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ENTREVISTA | Entrevista com Niara de Oliveira: Caos na saúde em Pelotas, feminismo e luta das mulheres

Moradora de Pelotas, no Rio Grande do Sul, Niara de Oliveira é jornalista e integra o Grupo Autônomo de Mulheres de Pelotas (GAMP). Nesta entrevista, ela nos conta mais detalhadamente no que consistem as escandalosas irregularidades na realização de exames de pré-câncer pelo SUS no município, a Mobilização Pela Vida das Mulheres, uma iniciativa que nasce de maneira espontânea como resultado da indignação das mulheres, totalmente voluntária, para que medidas sejam tomadas. Também falamos sobre a situação do Brasil neste cenário de eleições manipuladas pelo judiciário e tuteladas pelos militares, os desafios do movimento feminista no século XXI e o processo que se abre no Brasil a partir da organização das mulheres contra Bolsonaro.

sexta-feira 21 de setembro de 2018 | Edição do dia

Alguns dos cards utilizados nas redes sociais da Mobilização Pela Vida das Mulheres

Esquerda Diário: Para começar, gostaria que você contasse um pouco sobre você e o trabalho que desenvolve em Pelotas. Você poderia nos contar um pouco mais como se formou o coletivo, quais as expectativas e atuação do grupo?

Niara de Oliveira: Sou jornalista, tenho 46 anos e tenho um filho autista de 22 anos. Nasci em Pelotas e vivi quase toda a minha vida aqui. Comunista desde os 15 anos, xavante (torcedora do Brasil de Pelotas) desde os 18, feminista a partir dos 19. Sou politicamente independente, um tanto quanto anarquista e não exerço mais o direito do voto, mas acredito na democracia direta e exerço minha cidadania até as últimas consequências. Participo desde os 19 anos do grupo feminista mais longevo em atividade no Rio Grande do Sul, Grupo Autônomo de Mulheres de Pelotas (GAMP). E foi por esse grupo que participei das duas últimas grande peleias locais contra a prefeitura tucana de Pelotas. A primeira em dezembro, na luta para que a Casa de Acolhida Luciety não fosse desviada de seu fim (abrigar mulheres vítimas de violência e em situação de risco de vida) e agora por justiça para as mulheres vítimas do câncer de colo uterino pela irresponsabilidade e omissão do ex-prefeito Eduardo Leite e da atual prefeita Paula Mascarenhas. Sou uma das coordenadoras dessa mobilização totalmente voluntária, extremamente trabalhosa, complicada e dolorosa.

Embora Pelotas tenha muitos coletivos feministas além do GAMP, e de um Conselho Municipal dos Direitos da Mulher atuante (e oriundo do movimento) que se organizou já no dia seguinte à denúncia indo até a Prefeitura entregar um documento exigindo providências, a Mobilização Pela Vida das Mulheres pelotenses surgiu de uma iniciativa indignada e espontânea. A companheira feminista Joana De Leon dos Santos abriu um chat no Messenger do Facebook na madrugada de 16 para 17 de julho – quatro dias após a denúncia na mídia – e ali marcamos a primeira reunião de urgência já para o dia 17. E, apesar da reunião ter sido marcada literalmente da noite pro dia, reuniu em torno de 30 mulheres. A "MOB", como a chamamos internamente, reúne representação de cerca de 20 entidades entre coletivos feministas independentes, representações partidárias (PSol, PT, PCdoB, PDT) e sindicatos (CPERS, SIMP, SindSaúde, Bancários) além de feministas independentes. Decidimos imediatamente por termos página no Facebook e perfil no Twitter e Instagram, que nossa instância deliberativa seriam as reuniões ampliadas presenciais e as discussões no grupo do WhatsApp – também amplo. Ou seja, nossa organização é horizontal e feita por quem de alguma forma deseja contribuir com essa luta. A expectativa é de que de alguma forma saiamos vitoriosas dessa batalha contra a poder público local, laboratório e quem mais estiver envolvido nessa fraude contra a vida das mulheres. O que considero vitória nesse caso? Que o Ministério Público Criminal acolha a denúncia que estamos formulando junto aos vereadores da oposição naquilo que estamos chamando de Relatório Paralelo da CPI, e que a prefeitura refaça todos os exames das mulheres pelotenses em idade de prevenção ao câncer de colo uterino. O objetivo final, a longo prazo, é justiça para as vítimas da fraude e a garantia de saúde – pública, gratuita e de qualidade – para as mulheres pobres e trabalhadoras.

ED: Eduardo Leite do PSDB vem se apresentando como a "cara nova" na disputa ao governo do estado do Rio Grande do Sul. Como prefeito de Pelotas, sua política foi de privatização da saúde pública. Além disso, ele negligenciou e sucateou os serviços. Agora vem à tona um grande escândalo da suspeita de fraudes em exames pré-câncer de uma Unidade Básica de Saúde da cidade. A suspeita é de que de 500 exames, apenas 5 eram analisados de fato, e os restantes davam resultado negativo para a doença. Você poderia nos contar um pouco mais sobre essa monstruosa negligência, que levou duas mulheres à morte?

NO: Primeiramente, duas correções. A primeira é que não é apenas em uma Unidade Básica de Saúde. A suspeita provável de fraude nos exames citopatológicos em Pelotas atinge toda a rede pública de saúde. Tanto assim que, das duas vítimas fatais até agora, uma era da UBS Bom Jesus (onde se originou a denúncia a partir da suspeita dos servidores da saúde), e a outra foi da UBS Balneário dos Prazeres ("Barro Duro", Laranjal). E temos um caso fartamente documentado pela nossa mobilização de uma paciente do Centro de Especialidades. E começam a surgir agora novos casos no Areal, Virgílio Costa, Simões Lopes, Santa Terezinha, Z3, Getúlio Vargas, Fátima... É em toda a cidade. A própria CPI da Câmara Municipal já tinha aprovado a ampliação do objeto de investigação para toda a rede, antes de implodir essa semana.

A segunda correção é que não temos como comprovar ainda e nem sabemos bem como surgiu esse número das 5 análises a cada 500 amostras coletadas. O que sabemos é que há fartos indícios para as suspeitas de fraude. Mulheres já com diagnósticos de câncer recebendo o resultado do Papanicolau "negativo" e vendo suas condições de saúde deteriorarem rapidamente.

Esse escândalo só veio à tona após a denúncia feita pelos servidores da saúde internamente à Secretaria Municipal de Saúde "vazar" no dia 12 de julho para a imprensa e após já ter ocorrido uma morte. Tudo que surgiu depois só corrobora a denúncia inicial de que havia problemas nos laudos apresentados pelo Laboratório SEG (Serviços Especializados em Ginecologia). Segundo alguns dos depoimentos da equipe que identificou o problema e fez as denúncias, os laudos de Papanicolau emitidos pareciam "Ctrl+C / Ctrl+V", sem nenhuma alteração e tendo permanecido assim por quase quatro anos, o que é absolutamente impossível. Essas denúncias feitas internamente na Secretaria de Saúde ocorreram em dois momentos (que temos como comprovar), primeiro, em janeiro de 2016, ainda durante o governo de Eduardo Leite e, depois, em julho de 2017, já no governo Paula Mascarenhas. Houve, ainda, um estudo da médica Julia Recuero, lotada na UBS Bom Jesus e que assina os dois documentos divulgados (ata e memorando), de 2014, registrando a suspeita acerca dos resultados apresentados pelo laboratório SEG.
Embora esse fosse o único laboratório de exames citopatológicos credenciado pelo SUS na cidade no ano 2000, quando da assinatura do contrato com a prefeitura, hoje existem outros três que realizam esse tipo de exame. Além disso, o SUS determina que pelo menos uma vez por ano amostras (lâminas) de exames realizados pelo laboratório de nível 1 sejam escolhidos aleatoriamente e enviados para reanálise em laboratório de nível 2. Isso deveria ser rotina, para testar a qualidade do laboratório, e nunca foi feito. E também não foi feito mesmo diante da suspeita documentada de uma equipe inteira de médicos e enfermeiras da UBS Bom Jesus.

Então, no mínimo, do que estamos tratando aqui é de uma negligência criminosa por parte do poder público local, incluindo o Ministério Público, com as mulheres pelotenses.

Memorando da UBS Bom Jesus assinado por toda a equipe de médicos e enfermeiras relatando a suspeita acerca dos laudos do laboratório SEG à Secretaria de Saúde de Pelotas, de julho de 2017 _ Governo Paula Mascarenhas / fotos de ata de reunião de equipe da UBS Bom Jesus de janeiro de 2016 relatando entrega de documento ao setor de Saúde da Mulher da Secretaria de Saúde de Pelotas _ Governo Eduardo Leite

ED: Diante de casos como este em Pelotas, de claro descaso com a vida das mulheres, e pensando também no contexto atual do Brasil, de eleições manipuladas pelo judiciário e tuteladas pelos militares, em que vemos o crescimento da extrema-direita, de um lado, mas, de outro, uma enorme mobilização de mulheres para fazer frente a tudo isso, você considera que haveria aí uma saída? Ou seja: na sua opinião, poderia haver no movimento de mulheres uma saída organizativa não apenas para enfrentar Bolsonaro e a extrema-direita, mas para a grave situação por que passa o país?

NO: Não sei nem como começar a te responder, tal o atordoamento que esse caso tem nos provocado, mas vou tentar. É muito difícil uma luta em que precisamos manter a sobriedade e o comedimento por lidarmos com o luto e a dor das famílias que perderam suas entes e com angústia e desespero das mulheres que se descobrem gravemente doentes quando cumpriam religiosamente o que indicam o SUS, Ministério da Saúde e OMS que é o cuidado preventivo com a saúde. Essas mulheres estão tendo suas vidas e saúdes roubadas pela irresponsabilidade, pela má gestão, pelo descaso e principalmente pelo balcão de negócios que estão fazendo da saúde pública. Então, no final das contas, estamos lutando é contra o capitalismo em sua face mais perversa. Essas mulheres são pobres, trabalhadoras, e só tem o SUS para se tratar, e vem um governo privatista fazer proselitismo com suas vidas e ainda desacreditar um dos melhores sistemas públicos de saúde do mundo. Esse caso é tão bárbaro que deveria ser classificado como crime de lesa humanidade.

O que percebo é que as mobilizações de rua são cada vez mais iniciativas de mulheres. Somos nós que estamos na linha de frente de todas as grandes batalhas do país nesse momento gravíssimo. Então, sim. Acho que está nas mobilizações feministas a chave organizativa para enfrentarmos e superarmos esse momento. E não à toa, né? O movimento feminista é originalmente classista (e mantido assim a duras penas) e combate por dentro os demais recortes de opressões estruturais.

Dona Ieda de Ávila caso número 1 de papanicolau negativo, e repetido já depois do diagnóstico de câncer confirmado e em pleno tratamento, na UBS Bom Jesus e que originou a denúncia dos servidores depondo na Reunião Pública na Câmara Municipal / Ato Público em frente a Prefeitura de Pelotas - atividades do "Dia M pela vida das mulheres" realizado no dia 02/08 pela Mobilização (Fotos: Carlos Queiroz / DP)

ED: Nos últimos, assistimos a importantes movimentos de mulheres em diferentes países do mundo, movimentos esses que vêm sendo chamado de “greve de mulheres”, no sentido de “greves políticas”. Isso não é uma novidade. Nos anos de 1970, na Islândia, houve um movimento desse tipo pela igualdade salarial. A novidade é que parecem ocorrer em cadeia: em 2016 na Polônia, para barrar uma lei de proibição total do aborto; a partir de 2016, na Argentina, primeiro contra a violência de gênero e, neste ano, pela legalização do aborto, e nos EUA a greve de mulheres no 8 de março. Na sua opinião, o movimento que surge na esteira ao repúdio a Bolsonaro pode encontrar expressão parecida? E, ainda, você acha que a greve de mulheres, no sentido que são também greves políticas, poderia avançar para retomar as greves como instrumento de luta nos locais de trabalho?

NO: Entendo o movimento de mulheres contra o inominável como a Marcha de Mulheres nos EUA à época da posse do Trump, só que tentando se antecipar. Lá ninguém levou a ameaça a sério e o mundo inteiro está pagando essa conta. As feministas estadunidenses foram às ruas para dizer que não estaria tudo dominado e que o governo enfrentaria oposição e tals, ao mesmo tempo em que fica claro o tanto de trabalho a mais e de organização que exige enfrentar o fascismo já criado e fartamente nutrido. É isso, acho, que estamos tentando evitar aqui. Até porque, o atual governo ilegítimo de Temer já fez estrago suficiente em nossos direitos e deu uma bela noção do que seria enfrentar um recrudescimento ainda maior. Sim, movimentos políticos vêm em ondas (como o maaaaar... dsclp) e acho que essa tentativa mal acaba e mal enjambrada de fascismo tropical é na verdade uma reação a um movimento forte de tomada das mulheres de sua autonomia, vidas, lugares de fala e atuação e direitos. A própria execução da Marielle Franco acho que vai nesse sentido, da reação fascista. Diria que estamos agora, nessa reação à reação ao movimento que vem se estabelecendo e crescendo desde a segunda onda do feminismo nos anos 1960, consolidando nosso lugar inclusive na esquerda. Na esteira das mobilizações feministas argentinas vieram as manifestações das trabalhadoras e trabalhadores, deixando claro que era sim um "aproveitar a onda", "pegar uma beira", mas já reconfigurando a cara desse movimento classista que não tem mais como se manter como era antes. A face atual da esquerda é feminista, gostem ou não. E espero que após essa disputa eleitoral paupérrima de projetos e do debate de fundo que é projeto de sociedade/plano de governo, emendemos a retomada da luta por direitos e de enfrentamento ao Estado neoliberal. No fundo, é isso que estamos fazendo aqui em Pelotas, nessa mobilização que pode até parecer setorizada, mas que é ampla, é pelo direito à vida e à existência das mulheres pobres e trabalhadoras.

Ato Público em frente a Prefeitura de Pelotas no "Dia M pela vida das mulheres", 02/08 (Fotos: Carlos Queiroz/DP)




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