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MOBILIZAÇÕES NO EQUADOR | Equador: as consequências do levantamento popular de outubro

A revolta popular durante os primeiros dias de outubro no Equador marcou um ponto de inflexão a nível continental.

terça-feira 24 de dezembro de 2019 | Edição do dia

O ano de 2019 na América Latina esteve marcado pela emergência da luta de classes em uma escala não vista há muitos anos. A revolta popular durante os primeiros dias de outubro no Equador, contra as medidas de ajuste impostas pelo FMI e o governo de Lenin Moreno, marcam um ponto de inflexão a nível continental.

Essas mobilizações foram qualitativamente superiores às vividas nos últimos anos neste país. Romperam a passividade politica de forma abrupta. Dessa forma, uma das consequências imediatas do sucesso de outubro é que o regime político tenha entrado em uma crise de vários níveis, o que ultrapassa o governo de Lenin Moreno.

Crise orgânica e reorganização popular

Produto do levantamento popular, o governo tem sofrido duras derrotas nesses meses. Isso provocou que, na prática, Moreno e seu Executivo estejam sem uma agenda efetiva, quando ainda lhe faltam 4 anos de mandato. As principais medida do “el paquetazo” estão paralisadas temporariamente devido a mobilização popular. Ao mesmo tempo, as últimas tentativas de levar adiante reformas para cortar gastos na educação, na saúde e dos trabalhadores públicos, elencados na “lei de crescimento econômico”, foram rechaçados no Parlamento.

Por outro lado, as formações políticas ligadas às oligarquias tradicionais (casta política, judicial, grandes meios de comunicação, burguesia financeira e exportadora, etc.) também perderam muito com a derrota do governo. Foram justamente os principais aliados de Lenin Moreno que decidiram, nesses dois últimos anos, desde o princípio de seu mandato, romper aberta e publicamente com o correísmo. Durante as mobilizações, posicionaram-se firmemente a favor do governo.

Essas oligarquias, que têm como centro neurálgico Guayaquil, foram as que permitiram, durante os momentos mais críticos dos protestos, a transferência do governo para essa cidade. Concretamente, isso teve como efeito a deslegitimação e o desgaste político do principal candidato e líder histórico da direita, Jaime Nebot, que eventualmente poderia ter conseguido unificar a direita equatoriana (para a qual as pesquisas previam excelentes resultados para as eleições de 2021).

Nesse cenário, a incapacidade para impor uma agenda neoliberal e a chantagem que impõe o FMI e o capital internacional no momento de liberar os empréstimos acordados supõem um sério perigo para as contas de um Estado que está a caminho de entrar em bancarrota. No meio de uma crise econômica que se aproxima, pode haver um panorama devastador para o país, e o fantasma da catástrofe de 2000 começa a ser uma possibilidade cada vez mais real.

Jornadas de luta de classes

Por baixo, as mobilizações têm tido um caráter disruptivo, radicalizado e semi-espontâneo, o que colocou em sérios apuros o Estado. Isso se expressou fundamentalmente nas últimas jornadas de sexta e sábado, em que houve um autêntico levantamento popular em Quito, com enfrentamentos muito mais violentos com a polícia e com os militares.

Ao mesmo tempo, quem trouxe uma grande parte do peso nas mobilizações e combates nas ruas foi uma nova geração composta por jovens que estão despertando para a vida política do país e o fazem com um grau maior de autonomia em relação às burocracias dos movimentos sociais. Isso se expressa também dentro do movimento indígena, que está vivendo um momento de renovação e fortalecimento.

Nessa onda também estão os jovens dos bairros urbanos populares que se mobilizaram, principalmente em Quito, mas também em outras cidades, mas que não tiveram uma expressão organizada.

O desvio e a ilusão eleitoral

O movimento indígena e em especial a CONAIE são os grandes ganhadores da rebelião de outubro. A direção dessa organização saiu fortemente prestigiada. Ao mesmo tempo que a direita e o governo mandavam reprimir e mostravam sua cara mais racista e reacionária, a CONAIE conseguiu construir um discurso exitoso, segundo o qual foi sua ação a que conseguiu frear os planos de ajustes do FMI.

Dessa forma, seus principais lideres, Jaime Vargas e Leonidas Iza, ganharam muita popularidade e já começam a projetar suas candidaturas, com muitas possibilidade de conquistar um bom resultado e inclusive de poder formar governo para as eleições presidenciais de 2021.

Essa é a forma que está tomando a força mobilizadora de outubro: um desvio conduzido à ilusão eleitoral. Mesmo que renovada, a atual direção do movimento indígena está profundamente institucionalizada e forma parte do regime, inclusive expressa uma nova burguesia incipiente, débil ainda, ligada ao campo ou à indústria têxtil, entre outros setores de origem indígena que dirigem também as comunidades.

Esse desvio se expressou na passividade reinante depois das mobilizações, imposta pelo retrocesso das burocracias. Moreno, que durante a rebelião de outubro passou por seu pior momento e esteve a ponto de cair, produto da ação das massas, pôde, graças a isso, manter-se e desatar uma espiral de detenções e perseguições contra opositores e ativistas.

A nova situação abre a possibilidade a que, frente uma nova investida neoliberal do governo, se desatem reações populares da mesma natureza que em outubro. É precisamente para este cenário que a burguesia equatoriana vem se preparando com medidas repressivas.

A chegada de um governo representante do movimento indígena desde cedo iria supor um grande aumento das expectativas, inclusive em relação ao governo anterior de Correa. Contudo, a margem de manobra que teria um Executivo desse tipo seria muito menor do que nas décadas passadas. Além disso, importantes setores da população despertaram para a vida política, o que poderia fazer com que a experiência das massas fosse muito mais rápida com um governo desse tipo.

Por outro lado, diante da paralisia da direita tradicional, começam a surgir vozes que apostam para uma saída “a la Bolsonaro”. Algo que tem sido sugerido por importantes meios da burguesia, tanto na forma de advertência como de uma possibilidade, problemática mas preferível, de se levar a cabo, para setores do regime frente à possibilidade de regresso do correismo ou um governo presidido por um indígena.

Os limites do Estado capitalista e a necessidade de levantar uma alternativa de classe

Frente esta nova situação, é necessário insistir na ideia de que o FMI e o regime estejam longes de abandonar seus planos de ataque à maioria social para aprofundar a ingerência imperialista. O governo, ainda que às custas de seu futuro político, vem preparando o terreno tanto para realizar os máximos ajustes neoliberais possíveis para essa relação de forças, quanto para fortalecer os traços mais autoritários do Estado, que permitam desatar uma maior repressão quando a luta de classes se acirrar. Os fatos de outubro demonstram que a única maneira de frear isso é através da mobilização popular.

Um governo hegemonizado pelos dirigentes do movimento indígena não garantiria o desenvolvimento de um modelo transformador das grandes questões sociais e democráticas, também não significaria uma trava para paralisar a política de ajustes das oligarquias e do imperialismo. Nesse sentido, adquire importância fundamental a questão de desenvolver a luta de classes e preparar-se politicamente para que a classe trabalhadora possa irromper com toda sua força social.

A alternativa de novos desvios mediante um governo “reformista”, que finalmente termine traindo as expectativas geradas, pode dar maior fôlego para a articulação, por parte do regime, de saídas em chave reacionária e autoritária de extrema direita. Estes tipos de saídas são as que vem sugerindo importantes porta-vozes da oligarquia como El Comercio ou mesmo a reacionária revista politica El Vistazo.

Nessas ultimas décadas temos visto como a burocracia, especialmente no movimento indígena e nos sindicatos, cumprem um papel vital para paralisar o desenvolvimento da auto-organização e a mobilização, e em última instância funcionam como pilar fundamental do regime semicolonial. Concretamente, a historia da burocracia mais poderosa, a do movimento indígena hegemonizada pela CONAIE, tem sido a historia de alguns dirigentes que traem um movimento profundamente combativo mais uma vez. Dessa forma servem de contenção e participando diretamente de governos que estão protagonizando fortes ataques à maioria da população nos últimos 20 anos, como Bucaram, Gutiérrez ou o próprio Correa e Lenin Moreno.

A burocracia dos movimentos sociais converteu-se em parte do regime e suas instituições. No caso do movimento indígena, atravessado ainda por uma questão de classe, já que existe uma forte separação entre suas bases com uma forte composição de camponeses pobres e classe operaria urbana pauperizada, enquanto sua direção em muitos casos são camponeses ricos ou mesmo uma burguesia incipiente das cidades.

Nesse marco, é fundamental que a classe operária irrompa e faça suas as reivindicações indígenas. Somente assim poderá construir um pólo de classe e revolucionário que supere as ilusões de resolver as grandes questões sociais e democráticas nos marcos do Estado capitalista. Isto supõe reconhecer as grandes burocracias dos movimentos sociais, incluindo o movimento indígena, como um inimigo irreconciliável de uma perspectiva revolucionaria, já que em última instância sustentam o regime semicolonial. Mas também é necessário enfrentar o velho discurso dos partidos de raiz stalinista como o PCMLE e outros que durante esses anos foram dando giros e chegando a apoiar o correísmo, inclusive quando apoiaram o banqueiro Guilhermo Lasso. Essas organizações sempre deram pouca importância à questão indígena desde uma ótica obrerista restringida e corporativa, quando é uma questão estrutural no país e está atravessada por uma clara natureza de classe.

Os acontecimentos de outubro marcam uma volta da luta de classes e o despertar de enormes sectores de vanguarda, que tiveram como batismo de fogo uma rebelião popular que conseguiu torcer o braço do governo. São precisamente esses setores os que estão chamados a resgatar o melhor da tradição revolucionária equatoriana a empreender a audaciosa tarefa de construir uma alternativa para os trabalhadores, os indígenas e a maioria popular.




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