra ordem, não de quem eu sou, mas de qual papel eu posso cumprir. Se reivindicar negra é se dispor a combater com toda a força o racismo.

Eu lembro da mesa, das garrafas de cerveja, da conversa desse dia como se fosse hoje, porque ali se deu um avanço de consciência muito grande em mim. Sussurraram-me negra pra que eu não tivesse lugar. Mas hoje sai do meu peito o grito de NEGRA porque me gritaram revolucionária. E me deram um lugar nas fileiras da revolução que botará abaixo todo esse sistema de miséria, exploração e opressão. Ela virá...




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