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ÁFRICA DO SUL | Entrevista com professor e militante sul-africano sobre greves estudantis em seu país

A equipe do Esquerda Diário entrevistou Mario Jacobs, comunista sul-africano, ligado ao Grupo Revolucionário Marxista, a repeito das recentes manifestações no país.

quinta-feira 19 de novembro de 2015 | 00:00

A equipe do Esquerda Diário entrevistou Mario Jacobs, comunista sul-africano, ligado ao Grupo Revolucionário Marxista (RMG – Revolutionary Marxist Group), com mestrado em direito do trabalho (UCT, África do Sul) e em Economia do Trabalho (UNICAMP, Brasil). Atualmente, é pesquisador na Universidade de Cape Town e leciona Direito do Trabalho na Universidade de Western Cape.

ED: Nos últimos meses a África do Sul vem atravessando várias manifestações, você poderia narrar brevemente os acontecimentos?

M.J.: A atualonda de protestos estudantis teve início com a campanha #Rhodesmustfall na Universidade de Cape Town. Suas demandas incluem a remoção da estátua de Cecil Jones Rhodes, um imperialista britânico racista, como expressão simbólica do descontentamento dos estudantes com relação à manutenção do preconceito racial dentro das universidades sul-africanas. A questão racial é uma realidade diária na África do Sul: embora 80% da população no país seja negra, menos de 25% dos estudantes universitários são negros. A questão de classe, contudo, não pode ser ignorada, uma vez que as chances de um cidadão sul-africano negro e pobre ingressar na universidade são ainda mais escassas. O Ensino Superior na África do Sul é excludente e apenas quem pertence às classes mais favorecidas tem acesso a ele.

Mesmo os estudantes negros que têm acesso às universidades sofrem discriminação, porque em certas universidades como a de Stellenbosch as aulas são ministradas em Afrikaans, língua pouco utilizada pela população negra. Exclusões desse tipo levaram à criação de uma frente unificada de estudantes com o objetivo de transformar essa realidade das universidades sul-africanas.

O aumento das mensalidades muito acima da inflação anunciado pela maioria das universidades para o ano de 2016 impulsionou um movimento estudantil de abrangência nacional, divulgado nas redes sociais com a hashtag #feesmustfall. Os estudantes fecharam as universidades do país por mais de duas semanas, conquistando a aprovação pelo CNA do congelamento do valor das mensalidades para 2016. Ainda estão em processo de negociação as demandas dos estudantes por acesso gratuito às universidades e pela contratação dos prestadores de serviço que atualmente são terceirizados.

Mário Jacobs.

E.D: Como o governo do CNA respondeu as manifestações?

M.J.: O CNA é um partido nacionalista burguês, e portanto respondeu às manifestações como qualquer outro partido com essa característica: usando instrumentos do Estado como a polícia para suprimir os protestos. Líderes estudantis foram presos e acusados, dentre outras coisas, de traição. A polícia sul-africana chegou a afirmar nos registros que alguns dos líderes estudantis eram espiões atuando contra o Estado. O ministro do Ensino Superior e secretário-geral do Partido Comunista Sul-Africano (SACP) Blade Nzimade ironizou o movimento em rede nacional com a hashtag #studentsmustfall, num sinal claro de falência ideológica do partido, que já não é mais do que um grupo Stalinista alinhado aos interesses do CNA.

O governo CNA cedeu a algumas das demandas estudantis numa tentativa de convencê-los de que o partido os apoiava. Os estudantes, entretanto, estão cientes das falhas do governo com relação ao Ensino Superior, e não ficaram convencidos.

E.D.: Como os estudantes sul-africanos estão se organizando nas faculdades e universidades?

M.J.: O Conselho Representativo dos Estudantes (SRC) é uma organização democrática cuja finalidade é representar os interesses dos estudantes universitários. A atual onda de protestos, entretanto, não foi resultado de sua atuação. Isso porque muitos estudantes alegam que o SRC foi cooptado pela administração universitária, de modo que pudemos testemunhar o movimento ganhando visibilidade fora do âmbito do Conselho, através das redes sociais (#rhodesmustfall, #feesmustfall, etc).

E.D.: De onde, na sua opinião, está vindo tanta revolta e tanta força contra os governos?

M.J.: 21 anos depois do término do Apartheid e do início do governo CNA, a realidade sócio-econômica sul-africana ainda continua a mesma. O governo falhou em cumprir a promessa de melhorar a vida de todos, e a emergência do movimento estudantil é consequência disso. A maioria desses estudantes nasceu após o fim do Apartheid, mas ainda pode testemunhar uma realidade de exclusão numa sociedade dividida. Como dito anteriormente, a educação universitária custa caro e apenas alguns têm acesso a ela. Além disso, o fato de os estudantes ainda serem ensinados em uma língua estranha a eles mesmo 21 anos depois da ascenção do CNA indica um cenário incerto e excludente para a educação superior sul-africana.

Outro motivo de descontentamento para a população em geral é a precariedade dos serviços públicos oferecidos. Muitos sul-africanos ainda precisam caminhar longas distâncias para ter acesso à água, e em algumas áreas a coleta de lixo não é realizada pelos múnicípios.

Em 2012, mineradores da empresa Lonmin, cujo maior acionista é o atual presidente do CNA Cyril Ramaphosa, entraram em greve e foram brutalmente assassinados pela polícia. Isso é um sinal claro do abuso dos instrumentos do Estado pelos líderes do ANC.

E.D.: Em meio a essas movimentações, foi anunciado nas duas principais universidades da África do Sul (Wits e University of Cape Town) que não haverá mais trabalho terceirizado. Como isso aconteceu?

M.J.: O acordo de contratação dos funcionários que prestam serviços terceirizados é uma grande vitória para esses trabalhadores, porque a maioria não possui hoje estabilidade nem benefícios e recebe salários muito baixos. Trabalhar diretamente para a universidade irá garantir benefícios similires aos recebidos pelo restante dos trabalhadores da universidade. Esses benefícios incluem aposentadoria, assistência médica e descontos de até 75% nas mensalidades dos filhos dos funcionários que estudarem na universidade.

Embora esse acordo tenha sido assinado entre a administração da universidade e o Sindicato Nacional dos trabalhadores da Educação, Saúde e Aliados (Nehawu), foram os protestos dos estudantes que o forjaram. O Nehawu, afiliado do Congresso dos Sindicatos Sul-Africanos (Cosatu, que hoje está paralisado), desempenhou um papel muito pequeno nessa conquista, e se manteve em silêncio com relação a diversos pontos-chave como os salários e as condições de trabalho. Isso deu origem às greves mais recentes, em que os trabalhadores contestam a legitimidade do Nehawu para atuar em seu nome e assinar o acordo. Teremos que esperar para ver de que forma os termos do acordo serão implementados e qual será seu impacto sobre os trabalhadores.

A ação conjunta de estudantes e trabalhadores em greve é uma prova de que a classe trabalhadora unida não pode ser derrotada. Muito ainda precisa ser feito, entretanto, para garantir as transformações desejadas dentro da universidade e na sociedade sul-africana como um todo.

E.D.: Como você vê o processo de precarização do trabalho a nível global e o resultado dessa precarização para o trabalho na universidade?

M.J.: “The bourgeoisie has stripped of its halo every occupation hitherto honoured and looked up to with reverent awe. It has converted the physician, the lawyer, the priest, the poet, the man of science, into its paid wage labourers.” (The Communist Manifest) [1]

Cito essas palavras e não corroboro o argumento de que o trabalho precarizado é um fenômeno recente. Em 1848, Marx e Engels descreveram o modo como o Sistema capitalista transformava seres humanos em commodities, qualquer que fosse a profissão. Desse modo, não é nenhuma surpresa que os departamentos de Artes, Línguas e etc das universidades recebam cada vez menos verbas, uma vez que são percebidos pelas indústrias como menos relevantes do que os departamentos de Ciência e Engenharia. Também não surpreende que os professores dessas áreas sintam dificuldade de garantir cargos permanentes. Muitos são forçados a escolher entre aceitar contratos de curto prazo ou procurar emprego em outros países. O próprio fato de os funcionários nas universidades do Brasil entrarem em greve praticamente todos os anos denuncia a natureza precária das condições de trabalho na universidade, situação que naturalmente se agrava para os trabalhadores sem qualificação formal. A terceirização de funcionários que não estão ligados às funções centrais da universidade (limpeza, manutenção e etc) ilustra o grau de absorção e reprodução das práticas capitalistas dentro do sistema de ensino. As reivindicações por transformações no Ensino Superior no mundo todo devem incluir como elemento-chave a construção de conhecimento que sirva aos interesses da sociedade de forma mais ampla, e não puramente aos interesses do capital.

Tradução: Raíris Martins

[1] "A burguesia despiu o manto sagrado de todas as atividades que eram até então veneradas e encaradas com piedoso respeito. Ela converteu o médico, o advogado, o padre, o poeta, o homem de ciência em seus servidores assalariados."(O Manifesto Comunista). [Nota da edição]

Imagem de capa: FoxNews




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