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Favela, questão negra e coronavírus: apontamentos marxistas sobre o negro e a luta de classes

Nas periferias e favelas, historicamente, se criou ao longo do tempo uma imagem da violência, criminalidade, relacionando ignorância à pobreza, entre outras formas não menos preconceituosas que dão ao trabalhador e seu território um lugar de miséria no capitalismo. Em contrapartida, e concomitante a esse movimento houveram inúmeras políticas públicas, guiadas por projetos políticos excludentes onde foram retirados dos trabalhadores o saneamento básico, moradias de qualidades, transporte público, saúde, etc. A pandemia do coronavírus tornou evidente problemas anteriores ao próprio vírus que em algumas favelas nem sequer tem água para lavar as mãos, assim como falta saneamento básico e a precarização da saúde pública. Mas o que está por trás da falta de políticas públicas de saúde e sanitarista nas favelas e a maneira como ao longo dos anos de sua dominação a burguesia soube manejar a exploração econômica e racismo e que a ameaça do novo coronavírus a vida dos trabalho pode indicar um aprofundamento do racismo estrutural.

Renato ShakurEstudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF

segunda-feira 30 de março de 2020 | Edição do dia

As “classes perigosas” e o preconceito contra o negro

Em um estudo sobre as epidemias e os trabalhadores no século XIX e XX, o historiador Sidney Chalhoub atento aos debates parlamentares do Império brasileiro percebeu que deputados que compunham a elite escravista da época iam criando um discurso propício a uma maior repressão e vigilância sob os trabalhadores, fossem aqueles tidos como “livres” ou escravizados. Segundo eles, a maior virtude do “bom cidadão é gosto pelo trabalho” e isso leva ao “hábito da poupança”, sendo aquele que não consegue acumular nenhuma quantia em dinheiro e que vive na pobreza, suspeito de ser um mau trabalhador [1]. Para aquela elite escravista, portanto, faltava aos negros escravizados e “livres”, “virtudes essenciais”, e por isso era um mau cidadão, passível de cometer erros morais, um verdadeiro perigo à sociedade [2].

Estava dada a senha desde a elite senhorial para aumentar a repressão e controle sobre os negros, a psicóloga Cecília Coimbra em seu estudo sobre violência urbana e favelas, aponta como esse processo foi chave para reorganização territorial, na conformação das periferias e das favelas. As autoridades governamentais e as elites brasileiras no começo do século XX, preparavam seu aparato repressivo colocando, ou pelo menos tentado, sob controle permanente os trabalhadores, esses trabalhadores repletos de “vícios”, ou como aqueles deputados costumavam chamar, “as classes perigosas” . Na verdade, esse tipo de controle policial sobre as massa negras, já no meio do século XIX não era nenhuma novidade, a perseguição e caça aos negros vinha desde a criação da polícia militar em 1808 que desde seu emblema, um brasão com uma rama de café e outra de cana, deixava bem claro a quem estava a serviço e contra quem iria atuar.

Mas o fato é que a medida que rebeliões e revoltas escravas iam aumentando, assim como os processos de fugas de escravizados e os quilombos, a elite escravista precisou reforçar seu domínio sobre o trabalho. Recorria a atividade parlamentar e a polícia para tal empreendimento, identificando a pobreza aos perigos sociais, criando assim um inimigo em potencial daquela elite, o negro. Ao decorrer do século, se via obrigada em não apenas manter o nível dessa repressão, mas, sobretudo sofisticá-la, não a toa encontrou nas teorias raciais e na medicina higienista a combinação perfeita para atacar ainda mais a vida dos trabalhadores. Para controlar e reprimir o trabalho dessas “classes perigosas”, a burguesia brasileira não hesitou em se apoiar na ideologia que havia, inclusive, sido parte fundamental de sua formação enquanto classe, o racismo.

Por que que são os negros os moradores de favelas e periferias?

Quase que em paralelo a esse debate foi um outro que também relacionou dois marcadores sociais e econômicos importantes, a raça e a classe, configurando um passo seguinte ao daqueles deputados. A burguesia foi se dando conta que o trabalho urbano, herança da atividade dos escravos de ganho, trazia consigo alguns “problemas”, pois esses trabalhadores negros não deixavam de carregar algo que seus antepassados sempre tiveram, a luta pela liberdade e contra o domínio senhorial. Os sindicatos de fins do século levantaram a bandeira do fim da abolição junto aos negros aquilombados, os trabalhadores não só carregavam consigo a moral de quem havia derrubado uma lei, colocando fim ao cativeiro, mas que podiam colocar em movimento a força das massas negras bem embaixo do nariz da burguesia, estrategicamente na cidade, local fundamental de suas atividades econômicas e políticas.

Aí entravam o médicos higienistas e a necessidade de um território ordenado e disciplinado, isto é, que afaste das cidades não o “perigo das classes perigosas”, mas sim o perigo da luta de classes. A burguesia que organizava os saberes tido como “científicos” à época, colocava médicos, psiquiatras, psicólogos, sociólogos, antropólogos a serviço de identificar os “fenômenos urbanos”. Logo surge a “teoria dos fluídos” defendendo que a água e o ar são portadores substâncias podres, conhecido como “miasmas”, as multidões e as ruas como espaços propícios às doenças, à insalubridade, entre outros problemas urbanos. Coube ao médicos e a burguesia a tarefa de identificar a sujeira e as doenças aos trabalhadores, como se eles fossem seus principais portadores e “vetores” [3] e propor um projeto de organização urbanística que segregasse, excluísse e isolasse os trabalhadores nos centros urbanos. Ao mesmo tempo que expulsavam vendedores, engraxates, carroceiros da vias públicas e destruía alguns morros durante o século XIX com Pereira Passos, exaltavam a casa, o lar do burguês, o locus de uma moral que extirpar por completo a autonomia e a liberdade dos trabalhadores [4], e por isso ele poderia dormir tranquilamente com sua cabeça no travesseiro longe dos perigos das rebeliões, mas não por muito tempo.

Mas como eu havia apontado acima, a burguesia não apenas reinventa suas formas de dominação, mas as incrementa, as sofistica, e não seria dessa vez que não iria utilizar desse expediente para aumentar o nível de exploração e defender seus interesses. As páginas de livros e relatórios dos médicos urbanistas vão adicionando novas anotações vindas e revisitadas da antropometria e frenologia, teorias que interpretavam as faculdades e capacidades humanas a partir do tamanho e proporção do cérebro, tendo como parâmetro a comparação entre diferentes povos. Cesare Lombroso, defendeu a capacidade da antropologia criminal detectar na sociedade, a partir de componente físicos e biológicos, a criminalidade inerente aos tipos biológicos de grupos de indivíduos [5]. Francis Galton e a eugenia deram impulso ao movimento político e social que incentivou as burguesias no mundo inteiro a debater a necessidade de casamentos entre determinados grupos para desaparecem [6], direcionando o caminho das sociedades a um aprimoramento da espécie humana.

A burguesia brasileira se apoiou nas teorias raciais para reforçar sua dominação enquanto classe, logo o racismo foi um componente fundamental da organização urbana, desde fins do século XIX até aos processos de favelização do século XX. Nesse processo a burguesia não apenas identificou àquelas “classes perigosas” todas as sujeiras, doenças e perigosos sociais do centros urbanos, mas também às conferiu uma cor, a cor negra. Pouco a pouco a reorganização urbana foi ganhando novos contornos raciais, os quais conferiam aos trabalhadores uma condicionante específica das sociedades capitalistas: por serem negros carregavam consigo uma inclinação a imoralidade e ao crime, além de serem uma degeneração da espécie humana. A burguesia não encontrou outra solução que não fosse os excluir dos centros urbanos, os colocando nas favelas e periferias.

Coronavírus e a questão negra

Duas imagens históricas são importantes para essa reflexão sobre o coronavírus e a questão negra. Um escravo de ganho, conhecido como “escravo tigres”, percorriam as cidades recolhendo dejetos de urina e fezes das casas dos senhores, responsáveis por esse transporte, durante o percurso a fezes caiam em seu corpo faziam listras que se alternavam entre a cor negra do escravizados e as fezes, uma abominável dimensão das relações escravistas. Outro, Toussaint L’Overture, revolucionário negro da colônia de São Domingos, dirigente das revoltas escravas na ex-colônia francesa que culminou na Revolução do Haiti, uma parte importante da história dos negros e dos trabalhadores. Imagens tão distintas e distantes na experiência histórica carregam algo em comum: a liberdade é uma condicionante da saúde do negro.

A esse respeito, movimentos sociais em meados nos anos 1970 e no final dos anos 1980, no processo de redemocratização, se organizaram a partir de reivindicações sanitárias e sociais para pautarem frente ao estado questões referente à saúde e por essa via a saúde da população negra. Nesse sentido, não apenas reivindicaram um sistema de saúde que atendesse as demandas mais sentidas pelos trabalhadores negros, mas também quais determinantes sociais estão inteiramente relacionados ao problemas de saúde dos negros. Os negros recebem salários inferiores às pessoas brancas, as mulheres negras recebem ainda menos e estão em postos de trabalho precarizados, com as piores condições de trabalho; a taxa de pobreza da população negra é de 32,9%, a dos brancos 15,4%; a taxa dos que não possuem esgotamento sanitário por rede de coletora ou pluvial são 26,5% dos brancos, entre os negros é 42,8%; no Rio de Janeiro 30,5% da população negra reside em aglomerados subnormais, 14,3% é percentuais das pessoas brancas na mesma situação; das que não possuem abastecimento de água por rede geral 17,9% fazem parte da população negra e 11,5% da população branca [7].

A crise econômica que se aprofundou com o novo coronavírus recolocou o debate das condições sanitárias e a precariedade dos serviços de saúde em relação à população negra e às favelas. Essa crise mostrou que as quarentenas não são efetivas nas favelas, porque muitos moradores vivem com vários parentes em casas de pequenos e poucos cômodos, tornando o isolamento social, política defendida por governadores como Dória e Witzel, assim como o ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta e partes dos militares, ineficiente nas favelas e nas periferias. A falta d’água em algumas favelas, a precariedade do saneamento básico e do sistema de saúde que sofreu cortes ao longos anos por todos esses políticos, só demonstra que é por culpa deles que a favela e os trabalhadores se encontram numa situação tão precária ra enfrentar a pandemia. Soma-se a isso, outra “solução” que todas as alas do regime convergem, em salvar os capitalistas e não os trabalhadores, demitindo, reduzindo salários e oferecendo 600,00 reais o que na prática significa que ou morrem pelo vírus ou morrem de fome, enquanto garantem bilhões aos bancos.

Por outro lado, trabalhadores e jovens vem expressando um sentimento legítimo de solidariedade organizando vaquinhas online, distribuindo na comunidades álcool em gel, máscaras, cestas básicas, kits de higienização. As favelas podem vir ser palcos de grandes revoltas populares, a repressão policial que desde o ano passado deixou milhares de mortos nas favelas no Rio de Janeiro protagonizou um verdadeiro massacre que colocou centenas na ruas por conta do assassinato pequena Ágatha, assim como a chacina da favela de Heliópolis comoveu trabalhadores e jovens pelo Brasil todo. Mas essa ofensiva contra os negros que vem se intensificando indica como setores do regime que se diferenciam em como lidar com o coronavírus, convergem em suas políticas autoritárias contra os negros.

A burguesia, como vimos historicamente, sempre reforça suas formas de dominação quando se encontra frente às crises do capitalismo, a medida em que se aprofunda a crise a pandemia vá deixando milhares de mortos, a burguesia deve fazer a escolha de aprofundar o racismo estrutural como forma de encontrar uma saída para essa crise. O primeiros passos foram dados, uma remuneração de 600,00 reais ou 1.200,00 reais que a precariedade das condições de vidas das pessoas que habitam as favelas, a princípio pode parecer muito dinheiro, no entanto comparado com os 1,2 trilhões dado aos bancos é muito pouco para um trabalhador sobreviver ainda mais numa situação tão adversas onde a alimentação sofre especulação, o álcool em gel está caro. O os governos podem garantir e tem dinheiro para isso é que mantenham os empregos com remuneração e pros autônomos uma renda mínima para sobreviverem. As favelas permanecem sem água e sem EPI’s, ao mesmo tempo que as “autoridades sanitárias” mentem ao dizer que ainda são poucos os números de comunidades com covid-19, já que não tem testes para todos os moradores de favela e periferia. Muitos estão indo trabalhar, por estarem em trabalhos essenciais como saúde, limpeza, alguns ramos da produção, alimentação, etc, ou por pura ganância dos capitalistas como acontece com os trabalhadores de telemarketing. No percurso do trabalho pra casa pode ser contaminar nos transportes públicos e acabar trazendo para dentro de casa o vírus, contaminando seus familiares.

O que precisa ser dito é que essas medidas que não garantem o mínimo para preservação da vida dos trabalhadores nas favelas e em seus postos de trabalho não podem ser medidas se não a partir de um marcador social e racial, isto é, do racismo. As subnotificações já estão sendo usadas indiscriminadamente para mentir sobre os números de mortos, infectados e suspeitos, algo que só pode ser combatido com testes massivos. Abre à burguesia a possibilidade de aprofundar o racismo, tornando os negros o grupo social ainda mais atingindo pelo covid-19, convertendo numa realidade ainda mais racista algo já anunciado por empresários como Luciano Hang disse que “não podemos para por 7 mil que vão morrer”.

Em outras palavras, o capitalismo é uma condicionante fundamental da saúde dos negros, das condições precárias de moradias, saneamento básico, sistema de saúde, etc. Na verdade a crise do coronavírus coloca a necessidade de um sistema de saúde 100% estatal e centralizado, sob controle dos trabalhadores da saúde e dos usuários, mas também a reforça a necessidade de uma luta antiracista classista que coloque em questionamento os lucros da burguesia, onde os trabalhadores estejam controlando a produção, criando mais camas para leitos, organizando o abastecimento de água, produzindo álcool em gel, respiradores de UTI, etc. Uma luta antiracista que também seja anti imperialista defendendo a necessidade do não pagamento da dívida pública que enriquece os banco estrangeiros, defendendo sob a bandeira da auto organização os setores da nossa classe que podem sofrer mais com essa crise, as mulheres, os negros e imigrantes.

Notas:
1 Sidney Chalhoub, “Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial.”, 1ª ed., 1996.
2 Cecília Coimbra, “Operação Rio: o mito das classes perigosas: um estudo sobre a violência urbana, a mídia impressa e os discursos de segurança pública.”, 1ª ed. 2001.
3 Ibidem, p.100.
4 Ibidem, Idem.
5 Lilia Moritz Schwarcz. “O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930”, 1993, p. 65
6 Ibidem, p.70.
7 IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de População e Indicadores sociais, 2019.

¹Ver: Lélia Gonzales e Carlos Hasembalg, “Lugar de negro”, 1982. Petrônio Domingues, “Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos históricos”, 2007.
²Instituto de Pesquisas e Estudos de Mercado (IPEME). Favelas e favelados do Distrito Federal, 1957.
³Ver: Marco Pestana, “Golpe de 1964, ditadura e favelas cariocas”. In.: Badaró e Vega (Orgs.), “Trabalhadores e ditaduras: Brasil, Espanha e Portugal”, 2014.




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