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CINEMA | Estreia de ’Nise, o coração da loucura’: inconsciente, arte e política

Estreiou nessa quinta-feira, 21, o filme ’Nise, o coração da loucura’, que fala sobre o trabalho da psiquiatra Nise da Silveira no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II na década de 1940. Ela se tornou símbolo da luta contra o tratamento brutal a que eram submetidos os pacientes dessas instituições.

sexta-feira 22 de abril de 2016 | Edição do dia

O filme, dirigido por Roberto Berliner, apresenta Nise da Silveira vivida pela atriz Glória Pires e retrata o período de seu trabalho que ficou mais conhecido pelo grande público, envolvendo o trabalho com internos do manicômio de Engenho de Dentro a partir das artes visuais, sobretudo a pintura.

Vale a pena conferir o lançamento, principalmente para conhecer um pouco sobre a incrível mulher que foi Nise; mas, infelizmente, com a marca Globo Filmes e seu modo “açucarado” de apresentar a luta de Nise, não se pode dizer que o filme faça jus à trajetória dessa que é até hoje uma das grandes inspirações da luta antimanicomial e contra a discriminação aos que tem um psiquismo diferente, sumariamente reunidos sob o rótulo de “loucos”, “malucos” ou “doentes”. Hoje, vem ganhando espaço o termo “psicofobia” para designar o preconceito social que acomete os que padecem de “doenças psíquicas”; mas mesmo o termo “doente mental” pode e deve ser bastante questionado. Como discutiu Lacan, a psicose é, antes de tudo, uma forma distinta de se relacionar com a linguagem, o que não necessariamente implica em algum tipo de doença.

Uma trajetória política e de perseguições

Nise foi uma pioneira nesta luta em nosso país. O filme se inicia no ano de 1944, quando ela retorna ao trabalho na saúde mental após um longo período de afastamento, a que o filme alude mas que escolhe não explicar. Tal escolha não é incidental, e visa dar tons mais amenos à luta de Nise, que tinha uma relação indissociável com a política. Entre 1936 e 1944 ela esteve afastada do serviço público não por uma escolha pessoal, mas sim por ser uma perseguida política do regime ditatorial e ferrenhamente anticomunista de Getúlio Vargas.

Antes desse “exílio profissional”, Nise cumpriu pena de 18 meses em presídio, ao lado de figuras como Graciliano Ramos, que retratou esse momento nas brilhantes páginas de suas “Memórias do Cárcere”. O motivo da prisão de Nise foi a denúncia feita por uma enfermeira, colega de trabalho, de que a psiquiatra possuía livros marxistas. Ela foi presa em 1936, logo após o fracassado levante aventureiro dirigido pelo PCB e esmagado com facilidade pelo governo, consagrado na historiografia burguesa com o infeliz nome de “intentona comunista”. Esse episódio foi o suficiente para que se enfiasse milhares de pessoas nas cadeias do regime varguista, entre militantes, operários, intelectuais, artistas, simpatizantes e mesmo “azarados” pegos ao acaso. Lá muitos deles permaneceram anos, outros tantos foram vítimas de torturas monstruosas, como as que descreve Fernando Morais em seu livro “Olga” (outra história, aliás, romantizada e pasteurizada pela Globo Filmes e dirigida por Jayme Monjardim, em que a militante stalinista Olga Benário, que foi entregue por Vargas aos campos de concentração nazistas aparece em uma versão amena vivida por Camila Morgado).

Nise era alagoana, como seu parceiro de prisão, Graciliano – coisa que ninguém poderá suspeitar a partir da interpretação de Glória Pires. E, como ele na época de sua prisão, não era militante política, mas simpatizante das ideias marxistas. Foi a única mulher a se formar em medicina na turma de 1926 da Faculdade de Medicina da Bahia, entre 157 homens; uma das primeiras médicas diplomadas do Brasil. E, já no Rio de Janeiro, ao começar a atuar como psiquiatra em 1933, com 27 anos, dá início ao que seria sua forma de atuação política: a luta contra o desumano tratamento oferecido aos internos dos manicômios.

Os manicômios como depósitos de gente e casa de torturas

No filme de Berliner, podemos dizer que é até bastante amena a forma como se retrata o tratatamento dos pacientes. Outros filmes mais ousados deram mostras mais contundentes do que ocorria nos manicômios, como “Bicho de Sete Cabeças”, de Laís Bodanzky, em que Rodrigo Santoro vive o papel de Austregésilo Carrano Bueno nessa belíssima adaptação de seu livro autobiográfico “Canto dos Malditos”, no qual conta a história de sua internação em um hospital psiquiátrico nos anos 1970 por ser usuário de maconha. Seu livro era tão certeiro na crítica aos métodos psiquiátricos utilizados que os médicos retratados resolveram processar o autor pela imagem que ele apresentava deles em seu livro. O Tribunal de Justiça do Paraná, em mais uma dessas mostras de que a nossa justiça é feita por e para os ricos, condenou Austragésilo a pagar 60 mil reais em danos morais, e posteriormente esses médicos ainda conseguiram na justiça a censura do livro, impedindo sua livre divulgação e garantindo a primeira censura a um volume depois do fim da ditadura, decisão que posteriormente foi derrubada. Trinta anos antes de Austregésilo passar por essa experiência, que incluía recorrentes torturas, podemos imaginar que a situação era bastante pior.

Algumas passagens de “Nise, o coração da loucura” são capazes de nos mostrar relances disso, como quando se discute entre os médicos de Engenho de Dentro o uso da lobotomia e da Eletro-Convulso Terapia (ECT). A lobotomia foi uma técnica desenvolvia em 1935 e que garantiu a seu criador, o neurologista português António Egaz Moniz, o prêmio Nobel de Medicina em 1949. Consistia em separar os lobos frontais do tálamo no cérebro, e, como se conta no filme sobre Nise, chegou a ser praticada em massa em pacientes psiquiátricos com o uso de um picador de gelo. Essa técnica abominável foi utilizada massivamente como forma de punição a comportamentos sociais indesejáveis, particularmente nos EUA, onde ganhou imensa popularidade e fez cerca de 50 mil vítimas, sendo amplamente utilizada contra comunistas que eram internados em hospitais psiquiátricos. Foi popular também para crianças com “mau comportamento”. O procedimento é irreversível. No cinema, temos também outros filmes onde se denuncia o uso da lobotomia, como o incrível clássico estrelado por Jack Nicholson, “Um Estranho no Ninho”, uma das mais emblemáticas denúncias dos manicômios nas telas do cinema.

A arte como linguagem do inconsciente

O filme de Berliner e a atuação sempre mais ou menos igual de Glória Pires (que chegou a ser premiada no Festival de Tóquio por sua representação de Nise) apenas resvalam nas questões mais interessantes levantadas pelo trabalho de Nise. Uma delas é a questão da psicose e a linguagem. Sendo discípula de Carl Gustav Jung, Nise procurou na pintura um caminho para a expressão do inconsciente de seus pacientes, todos eles psicóticos com quadros bastante agravados, muitos deles como resultado do próprio tratamento isolador e violento que recebiam na instituição. O filme trata dessa relação, mas não aprofunda; mostra cartas que Nise trocou com Jung, mas deixa de fora a visita que ele fez ao Brasil para conhecer o trabalho de Nise. Jung foi um dos mais proeminentes discípulos de Freud, tendo rompido com ele de forma radical por divergências de pontos centrais da teoria freudiana, como a centralidade da sexualidade em sua teoria psíquica, e também, como não poderia deixar de ser e foi em cada ruptura da escola freudiana, por disputas de ego.

A partir daí, Jung cria a Psicologia Analítica, tomando questões da psicanálise e acrescentando outras bastante controversas, como uma visão essencialista pautada por uma visão mística e que supera em muito os problemas já verificados em Freud na sua tentativa de universalizar o complexo de Édipo. Em que pesem os inúmeros problemas de Jung, não apenas teóricos como políticos (como o desenvolvimento de uma teoria do “inconsciente ariano” que veio bem a calhar para o nazismo alemão), ele trouxe à psicologia contribuições inegáveis. Foi, por exemplo, o primeiro a aplicar à psicose o tratamento psicanalítico (Freud considerava isso impossível pois julgava inviável o estabelecimento de uma relação transferencial entre o eu fragmentado dos psicóticos e a pessoa do analista).

Essa noção de que a psicose, seja nos casos de paranoia ou de esquizofrenia, está relacionada a uma fragmentação do eu, a um tipo de passagem distinta no processo do narcisismo primário, quando passamos a formar uma ideia de identidade própria, de um eu separado do mundo, aparece com força no trabalho de Nise. A pintura é uma forma de procurar a integração narcísica, a recomposição de um eu fragmentado, e isso fica claro inclusive no filme. Rafael, que passa de desenhar traços separados para desenhos contínuos e com uma ideia totalizante; Fernando, que passa de resgatar fragmentos de um passado de sua infância para compor o quadro de uma sala onde viveu o episódio que chegou a desencadear sua primeira crise. Ou nos cachorros que são adotados pelos internos, e que ajudam-nos cotidianamente a estabelecer vínculos afetivos e uma ponte para o outro, servindo como uma base para o alicerçamento de sua própria subjetividade. São pequenos pedaços em que aparece o que há de mais revolucionário no trabalho de Nise, de ajudar a construir um eu onde a instituição só reforçava a impossibilidade de estabelecer laços e vínculos sociais, e nesses detalhes também está o que de melhor o filme sobre Nise consegue captar de sua atuação contra a instituição manicomial.

Nise e Mario Pedrosa: a terapia e a política

Outro aspecto interessantíssimo de sua obra é a atenção que seu trabalho atraiu de Mario Pedrosa, que tornou-se um dos maiores entusiastas e divulgadores de sua atuação, certamente tendo contribuído muito para o reconhecimento de Nise. Pedrosa, nessa época já um consagrado crítico de arte, tem uma trajetória e um trabalho que também merece ser conhecido por todos aqueles que lutam contra essa sociedade de miséria. Na década de 1930, Pedrosa foi um dos fundadores do movimento trotskista no Brasil, tendo militando na Liga Comunista Internacionalista (LCI), a sessão brasileira da IV Internacional dirigida por Leon Trotski em sua luta contra o stalinismo. A LCI, apesar de sua curta duração e de seu número reduzido de militantes, teve um papel político fundamental no país, lançando as sementes de uma organização revolucionária no país. No plano teórico, influenciou profundamente, por exemplo, a obra de Caio Prado sobre a formação do Brasil colonial e o estabelecimento do capitalismo no país (influência que, apesar de nunca ter sido publicamente reconhecida por Caio Prado, que procurava manter boas relações tanto na academia quanto com o stalinismo, pode ser verificada na correspondência trocada entre ele e os militantes da LCI). No plano político, a LCI atuou de maneira determinante na conformação da Frente Única Antifascista (FUA), que organizou o ataque à manifestação fascista dos integralistas brasileiros na Praça da Sé, no episódio que ficou conhecido como “A revoada dos Galinhas Verdes” e foi fundamental para assentar um golpe de morte a Plínio Salgado e seu fascismo à brasileira.

Desde a época da LCI, a atuação de Pedrosa na discussão de arte era muito presente. Nos jornais da FUA encontram-se textos assinados por ele discutindo cinema, artes visuais etc. Foi também através do trotskismo que conheceu a discussão entre o movimento surrealista e a revolução, feita por André Breton e Trotski no Manifesto da FIARI (Federação Internacional por uma Arte Revolucionária e Independente). Seu interesse pelo trabalho de Nise deriva daí, da forma como o inconsciente dos pacientes do Engenho de Dentro se expressa nas suas obras de arte. Sem dúvida, os diálogos travados entre Pedrosa e Nise no filme estão bem aquém das reflexões que se abriram nesse contato, mas ao menos se apresenta ao espectador essa relação revolucionária.

É Pedrosa que, no filme, aponta para o caráter eminentemente político da atuação de Nise (na vida real essa sem dúvida já tinha muito mais consciência disso, mas o filme procura apagar a atuação política dela). Mas, apesar dos contornos amenos que procura dar à política de Nise e seu trabalho, há no filme um diálogo que merece ser lembrado entre Mario Pedrosa e Emygdio de Barros, paciente de Nise que chegou a firmar carreira como reconhecido pintor, participando inclusive da Bienal de Veneza. Pedrosa, vendo seu trabalho, lhe diz: “Você é um dos maiores pintores do Brasil”, ao que Emygdio responde: “Eu não sou pintor, sou operário. Mas, enquanto eu estou aqui, vou pintando”. Essa resposta, que é um soco no estômago dos que valorizam a arte como um ofício para “eleitos”, acima do trabalho “mundano” de um operário, é brilhante. Aponta para aquilo que lutamos: uma sociedade em que a arte não é mercadoria ou fetiche, mas parte da vida.

A obra de Nise aponta para questões fundamentais que se deixam entrever no filme. A de que a “loucura” é uma resposta, no campo do simbólico e da linguagem, às questões sociais; a de que a luta pela cura é a luta por integração social, por respeito às diferenças, pela possibilidade de destruir as instituições que massacram as pessoas e oprimem em nome de uma ordem social pautada pelo lucro. E que essa luta é profundamente política e humana.




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