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Entrevista: "O racismo como o conhecemos hoje foi de fato estruturado a partir do fim da escravidão"

Entrevista: "O racismo como o conhecemos hoje foi de fato estruturado a partir do fim da escravidão"

Entrevista com os cineastas Marco Dutra e Caetano Gotardo sobre seu filme Todos os mortos. Ambientado em São Paulo entre 1899 e 1900, Todos os mortos foi o único filme brasileiro selecionado para a Competição Oficial do 70º Festival de Berlim. O longa foi escrito e dirigido pela dupla Caetano Gotardo (O que se move) e Marco Dutra (As boas maneiras), com produção da Dezenove Som e Imagens e da Good Fortune Films.

Ideias de Esquerda: A produtora Sara Silveira disse recentemente: “Nosso filme atravessa 120 anos de escravidão”. O que isso revela de Todos os mortos?

Marco Dutra: Na verdade, o que Sara provavelmente quis dizer é que nosso filme se passa entre 1899 e 1900, ou seja, há 120 anos, e aborda as consequências do longo período em que a escravidão (terminada oficialmente em 1888) ocorreu no Brasil com suporte do governo. Nossa vontade sempre foi visitar a virada do século XIX para o XX para falar de como vivemos no país hoje – especialmente na cidade de São Paulo, onde o filme se passa. A história se dá no início do nosso período republicano, mas muito daquela época reverbera ainda hoje.

Caetano Gotardo: Essa fala da Sara também reverbera o fato de o fim da escravidão no Brasil não ter significado realmente o fim de uma ideologia e de um comportamento escravistas no cotidiano e nas relações sociais e de trabalho no nosso país. Ou seja, há uma permanência da ideia de escravidão nesses 120 anos – e o filme tenta olhar para essa questão.

IdE: Qual foi o motivo de escolher o tema sobre racismo para o enredo do filme?

CG: Quando começamos a desenvolver o roteiro do filme, eu e Marco estávamos muito interessados em pensar em como a estrutura social estabelecida naquele momento histórico no país parecia (e parece) ainda muito presente na nossa sociedade hoje. E para falar de relações sociais e de classe no Brasil não há como não passar pelo assunto das relações raciais. Essas coisas estão profundamente ligadas, embora por muito tempo tenha havido a tentativa de criar uma falsa ideia de democracia racial brasileira. O racismo como o conhecemos hoje foi de fato estruturado a partir do fim da escravidão. Durante a vigência do sistema escravista, não era preciso organizar o racismo, digamos. A opressão estava assegurada. Mas a partir do momento em que os ex-escravizados se tornaram pessoas livres, a elite branca criou mecanismos para manter seus privilégios e o racismo de fato tornou-se elemento organizador das relações sociais em nosso país. Esse tema ganhou ainda mais força no filme com a entrada dos diversos colaboradores que tivemos, entre consultores, equipe e elenco. Há também vários outros temas que perpassam o filme – e que se cruzam e se alimentam. Pensamos nas personagens como pessoas cheias de questões e complexidades, mergulhadas num mundo igualmente complexo.

Caetano Gotardo - direção e roteiro

IdE: Como foi a recepção do filme no Festival de Berlim?

MD: A recepção na sessão oficial foi calorosa e emocionante. Conseguimos, com muito esforço e alguns apoiadores (como a Spcine e o Projeto Paradiso), ir ao festival com parte do elenco e da equipe. Foi bom poder apresentar o filme e debatê-lo com a imprensa junto com o time. Ficamos com a impressão de que muitas vozes foram ouvidas, o que é importante para nós porque vemos este filme como um projeto bastante colaborativo. Todas as sessões do filme tiveram ingressos esgotados e os debates foram muito ricos. Com relação à recepção crítica, tivemos respostas positivas e negativas, o que mostra uma certa cisão na forma como o filme é visto (ao menos pelos críticos). Já vivemos este tipo de recepção com outros filmes e para nós é estimulante ver os debates que podem nascer dessas contradições. O filme foi vendido para alguns territórios e convidado para diversos outros festivais, que vamos anunciar em breve. Estamos bastante ansiosos para mostrar o filme no Brasil.

Marco Dutra - direção e roteiro

IdE: Qual o sentido do lançamento de Todos os mortos num momento em que a
política do país parece dominada pelos “mortos”?

MD: Talvez Todos os mortos seja o nosso filme mais abertamente político – as questões e os conflitos das personagens são discutidos frontalmente dentro do filme. Para nós o processo foi bem longo – a ideia original surgiu em 2012. Desde então, muita coisa mudou no Brasil e nas discussões de raça e gênero. O filme foi mudando também, conforme passávamos da escrita para a produção, para a montagem... As violências e omissões do governo, da branquitude e dos homens estão sendo discutidas de maneira mais profunda. Nós aprendemos muito ao fazer o filme, especialmente com nossos colaboradores: todo o elenco, que criou ativamente nas leituras e nos ensaios; a equipe, majoritariamente feminina; Salloma Salomão, que compôs a trilha e foi consultor histórico-dramatúrgico, assim como Goli Guerreiro, historiadora baiana que discutiu várias versões do roteiro e também fez considerações durante o processo de montagem. Foi um processo intenso, e nós temos a sensação de que o filme nasceu na hora certa. Ainda não temos data de estreia brasileira, mas estamos planejando com a distribuidora Vitrine. Esperamos que o filme circule pelo Brasil e que desperte discussões – e que continuemos a aprender com o processo.

IdE: Qual a opinião de vocês sobre os ataques ao cinema e a cultura que estamos
vivendo hoje?

CG: Nós sentimos que os ataques à criação artística no Brasil de hoje fazem parte de um contexto ainda mais assustador, que é o do ataque a qualquer atividade que desenvolva o pensamento crítico. É evidente a intenção de desmantelar as universidades, os centros de pesquisa – a educação no seu sentido mais amplo. O atual governo e grande parte de seus apoiadores, assim como grande parte da triste, antiquada, violenta elite brasileira, desejam uma população fácil de manipular. São pessoas que operam no campo das bravatas sem fundamento, das calúnias em série, das notícias falsas. Portanto, a educação e a arte são encaradas como inimigas, porque abrem caminho para o questionamento, para o exercício do olhar, da interpretação, da imaginação, do desejo, da pluralidade de entendimentos, da autonomia, da construção do coletivo.


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