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OPINIÃO | Escravidão, racismo e capitalismo

Daniel AlfonsoSão Paulo

quinta-feira 13 de agosto de 2015 | 04:20

Racismo é um fenômeno tipicamente capitalista. Neste breve artigo nossa intenção é deixar clara a relação entre o comércio de escravos e o desenvolvimento das relações capitalistas de produção, por um lado; e, por outro, o surgimento da opressão baseada em diferenças raciais durante o período de acumulação primitiva de capitais e o alargamento de sua abrangência a partir do capitalismo, em especial em sua fase imperialista. São questões fundamentais para o marxismo, nossa intenção é apenas apontar alguns traços largos.

Para entendermos a relação entre o surgimento do racismo e o desenvolvimento do capitalismo, é fundamental virarmos os olhos para a escravidão negra, o tráfico de escravos e alguns aspectos da ideologia surgida para justificar esse lucrativo negócio. A sociedade europeia que colocou de pé as grandes cidades portuárias de Liverpool, Londres, Birmingham, Lisboa, Amsterdã, surgiu das entranhas de um mundo que já não era capaz de satisfazer as necessidades por ele mesmo criadas. O que hoje em grande medida é conhecido como feudalismo, em última instância todo um conjunto de preceitos culturais, econômicos e sociais organizados em volta de um modo de produção de alcance limitado e profundamente hierarquizado, entrou em crise definitiva no final do século XIV. No final do século XV, grandes transformações já haviam acontecido, outras estavam a caminho, mas o fundamental para nós se encontra no fato do longo, penoso e tortuoso processo de acumulação primitiva de capitais, já estar em curso. É o momento da conquista de mais terreno econômico e político da burguesia – uma classe que já existia, mas que ao controlar os meios de produção também passa por um período de transformação, impulsionada pela ambição de conquistar cada vez mais espaço social e político. Ao mesmo tempo, é o processo histórico da formação da classe trabalhadora – uma nova classe social completamente despossuída de bens próprios suficientes que lhe possibilitasse viver de forma independente e, portanto, obrigada a vender sua própria força de trabalho. Entre outras medidas que “criaram” essa classe, está a expulsão dos camponeses do campo, a destruição da possibilidade de subsistência de um contingente enorme da população. Diversos pontos do mundo se conectaram de forma definitiva, e o espaço tocado pelo Atlântico teve um papel de destaque. O próprio Estado adquire funções mais centralizadoras. Marx resume assim esse momento: “A descoberta de ouro e prata na América, a extirpação, a escravização e o sepultamento em minas da população indígena daquele continente, o início da conquista e do saque da Índia e a transformação da África numa reserva de caça comercial aos negros são fenômenos que caracterizam a aurora da era da produção capitalista. Estes acontecimentos idílicos sãos os principais momentos da acumulação primitiva. Segue em seus calcanhares a guerra comercial das nações europeias que teve o mundo como campo de batalha. (...) Os diferentes momentos da acumulação primitiva podem ser atribuídos em particular a Espanha, Portugal, Holanda, França e Inglaterra, em ordem mais ou menos cronológica. Estes diferentes momentos são combinados de forma sistemática no fim do século XVII na Inglaterra; a combinação abrange as colônias, a dívida nacional, o moderno sistema de impostos e o sistema de proteção. Estes métodos dependem, em parte, da força bruta, como, por exemplo, o sistema colonial. Mas todos eles empregam o poder do estado, a força concentrada e organizada da sociedade, para apressar, como uma estufa, o processo de transformação do modo de produção feudal em modo de produção capitalista e para acelerar a transição.”[1]

Velha forma, novos objetivos

A escravidão fez parte de diversas sociedades antes do intenso tráfico de escravos africanos. Talvez os casos mais conhecidos sejam a Grécia Antiga e Roma. Depois da queda do Império Romano, a escravidão deixou de ser utilizada em grande escala (e mesmo em Roma, o caráter da escravidão era muito diferente da escravidão atlântica). Vários elementos se entrelaçaram para o ressurgimento do uso intensivo da escravidão como força de trabalho nas Américas. Dois dos principais foram a grande disponibilidade de terras e o próprio desenvolvimento do comércio de escravos em um lucrativo empreendimento. Havendo terras disponíveis e a possibilidade jurídica e econômica de trabalhadores virem a possuir sua propriedade, restringia-se os meios de incentivo econômico e fazia-se necessário aumentar o grau de coerção. Nas Américas esse processo não foi uniforme: nos Estados Unidos por muito tempo foi utilizado o trabalho dos servos (indentured servants), que trabalhavam sob contrato por tempo previamente determinado; no Brasil, uma complexa rede de trabalho coercitivo (incluindo a escravidão) de indígenas predominou por um século antes de escravos africanos dominarem a força de trabalho. Ao fim e ao cabo, a escravização de africanos e sua utilização nas plantations revelou-se um negócio altamente lucrativo e mais produtivo. Ao contrastar esse aspecto com os limites dos indentured servants, Williamsafirma: “Eis aí, portanto, a origem da escravidão negra. A razão foi econômica, não racial; não teve nada a ver com a cor da pele do trabalhador, e sim com o baixo custo da mão de obra.” Em grande medida o mesmo se pode dizer em relação ao trabalho indígena anterior ao trabalho escravo africano.[2]

É importante lembrar que as fazendas (plantations) produziam para o mercado externo, essencialmente a Europa. Como parte e resultado do processo da passagem das estruturas feudais para o capitalismo industrial, houve forte incremento do consumo em massa de determinados artigos. As plantations produziam para esse mercado. O algodão do sul dos estados Unidos impulsionou a crescente indústria de tecidos na Inglaterra; o açúcar foi um dos primeiros produtos de consumo de massa. Segundo Breitman: “O comércio de escravos e a escravidão produziram fortunas que assentaram as bases para a mais importante das primeiras indústrias do capitalismo, que por sua vez serviram para revolucionar a economia de todo o mundo”. Vale a pena continuar com Breitman: “Observamos, assim, lado a lado, em uma clara articulação das leis do desenvolvimento desigual e combinado, formas arcaicas pré-feudais e as mais avançadas relações sociais então possíveis no mundo pós-feudal. Aquelas estavam naturalmente à serviço deste, pelo menos durante os primeiros momentos de coexistência. ”[3] A escravidão não surgiu com a crise do feudalismo. Foi fundamental para que Roma se transformasse em Império; na Grécia Antiga era bastante comum; no Egito também. Inclusive existia em pequena escala na Europa antes mesmo da generalização do comércio. Entretanto, esta “já conhecida” organização da força de trabalho “serviu como uma luva” para as necessidades de um novo modo de produção que começava a ganhar forma.

Aqui podemos resgatar a ideia central desta primeira parte, em um sentido mais profundo. Tanto o comércio de escravos – e a consequente espoliação do continente africano de diversas maneiras – quanto a escravidão estão intimamente ligadas, ou melhor, fazem parte do processo do desenvolvimento do capitalismo. Dito de outra maneira, a existência de trabalhadores escravizados nas Américas, torturados sistematicamente para produzirem de acordo com os interesses do mercado global, fez parte (dadas as circunstâncias históricas concretas) do surgimento da classe trabalhadora – juridicamente livre das amarras do feudo e despossuída, “livre” para vender sua força de trabalho – e da conquista do posto de classe dominante pela burguesia [4].

De uma justificativa para a escravidão a uma força que oprime povos e divide a classe trabalhadora

A magnitude inédita do aprisionamento em massa de africanos, sua venda e utilização forçada como força de trabalho gerou suas próprias representações ideológicas; o racismo no centro – o próprio conceito de raças, uma construção social se desenvolve paralela e conjuntamente. Antes do capitalismo – incluindo seus momentos iniciais – não havia o conjunto das relações econômicas e sociais possíveis para o surgimento do racismo. Isso não significa, de maneira alguma, que não havia opressão baseada em diferenças; entretanto, a opressão de um grupo ou classe social sobre outra não se firmava exclusivamente no conjunto de características baseadas em diferenças raciais. São muitos os exemplos, mas ficamos com um. Segundo um sociólogo norte-americano: “(...)nós não encontramos preconceito racial até mesmo no grande império Helenístico que se estendeu, mais do que qualquer outro império europeu até o final do século XV, a territórios de povos de raças diferentes. Os gregos do período Helenístico possuíam um sentimento de pertencimento cultural, não racial, e portanto sua divisão básica dos povos do mundo se constituía entre gregos e bárbaros – os bárbaros tendo sido aqueles que não possuíam a cultura grega, especialmente sua língua (...)”[5].

Os séculos do comércio de escravos foram os mesmos de todas as consequências para a teoria política que o Iluminismo implica. Um tempo em que a desagregação da sociedade feudal abria espaço para uma sociedade menos hierarquizada, na qual cada vez mais as características do Homem tendiam ao universalismo. Algo inato aos escravizados deveria, portanto, justificar sua captura em massa, sua tortura, e a subordinação de suas vidas aos interesses dos comerciantes e senhores de escravos. Essa diferença primeiramente foi encontrada na cor da pele, e em seguida se estendeu a uma série de aspectos considerados “típicos” dos negros. A história prega peças e os escravos insurrectos de São Domingos no final do século XVIII protagonizaram parte dos atos mais radicais de uma revolução de tipo inédita em defesa de Igualdade, Liberdade e Fraternidade. Nesse sentido, não foi um racismo a-histórico que impulsionou a escravidão. Ao contrário, “A escravidão não nasceu do racismo: pelo contrário, o racismo foi consequência da escravidão”[6].

O racismo da nossa sociedade capitalista se expressa através de uma quantidade de números e dados. Alguns deles: segundo o IPEA, a expectativa de vida dos negros é de 66 anos, contra 76 anos da população branca; as taxas de desemprego são 50% superior entre negros; de acordo com o IBGE, o salário dos negros foi 57,4% o dos brancos. Os negros têm as piores condições de moradia, possuem os trabalhos mais precários, são vítimas do gatilho fácil da polícia, são maioria nas prisões, o adolescente negro tem 3,7 vezes mais chances de ser vítima de homicídio (também segundo o IPEA), e a lista de diferenças continua.

O racismo que surgiu com a escravidão, aprofundou ainda mais suas garras na sociedade capitalista, onde não há mais escravidão. Trata-se de um caso específico de ressignificação de uma ideologia a partir das transformações das condições que garantiram seu surgimento.

Se já não há mais a tortura sistemática de negros pelos donos de fazendas e engenhos, a ideologia racista encontrou terreno fértil em uma sociedade polarizada entre burgueses e proletários. O racismo ampliou seu sentido como forte ideologia que oprime os negros e divide a classe trabalhadora. Mais ainda, com o capitalismo imperialista se generalizou para outras raças e grupos sociais não diretamente identificados com a burguesia e os órgãos de poder. Em cada país ou região isso se expressa de forma distinta. Nos Estados Unidos a comunidade hispano-americana também sofre com opressão racial: seus membros vivem nas piores condições de moradia, são minoria nas universidades, recebem os menores salários, sua expectativa de vida é consideravelmente inferior ao dos norte-americanos brancos, enfim, seria possível listar uma série de aspectos que revelam o profundo racismo ao qual estão submetidos. Mas, assim como em relação ao povo negro, os dados não revelam tudo. A opressão se faz sentir com força no campo ideológico: uma operação racista comum nos Estados Unidos é a esteriotipização de aspectos importantes da cultura latino-americana e mexicana em particular. No Brasil, nordestinos também sofrem com opressão racista. Nos últimos anos, haitianos que migram para o Brasil têm sofrido forte opressão racista, que se expressou semana passada no atentado xenófobo a um grupo de haitianos que saia de uma Igreja em São Paulo, causando a morte de um. A Europa está imersa em xenofobia, patrocinada pelos governos imperialistas, contra africanos que em ato de desespero arriscam suas vidas para ingressar no continente. A atual divisão política de África é em grande medida resultado da opressão racista e imperialista sobre aquele continente, onde grandes multinacionais extraem riquezas a custos incrivelmente baixos.

“Não existe capitalismo sem racismo”. Uma das frases mais conhecidas do grande dirigente negro Malcolm X foi dita no começo em 1963, poucos meses antes de seu assassinato, numa década marcada por intensa luta contra as leis de segregação racial nos EUA e anticolonial em vários países de África. Malcolm X queria ressaltar que a opressão de uma raça sobre outra serve aos interesses da exploração de uma classe sobre outra, da burguesia sobre os trabalhadores. O racismo oprime e divide a classe trabalhadora, e isso exige um combate consciente. O capitalismo não conhece fronteiras, tampouco a luta da classe trabalhadora e dos povos oprimidos. Grandes lutas estão sendo travadas ao redor do mundo e as ainda mais decisivas estão por vir. O combate contra a opressão racial não pode estar separado da luta contra sua principal beneficiária: a burguesia. Nesse combate, que é ao mesmo tempo nacional e internacional, está a possibilidade de um futuro onde sejamos “socialmente iguais e humanamente diferentes”, como disse Rosa Luxemburgo.

Notas:

1. - Karl Marx, O Capital, Vol. 1 Cap. 31, citado em Robin Blackburn, A construção do escravismo no novo mundo: 1492-1800, p. 624.

2. Eric Williams, Capitalismo e Escravidão, pg 50. Sobre a transição do trabalho escravo indígena ao africano ver Stuart Schwarz, Segredos Internos, Cap. 3. É importante ressaltar que Schwartz alerta para o perigo dos limites de uma “discussão da lucratividade em termos econômicos estritamente neoclássicos” para “explicar a transição da força de trabalho. Estiveram presentes também determinantes culturais e políticos”, p. 73. Também na transição do trabalho dos servos para escravos africanos nos Estados Unidos ou nas demais formas que assumiu a transição para a hegemonia da escravidão negra no conjunto da América também estiveram presentes aspectos culturais e políticos (em grande medida é o eixo deste artigo) – isso em nada invalida o eixo da discussão de Williams.

3.- George Breitman, When Anti-Negro Prejudice Began, Fourth Internacional, Vol 15, n 2, 1954. Disponível em marxists.org. Tradução nossa. Breitaman foi membro fundador e importante dirigente do Socialist Workers Party (SWP) norteamericano, organização trotskista.

4. Isso não significa que esse processo tenha acontecido sem maiores questionamentos ou contradições. Onde houve escravidão, houve resistência – a história e o legado da luta contra a escravidão e pela liberdade precisa ser sempre relembrada e encarada como patrimônio de todos aqueles que, hoje, lutam contra o racismo e a exploração. Mas este não é o foco deste artigo.

5.Oliver C. Cox, Caste, Caste and Race, 1948; retirado de Breitman, When Anti-Negro Prejudice Began. Tradução nossa.

6. Eric Williams, Capitalismo e Escravidão, p. 34.


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