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TEORIA | Existências e resistências: um chamado ao internacionalismo anticapitalista

quarta-feira 24 de fevereiro de 2021 | Edição do dia

Os estudos que de algum modo visualizam o capitalismo como um sistema possibilitador de um desenvolvimento humano pleno se apresentam em narrativas de lutas sociais que caminharam em direção à consolidação do Estado de Bem-Estar Social. Contudo, a implantação de um Bem-Estar verdadeiro se restringiu a alguns poucos países e, atualmente, não há sinais de expansão de políticas de proteção social generalizada; pelo contrário, o aumento da pobreza, as crises humanitárias, o extermínio de populações inteiras, o aprofundamento das diferenças entre os mais ricos e os mais pobres indicam a atualidade das colocações de Karl Marx e Friedrich Engels no Manifesto Comunista, apesar dos apontamentos críticos acerca do caráter panfletário da obra.

O modelo de globalização iniciado no século XIX e acentuado no século XX, em grande medida possibilitado pela queda das barreiras de comunicação entre os países, teve por base uma nítida divisão internacional marcada, por um lado, pelo acúmulo de capital e, por outro, pela concentração de precariedades. Eis o retrato daquilo que delineou uma divisão internacional do trabalho com o estabelecimento de um globalismo, a partir do qual as barreiras físicas e de comunicação não se apresentavam mais como um entrave ao estabelecimento das relações entre os países e os seres humanos.

Todo esse processo de facilitação das relações possibilita, ao mesmo tempo, para além de uma mundialização da exploração de uns pelos outros, que estudos sejam realizados no sentido de compreender o percurso histórico traçado pelos diferentes povos do mundo, não mais se restringindo a análises lineares e de ocultação dos processos de extermínio e exploração de seres humanos - que possibilitou e em grande medida continua a possibilitar o acúmulo de riquezas e o gozo de recursos naturais, tecnológicos e humanos por parte de poucas e poucos. Assim, as contribuições da compreensão histórica desses processos e dos mecanismos de resistência a eles relacionados não podem ser menosprezados; mais do que isso, eles fornecem importantes aportes para pensar em possibilidades de construção de alternativas reais e possíveis para o modelo socioeconômico vigente.

Um exemplo de análise da prática revolucionária [1] no intuito de extrair possíveis contribuições é aquele realizado por Marx a respeito da Comuna de Paris, apontada como a primeira experiência de tomada do poder pela classe operária [2]. Na ocasião, chama atenção também o importante papel desempenhado pela Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), da qual Marx fez parte de forma ativa na época, o que suscita também um debate acerca da necessidade e possibilidade de se retomar uma perspectiva internacionalista das lutas sociais.

Ao que parece, a pretensão do autor quanto à Comuna de Paris foi retratar aquele processo de revolucionamento com vistas a extrair daquela experiência contribuições para pensar processos possíveis de mudança de paradigma de relações de trabalho/modo de produção. Nesse sentido valem os apontamentos de Raya Dunayevskaya, que analisou os Cadernos etnológicos, uma das últimas anotações feitas por Marx. De acordo com ela, nesses escritos, “seu foco era aquela praxis revolucionária através da qual a humanidade se desenvolveu desde o comunismo primitivo até o período em que Marx viveu” [3]. Tal constatação é essencial para compreender a relevância do estudo que aqui se pretende realizar.

Marx ressalta que, em seu entendimento, só existe uma ciência, que é a ciência da história [4], no sentido de que as condições sociais e históricas em que os seres humanos se inserem impactam em grande medida naquilo que a eles se apresenta como horizontes de atuação e perspectivas de transformação da sociedade [5]. Desse modo, compreende-se que os aportes consubstanciados na análise dos processos específicos e locais de revolucionamento devem ser considerados quando se pretende pensar nas possibilidades de resistência e construção de novas formas de existência em face das opressões do tempo presente.

Contrariamente ao que se prega em algumas vertentes do pensamento crítico, o percurso interligado entre os países e seus respectivos processos de desenvolvimento não foi deixado de lado por Marx e Engels. “Los Grundrisse, al revelar el análisis marxista de las formas económicas precapitalistas, especialmente ‘El modo de producción asiático’, pusieron en claro al mismo tiempo cuán erróneo era considerar que Marx sólo se había interesado en el Occidente” [6].

N’O Capital, por exemplo, Marx dedica um capítulo à análise do desenvolvimento histórico do sistema capitalista de produção [7], passando por temas como expropriação de terras, pauperismo, urbanização, industrialização. No capítulo seguinte, o autor trata dos processos de escravização, exploração e dizimação de povos inteiros a partir das relações de colonização [8]. Mais do que isso, em alguns momentos, Marx e Engels escreveram especificamente sobre a América Latina e, também, escreveram sobre a China, que à época “era a mais populosa região do mundo, com 400 milhões de habitantes em 1834” [9].

Quando se fala sobre o desenvolvimento da China a partir do século XIX, verifica-se que “o saque internacional e histórico contra a China, fortemente enraizado naquele século XIX de Marx e Engels, só será detido através da confluência da grande massa camponesa pobre rebelada, resultando na tomada do poder em 1949 e nas transformações sociais de fundo” [10].

Toda essa reflexão se faz necessária para que se comece a compreender os modos de existência e resistência atrelados às demandas sociais quando da inserção dos países na ordem capitalista global, ou seja, no momento de entrada na divisão internacional do trabalho. Especificamente sobre a ofensiva Ocidental no gigante asiático, é esclarecedor o trecho a seguir:

O “século das humilhações” da China (período de 1840 a 1949, a saber, desde a Primeira Guerra do Ópio à conquista do poder pelo PCCh) coincidiu historicamente com o século da mais profunda depravação moral do Ocidente: guerras do ópio com a devastação infligida a Pequim no Palácio de Verão, com a destruição e pilhagem de obras de arte, expansionismo colonial e recursos a práticas escravagistas ou genocidas em detrimento das “raças inferiores”, guerras imperialistas, fascismo e nazismo, com a barbárie capitalista, colonialista e racista que atingiu o auge.[11]

Falar sobre a China no momento de seus primeiros contatos com o sistema capitalista nos possibilita compreender como que, após a afirmação deste sistema socioeconômico, os processos de revolucionamento ocorridos nas diferentes partes do mundo, de uma forma ou de outra, estão ligados à consolidação, manutenção e generalização do capitalismo. Somente por meio do reconhecimento desta interdependência é possível compreender que, ainda que cada uma das localidades guarde suas especificidades, as possibilidades de libertação humana quanto à produção e reprodução da vida não podem alcançar a sua plenitude por meio de mudanças que se restrinjam a um só país.

A pretensão de se internacionalizar a luta pela libertação humana não é nova; certos movimentos revolucionários do século XIX e meados do século XX inauguraram a ideia de construção de um internacionalismo proletário. A mais substancial das propostas de se promover alterações radicais nas relações sociais que representem um contraponto à sociabilização capitalista está consubstanciada nas Internacionais, notadamente na Primeira Internacional, que se consolidou à época como a já citada anteriormente Associação Internacional dos Trabalhadores. Karl Marx fez parte da Primeira Internacional, por meio da militância e da escrita de diversos textos [12].

O caráter cosmopolita das Internacionais deixou um importante legado para os movimentos de resistência à exploração humana, exercendo grande influência na tentativa de construção de um arcabouço normativo de proteção social a nível internacional. Suas contribuições são narradas nas descrições mais detalhadas sobre o processo de conquista e consolidação das proteções sociais ao ser humano que trabalha [13].

Ocorre que, tradicionalmente, a ideia de um internacionalismo operário direciona pesquisadoras e pesquisadores a um estudo que tem início nas primeiras formas de resistência coletiva da Revolução Industrial, mas que salta para a Organização Internacional do Trabalho (OIT) como a proposta, por excelência, de proteção social a nível internacional. Isso porque ela surgiu e se consolidou no âmbito internacional como a organização que faz resistência à exploração de pessoas, se colocando como a responsável pela elaboração de diversas normas em matéria de proteção social no campo trabalhista.

Nesse sentido, a construção do arcabouço normativo da OIT segue a via tradicional de afirmação do direito ao trabalho como um direito humano. A questão do “sujeito trabalhador” é permeada por fatores jurídicos desde a preponderância do uso da mão de obra escrava até o reconhecimento da liberdade como valor universal e intrínseco a todo ser humano. Assim, as normas jurídicas interpuseram-se e interpõem-se entre o fornecimento e a utilização da força de trabalho humana, de modo que o direito é o sistema normativo utilizado para tanto.

No momento histórico de surgimento do capitalismo, a exploração humana foi legitimada pela figura da contratualização: quando se estabelece a liberdade como valor universal, intrínseco a todo ser humano, generaliza-se a possibilidade de compra e venda da mercadoria força de trabalho por meio do estabelecimento de um contrato. Nas palavras de Karl Marx:

(...) um só pode se apropriar da mercadoria alheia e alienar a sua própria mercadoria em concordância com a vontade do outro, portanto, por meio de um ato de vontade comum a ambos. Eles têm, portanto, de se reconhecer mutuamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, seja ela legalmente desenvolvida ou não, é uma relação volitiva, na qual se reflete a relação econômica. [14]

Nesse contexto, a ideia de sujeito ganha destaque, uma vez que este reconhecimento de liberdade e igualdade nada mais é do que a substância daquilo que no Ocidente se denominou sujeito de direitos [15]. Trata-se (o sujeito de direitos) de uma categoria jurídica que está fortemente atrelada à forma mercadoria [16] e que teria uma relação íntima com o desenvolvimento da sociedade capitalista [17], no entender de certos autores.

Ainda que se possa falar de todo um percurso histórico de desenvolvimento da ideia de sujeito de direitos, o desenvolvimento completo desta categoria se deu sob a vigência do capitalismo. Marx tece duras críticas às pretensões de universalização da igualdade e da liberdade:

O contrato é o resultado, em que suas vontades recebem uma expressão legal comum a ambas as partes. Igualdade, pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade, pois cada um dispõe apenas do que é seu. Bentham, pois cada um olha somente para si mesmo. [18]

Como dito anteriormente, muitas vezes ouvimos falar sobre o Estado de Bem-Estar como o modelo a ser buscado, mas ignora-se que em poucos países ele, de fato, é vivenciado. Mais do que isso, encobre-se o modo como a construção do Bem-Estar em alguns países está intrinsecamente ligado à exploração humana nas demais localidades do mundo, naqueles países em que esse modelo nem chegou a ser implantado ou o foi de forma muito incipiente [19].

Todo o processo histórico de construção desse modelo está indiscutivelmente pautado nas seguintes relações: países centrais, países periféricos; exploradores, explorados; colonizadores, colonizados. E sequer seria possível universalizar este almejado Bem-Estar na vigência do modo de produção capitalista, uma vez que este se sustenta exatamente por meio da manutenção de pessoas em condição de precariedade e miséria, por meio da existência de oprimidas(os) e exploradas(os). Ao contrário da promessa capitalista de que com o tempo todas e todos teriam condições dignas de vida, o que se verifica em pleno século XXI é o aguçamento das desigualdades: miséria extrema de um lado, opulência de outro.

Dessa forma, a perspectiva da internacionalização de um movimento revolucionário não pode ser deixada de lado. É preciso passar pelas discussões acerca das possibilidades de desenvolvimento de um novo modo de produção socioeconômico. O contexto mundial atual, no qual se agudizam as cisões entre os mais ricos e os mais pobres, demanda o esforço de buscar a construção de novas formas de existir e resistir.

[1] “Sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário”, como afirma Lenin na obra Que fazer? E por revolução compreendemos aqueles movimentos intrinsecamente ligados às forças produtivas, resultando em reorganização da divisão do trabalho, como é possível extrair dos apontamentos Marx. Sobre o pensamento de Marx e Engels acerca de revolução: “A partir do que foi dito acima contra Feuerbach, resulta que as revoluções que ocorreram até aqui levaram obrigatoriamente a novas organizações políticas no âmbito da divisão do trabalho”. In MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). Trad. Rubens Enderle et al. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 368.

[2] MARX, Karl. A guerra civil na França. Trad. e notas Rubens Enderle. Apresentação Antonio Rago Filho. São Paulo: Boitempo, 2011.

[3] DUNAYEVSKAYA, Raya. Rosa Luxemburgo. La liberación femenina y la filosofía marxista de la Revolución. Traducción de Juan José Utrilla. México: Fondo de Cultura Económica, 2013. p. 248. Tradução livre.

[4] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). Trad. Rubens Enderle et al. São Paulo: Boitempo, 2007. Nota d, p. 86.

[5] MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. Trad. e notas Nélio Schneider. Prólogo Herbert Marcuse. São Paulo: Boitempo, 2011. p. 25.

[6] DUNAYEVSKAYA, Raya. Rosa Luxemburgo. La liberación femenina y la filosofía marxista de la Revolución. Traducción de Juan José Utrilla. México: Fondo de Cultura Económica, 2013.

[7] MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I – o processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.

[8] MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I – o processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.

[9] DANTAS, G. In MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Sobre a China. Prefácio. 1. ed. São Paulo: Edições ISKRA, 2016. p. 05.

[10] DANTAS, G. In MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Sobre a China. Prefácio. 1. ed. São Paulo: Edições ISKRA, 2016. p. 13.

[11] LOSURDO, Domenico. In JABBOUR, Elias. China hoje: Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de mercado. Apresentação Armen Mamigonian. Prefácio Domenico Losurdo. 1. ed. São Paulo: Anita Garibaldi; Fundação Maurício Grabois; Paraíba: EDUEPB, 2012. p. 56.

[12] INTERNACIONAL COMUNISTA; MUSTO, Marcello. Trabalhadores, uni-vos! Antologia política da I Internacional. São Paulo: Fundação Perseu Abramo: Boitempo, 2014. p. 15.

[13] REIS, Daniela Muradas. O princípio da vedação do retrocesso no direito do trabalho. São Paulo: Ltr, 2010.

[14] MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I – o processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 159.

[15] “A categoria operativa a partir da qual os discursos e práticas jurídicos vão ser estabelecidos, a categoria do sujeito de direito, pressupõe justamente a liberdade e a igualdade como seus elementos constitutivos. O sujeito de direito (ou a pessoa de direito) é aquele a quem se reconhece a capacidade (o poder) de realizar atos jurídicos; é aquele cuja vontade (que se supõe livre) tem eficácia jurídica (e, portanto, social). Em termos práticos, só um sujeito de direito efetivamente capaz (apto a manifestar livremente sua vontade) tem o poder de contratar (comprar, vender, alugar etc) e de reclamar contra outros sujeitos perante os aparatos institucionais de solução de conflitos o respeito dos seus direitos”. In RAMOS, Marcelo Maciel. Poderá o direito ser inclusivo? O alcance de práticas jurídicas inclusivas em um contexto estrutural de produção de sujeitos marginais p. 23. Manuscrito.

[16] PACHUKANIS. Evgeni. A teoria geral do direito e o marxismo e ensaios escolhidos. (1921-1929). Marcus Orione (coord.) Trad. Lucas Simone. São Paulo: Sundermann, 2017.

[17] KASHIURA JR., Celso Naoto. Sujeito de Direito e capitalismo. 1. ed. São Paulo: Outras expressões; dobra Universitário, 2014.

[18] MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I – o processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.

[19] ANTUNES, Ricardo L. C. O caracol e sua concha: ensaio sobre a nova morfologia do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2005.




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